O Sul. A vasta planície abre-se à frente dos nossos olhos. A linha do horizonte fica, subitamente, mais larga, como se o espaço se libertasse. É aqui, mesmo antes do destino de veraneio preferido dos portugueses, que mora gente de paz, espalhada por terras de pão (como diz a placa à entrada da Vidigueira, antes de chegar a Beja), com motivos para sorrir ainda mais por estes dias.

O Cante Alentejano foi elevado à categoria de Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO e ganhou, compreensivelmente, uma visibilidade inusitada. Para os de fora. Por que, por estes lados, a tradição ainda passa de geração em geração. Um pouco como no futebol, de resto.

E se o género musical, na sua génese, está ligado aos trabalhos da lavoura, também se cruza com o desporto-rei. Como? Já vamos ver, numa reportagem ao coração do Cante, em Aljustrel, onde existe o grupo coral mais antigo desta especialidade. Mais antigo do Alentejo, mais antigo do Pais, logo, do Mundo.

O Grupo Coral dos Mineiros de Aljustrel foi fundado em Janeiro de 1926 com o nome de Grupo Coral Dr. Bento Parreira do Amaral, passando mais tarde a viver sob a égide do Sindicato da Indústria Mineira do Sul. Distingue-se dos outros por representar não uma atividade agrícola, mas a indústria extrativa.

Calça e camisa de cotim azul, e capacete com lanterna, fazem parte da indumentária oficial deste grupo constituído, atualmente, por 27 gargantas, com pessoal entre os 23 e os 79 anos. Entre eles, vários ex-futebolistas do clube local, o Sport Clube Mineiro Aljustrelense, também ele instituição umbilicalmente ligada à mina que, afinal de contas, dá fama à vila.

O grupo honra a tradição local e o dia escolhido para trazer à liça este trabalho não poderia ter sido melhor escolhido: 4 de Dezembro, dia de Santa Bárbara, a padroeira dos mineiros. Em Aljustrel, não se lembram só dela quando troveja.

Uma equipa de juvenis do Mineiro Aljustrelense dos anos 90 (António Campos é o primeiro a contar da direita, em baixo)

António Campos, porta-voz do coral, jogou futebol vários anos. Passou pelas camadas jovens do emblema tricolor e também fez parte do plantel sénior. «Quando comemorávamos vitórias, nesses momentos de descontração, acabávamos sempre a cantar as modas que todos conhecíamos desde pequenos», relembra.

É daqueles que cresceu a jogar nas ruas de Vale d’ Oca, mítico bairro mineiro paredes-meias com o campo onde o clube atuava até há pouco tempo e berço de vários talentos. Sempre dividido entre o desporto – foi também um exímio praticante de marcha atlética – e o Cante.

«Devia ter uns oito anos quando entrei para um grupo infantil misto da altura, o Papoilas de Abril, mas… não correu bem. Só fui duas vezes. A ensaiadora teve de me expulsar. Era demasiado rebelde. Passava o tempo a jogar à bola. Qualquer coisa servia: uma garrafa de plástico, até ao sapato de algum colega.»

Resolveu seguir o conselho da professora e dedicou-se mesmo ao futebol, mas sem nunca deixar de lado a arte que lhe deixaram como legado o avó, o pai ou os tios. «Lembro-me de os acompanhar desde tenra idade. Chegou a haver excursões para os ver atuar. Momentos únicos que deixavam qualquer criança maravilhada. O Cante, para a minha família, é sagrado», explica, com emoção.

O apego é tal que, depois de perder o pai, só por uma vez teve coragem de abrir o saco onde ele guardava o traje. «Foi para tirar de lá uma camisola do Benfica, ainda por estrear, que ele comprou para vestir quando o clube fosse campeão. Acredito que as suas melhores recordações em vida estarão lá dentro.»

«Agora as pessoas vão saber o que é cantar à alentejana»

Sentimento e identidade são duas palavras que António Campos relaciona amiudadas vezes quando fala do Cante. Um sentir muito próprio, que toca quem é de Aljustrel, especialmente aos que que fazem parte da diáspora da vila. «O interesse já era grande, mas agora, claro, vai falar-se mais. As pessoas vão saber o que é cantar à alentejana. Vão perceber aquilo de que falam as canções, as nossas raízes, o que é ser mineiro.»

Tal como o Fado, também Património da Humanidade, este género musical começou por ter má fama. «Durante muito tempo, associou-se o Cante Alentejano aos bêbedos ou aos velhos», reconhece, ao mesmo tempo que procura provas de que a tradição não só é sólida, como tem bases para crescer:

«Há um grupo de miúdos, que ensaiam com o maestro da Banda Filarmónica, e também já fomos contatados pela escola secundária para, juntamente com o professor de educação musical, darmos o nosso contributo e, quem sabe, descobrir novos valores.»

Num grupo coral alentejano, para quem não sabe, existem três funções. Ernesto Mestre tem, aqui, um papel determinante. É o ponto. «Dou o começo da moda para depois a malta poder romper. Se o ponto não for bem feito, o cante sai todo desfraldado», explica, divertindo-se quando lhe perguntamos se tem cuidados com a voz:

«Não ligo muito. É algo que nasce com a pessoa. As afinações fazem-se com uma ripada, que limpa logo a garganta. Um belo tintol faz logo efeito. Parece o spray que aplicam nos jogadores [risos] …»

Ernesto Mestre, o ponto, dá início à canção

Em campo, era extremo direito. «Rápido? Era uma bala! Fiz a formação e depois passei para os seniores. Tive, entretanto, uma lesão, e a concorrência era muito forte. Para entrar na equipa, era uma carga de trabalhos. Os mais velhos metiam medo à gente e, além disso, o Cante foi sempre o meu male. Era o tempo da miséria. Com 40 escudos por mês, não dava para viver da bola», desfia.

Das muitas memórias que tem, das inúmeras saídas e atuações, recorda particularmente uma em Campo Maior, em Setembro de 2000, quando o clube presidido por João Nabeiro estava no escalão principal. Convidados de honra para cantarem no intervalo do jogo com o FC Porto, os baixo-alentejanos cativaram as gentes do Norte:

«Até o Pinto da Costa se meteu connosco e alguns jogadores ficaram a ouvir-nos antes de irem para os balneários, como o Vítor Baía, o Paulinho Santos, o Secretário. Simpatias clubísticas à parte, foi um grande convívio entre todos nós.»

Com origem nos cantos gregorianos, e eventuais raízes árabes, ou mesmo pré-romanas, segundo alguns especialistas, o Cante sempre foi o escape para uma população que fazia do uso da terra o seu modo de vida, ou, neste caso, debaixo dela.

Cantava-se nas vendas (tabernas), um espaço nos dias atuais ameaçado de extinção, mas que, no que depender dos municípios alentejanos, como Aljustrel, não irá atingir este património de valor incalculável, para que se continue a ouvir o instrumento musical mais poderoso de todos: a voz.

Canta-se antes dos jogos

Os pontos de contato entre o Cante e o futebol estendem-se ao clube da terra. A entrada em cena, em Setembro, de Francisco Agatão reavivou um procedimento motivacional que o antigo adjunto de Carlos Manuel criou no Salgueiros. Antes dos jogos, ouve-se no balneário o Hino dos Mineiros, provavelmente o cântico mais emblemático do grupo coral.

«É uma canção que me tem acompanhado ao longo da vida. Diz-me muito. Não sou mineiro, mas sou alentejano e bebo muito daquilo que a letra nos diz, em termos de fraternidade, do sacrifício… tudo o que ela envolve. É isso que pretendo transmitir aos meus grupos de trabalho», conta o treinador, natural de Beja, e que, finalmente, pôde entoar a canção no sítio onde ela nasceu, depois de a ter cantado em Vidal Pinheiro, Braga ou Campo Maior.

Não é o haka neozelandês, mas dá coesão ao grupo e ajuda a passar a mística. «Quando o cantamos, esquecemo-nos de tudo. Só há espaço para o sentimento. Entra-nos na alma. Sentimos uma força muito grande e entramos em campo com mais vontade de lutar», explica Carlos Estebainha, o capitão do Aljustrelense.

Carlos Estebainha, capitão do Mineiro Aljustrelense

O esquerdino fala ainda da «responsabilidade» que o hino transmite aos jogadores, além da «união e sensação de pertença». «É algo nosso, transmite-nos o espírito mineiro, e até arrepia quando as vozes de unem», assegura.

A ideia trazida pelo treinador teve acolhimento imediato no plantel, onde pontificam, à semelhança do próprio capitão, vários mineiros de profissão. «Por vezes, tenho de treinar sozinho de manhã, e, à tarde, vou para a mina. Sou do fundo, faço oito horas seguidas lá em baixo, mas hoje até é um dia bom, não se trabalha. É Santa Bárbara. Quem fica nos serviços mínimos é pago a 300 por cento», conta.

O balneário resguardou-se, compreensivelmente, da reportagem do Maisfutebol, mas houve abertura para explicar como funciona esse momento especial: «Os brasileiros, ao princípio, sentiram mais dificuldades, mas como já estão há alguns anos em Portugal, agora também já cantam connosco. Só o Érico, que chegou há pouco tempo, é que ainda está a aprender.»

Assim se motivam os jogadores do Mineiro Aljustrelense, para a árdua tarefa de se manterem no Nacional de Seniores. Com 81 anos de história, o clube também merecia ser considerado património cultural.

O Hino dos Mineiros:

Aqui noutra versão: