A bola não rola. Nem os treinos à semana, nem o Campeonato de Portugal (CP) ao domingo.

Mas a vida não pára. É preciso trabalhar. Sair de casa, entre o estado de emergência no país devido à covid-19, para nela colocar comida. Cuidar da família. O futebol não é, para dezenas de homens a este nível, o único ganha-pão. Não pode ser.

Marafona é guarda-redes do Cerveira e operador de armazém num dos maiores fabricantes de chocolates do país. Luís Henrique, defesa brasileiro do Castro Daire, repositor num mercado daquela vila. José Dias, médio do Fontinhas, enfermeiro em Angra do Heroísmo. Fábio Reis, guarda-redes do Mineiro Aljustrelense, operador numa fábrica de produtos de borracha e bombeiro em Aljustrel. Eles não vivem só do futebol não profissional. Ao contrário de outros colegas que só dele dependem, tendo nesta paragem um mar de dúvidas à vista.

De norte a sul e ilhas, estádios sem vivalma. Hoje, entre a saudade do balneário, assumem outros papéis vitais num país em suspenso. Cuidar de idosos ou pôr comida nas prateleiras.

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São seis da manhã.

A viagem é curta das Caxinas até Azurara, Vila do Conde. Cinco minutos de carro. Marafona entra ao serviço por oito horas, certo de que a sua jornada na Imperial acaba a 9 de abril. O contrato a termo certo, de três meses, não vai ser renovado. Encomendas canceladas refletidas na carga de trabalho e postos com fim à vista: cerca de 75. Por ora, é um faz-tudo, com higiene na prioridade. «Como se trata de um produto alimentar, há mais cuidado», atesta.

«É altura de Páscoa e eu estava mais na amêndoa. Ela saía da máquina, eu revia, separava a boa da má, pesava e metia em cestos para as embalagens. Houve cancelamentos de pedidos por causa do coronavírus e parou-se um bocado. Agora, estamos mais virados para outro tipo de chocolate. Sentiu-se tanto na quebra de trabalho que fomos informados de que muita gente que está a acabar contrato, o mais provável é ir embora», conta.

Marafona tem o futebol em suspenso e o atual emprego na Imperial termina a 9 de abril (arquivo pessoal)

Entre o casa-trabalho-casa, o irmão do guarda-redes do Alanyaspor viu trocada a hora de viagem ao fim do dia para Vila Nova de Cerveira pelo treino em casa, indicado pelo clube. Também pela «preocupação» com os pais - os mais velhos em casa - além de outra: o sustento futuro. «O foco é procurar outro trabalho, porque a minha maior fonte de sustentabilidade é a empresa onde trabalho. Estava a contar ficar, o encarregado estava a gostar do meu trabalho, mas foi uma decisão dos patrões e não há volta a dar. Estou preocupado, precisamos de dinheiro para sobreviver», garante.

Em Castro Daire: «O meu refúgio está a ser o trabalho»

Naquela vila do distrito de Viseu, onde reside uma série de 20 jornadas sem derrotas no clube da série B, Luís Henrique viu o futebol parar. O plano de trazer mulher e filho em definitivo do Brasil para Portugal adiado. Além da ligação ao Castro Daire, o brasileiro que se cruzou com o benfiquista Carlos Vinícius na formação do Santos ganha a vida numa loja de produtos alimentares. Trabalhou o dobro nas primeiras duas semanas do estado de emergência.

«No início da epidemia, tive muito trabalho. Todos os dias, muitas pessoas a fazer compras com medo do vírus. Sou repositor e tomamos todos os cuidados possíveis. Todas as vezes que se atende um cliente, higienizar com gel e álcool. Como está a ficar mais sério, as pessoas saem menos de casa e está mais parado», explica. Agora, voltou ao horário parcial que outrora tinha: quatro horas por dia. De casa ao trabalho, são cinco minutos a pé, mas precaução total. Até porque tem bronquite. «Chego lá, higiene nas mãos, coloco a luva, a máscara e vou trabalhar», descreve.

Entre a saudade da mulher e filho, que estão no Brasil, Luís Henrique ganha a vida numa loja e a jogar no Castro Daire (arquivo pessoal)

Com o coração em Brasília, para onde liga «todos os dias por videochamada» à família, Luís admite que vai «trabalhar com receio» da pandemia, mas precisa. «Tenho um filho para criar, uma mulher para sustentar, porque não há como no Brasil. Tenho de trabalhar, senão o meu filho não veste, não come. O meu refúgio está a ser o trabalho», garante, além da ajuda do clube na alimentação e na casa. «São corretos. É um dos melhores clubes pelos quais já passei em Portugal», defende.

«Ainda não houve casos, a instituição está isolada»

De Fontinhas, freguesia com cerca de 1.600 habitantes, no concelho da Praia da Vitória, José Dias, de 25 anos, parte para uma missão maior que o futebol. É enfermeiro na Unidade de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) da Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo (SCMAH). Pouco mais de 15 minutos de carro na viagem.

Os casos já chegaram ao arquipélago dos Açores e à Ilha Terceira, onde José diz ainda haver «algum facilitismo da população». Não se estende à UCCI. «É um grupo de risco e estamos a fazer alterações para que nada contamine. O fardamento é lavado na instituição, os utentes transferidos do hospital são colocados num quarto isolado como medida preventiva e implementámos um plano de emergência: todos os enfermeiros, auxiliares e outros técnicos vão trabalhar 15 dias seguidos em horários de 12 horas e ficam o resto do mês em descanso, na tentativa de evitar contágio entre equipas e de haver menor entrada e saída de pessoas», aponta.

José Dias, enfermeiro, a jogar pelo Fontinhas, clube açoriano que disputa a série C do Campeonato de Portugal (Foto: Mário Picanço Ataíde)

José iniciou um período de 15 dias em casa na quarta-feira e volta a trabalhar a 16 de abril, das 20 horas às oito da manhã do dia seguinte. Vive com os pais, irmão e namorada, também enfermeira. E é deles que parte o aviso nas saídas imperativas para ir às compras. «Ir de uma vez a todos os sítios indispensáveis. Como cidadão e enfermeiro, cabe-me essa parte», atira.

O açoriano de 25 anos é um dos nomes da primeira participação do Fontinhas no CP e o 18.º e último lugar na série C já não adivinhava um fim de época fácil, mas a experiência é «enriquecedora». Por ora, o clube deixou «à consciência de cada um manter a atividade física», que José mantem enquanto cuida de uma faixa etária de risco em Angra.

Um ex-Benfica à volta da borracha e do quartel

Jogador, operador e bombeiro. Fábio Reis, guardião formado no Benfica, de onde saiu quando era concorrente de Ederson e José Sá nos juniores, está em Aljustrel há nove anos.

Com o futebol de parte, o foco está orientado para conciliar horários com a mulher, bombeira efetiva, para não deixar os dois filhos menores sozinhos em casa. Ali não há teletrabalho e sai-se, até para turnos à noite. Fábio é operador na Strucflex, fábrica ligada a uma multinacional francesa. Recebe matéria-prima para fazer produtos de borracha, como sacos de elevação ou reservatórios de água e de combustível, que depois seguem para França, para exportação para todo o mundo. Para atenuar o fluxo dos cerca de 70 trabalhadores, fixaram-se três turnos, entre os quais Fábio vai saltando a cada semana: 21h00-05h00; 05h00-13h00; 13h00-21h00.

«Como trabalho numa equipa de quatro, acaba por ser mais fácil o distanciamento. A empresa tem disponibilizado o material para desinfetar e cabe-nos ter cuidado, sabendo que o contacto é inevitável a 100 por cento», conta. Fábio opera na secção de vulcanização, a da cozedura dos produtos. As máquinas não param, para evitar desemprego. «Acaba por ser ingrato, nesta situação o Estado não dá garantia que a empresa pode parar e que os salários serão pagos. A empresa, não querendo despedir, em França estiveram simplesmente parados três dias». Isso atrasou o transporte de matéria-prima, mas o trabalho não abranda. «Estamos sempre a trabalhar duas semanas à frente, porque temos de preparar produtos», explica o guarda-redes de 28 anos, também bombeiro voluntário, papel reforçado no verão, altura de maior risco de incêndios.

No plano desportivo, Fábio antevê dificuldades para os clubes. Para o Mineiro Aljustrelense. Diz que todos vão ter de unir-se com as repercussões económicas. «Nada está definido, o que é complicadíssimo para jogadores e clubes. A gente aqui, quer queira, quer não, é semiprofissional. É tudo uma ajuda, o que o clube dá. Acho que a vontade dos clubes é pagar, mas é complicado e temos de pôr-nos do outro lado. A informação que chegou foi para os atletas ficarem descansados com o mês de março e que íamos vendo a situação. Acredito que queiram ajudar os atletas, mas se não houver verbas a entrar, é complicado», constata. Para já, vai treinando em casa para manter a forma. «Mas não é a mesma coisa. Sente-se falta», atira Fábio, cujo filho é afilhado de Diogo Figueiras, um dos amigos que ficou do Benfica.

As preocupações vão de Fábio a Luís. De Marafona a José. Pelas famílias. Por um futuro incerto nos empregos. No futebol. As saudades deste existem. A incerteza financeira de vários clubes idem, tal como a indecisão na época. «Fiquem em casa e tenham sentido de responsabilidade de proteger-se a si e aos outros». É isto, para já. Para quem pode. Palavra de enfermeiro.

Fábio Reis, formado no Benfica, é guarda-redes do Aljustrelense há nove épocas (Foto: António Santos)