No Pisão, ali na serra entre Sintra e Cascais, há uma associação que utiliza o futebol como medicamento. Não será a única, seguramente, mas é ainda um caso raro.

Chama-se Centro de Apoio Social do Pisão e pertence à Santa Casa de Cascais. Tem a seu cargo cerca de trezentos adultos, todos eles pacientes mentais: são pessoas que em determinada fase da vida adquiriram um distúrbio por razões muito diversas. Hoje em dia têm a vida condicionada por esquizofrenias, bipolaridades, depressões major e distúrbios de personalidade.

O futebol, conta a animadora sócio cultural Cláudia Dias, ajuda-os das mais diferentes formas.

«Nós utilizamos o futebol como terapia. A verdade é que os resultados são muito bons: chegam ao fim do dia cansados, diminuem na medicação e criam um verdadeiro espírito de grupo», conta.

«Mas o principal benefício, para além de terem mais saúde física, é chegarem ao fim do dia cansados. Para mim essa é maior mais-valia. Muitos deles têm comportamentos errantes, relacionados com furtos e agressões, e o futebol fá-los direcionarem a atenção para outro lado.»

Duarte Araújo é professor na Faculdade de Motricidade e tem trabalhado na investigação sobre o efeito do desporto na saúde mental. Para ele faz todo o sentido usar o futebol como medicamento.

«O futebol não cura, nem pouco mais ou menos, a esquizofrenia ou os distúrbios de personalidade, mas intervém ao nível do nosso sistema nervoso central», refere.

«Faz com que o sistema nervoso central fique mais regulado, ativando as zonas ligadas à memória e às emoções, e intervindo ao nível dos neuromediadores de ligação entre células. Previne uma descarga desses neuromediadores e faz com que funcionem melhor todas as funções normais do indivíduo. Por isso a medicação para garantir o funcionamento básico deixa de ser tão necessária.»

Ora voltando ao Pisão, interessa dizer desde já que o Maisfutebol visitou o centro numa sexta-feira, o dia que está destinado ao futebol. Num campo improvisado num relvado jogam apenas seis jogadores. Geralmente são bastantes mais, mas nem todas as semanas é fácil motivar os pacientes.

As doenças mentais trazem o peso de tornar as pessoas sedentárias.

Indiferente a isso, Carlos Manguito grita ordens. Diz aos jogadores que locais devem pisar, como se devem movimentar, que opções é suposto tomarem. Tudo como se fosse um treino profissional.

Foi treinador profissional toda a vida, trabalhou aliás vários anos nas camadas jovens do Benfica e posteriormente esteve com várias equipas da zona de Sintra, sempre no futebol de formação. Aos 61 anos resolveu dedicar algum do seu tempo às pessoas com distúrbios mentais voluntariamente.

«Tento ajustar o treino, dentro das condicionantes óbvias, ao que é a realidade do futebol. Não sou tão exigente taticamente, para já, mas tecnicamente quero que se aproximem o máximo possível do que é o jogo. Não andar a correr atrás da bola só por correr», refere.

«Faço alguns exercícios ajustados às capacidades deles e noto que melhoram significativamente. A realidade do futebol tem de ser ajustada às circunstâncias que aqui existem. Mas eles tentam e falham, tentam e falham, exatamente como aconteceria num treino de futebol normal.»

Cláudia Dias acrescenta que esta forma de trabalhar do treinador Carlos Manguito é fundamental no sucesso da atividade futebol entre os pacientes.

«Eles tratam-no por mister, têm muito respeito por ele e fazem tudo o que ele diz. Há um grande respeito pela figura do treinador. Exatamente porque sentem que ele trabalha com eles de forma profissional. Gostávamos de lhe pagar, infelizmente não é possível. Mas ele merecia», adianta.

«Neste momento eles já se sentem uma equipa. Quando o treino começa, cada um já sabe o que tem que fazer. Isso é muito importante para nós, porque eles são muito solitários e individualistas. Temos aqui pessoas que não fazem mais nada a não ser futebol. E o futebol consegue integrá-los e fazê-los sentirem-se parte de algo.»

O professor Duarte Araújo adianta que os aspetos sociais são um dos domínios em que o futebol tem melhores resultados, quando utilizado com o objetivo de criar impacto nas doenças mentais.

«O futebol intervém muito bem ao nível social: é uma oportunidade de as pessoas estarem em contacto, pelo que reduz o isolamento social, reduz a exclusão e permite que as pessoas, dentro de regras claras, possam cooperar e competir. Aumenta a saúde mental na relação com os outros.»

Mas há mais, claro.

«Outro nível tem a ver com a ativação dos aspetos mais internos. Ao correrem, travarem, fazerem força, enfim, estão a alterar o estado de funcionamento do corpo, e por consequência a intervir sobre o sistema nervoso central, tornando-o mais robusto e não permitindo que entre num estado de funcionamento que caracteriza os estados de ansiedade ou depressão», acrescenta.

«Um último nível tem a ver com o sistema cognitivo. O futebol ao ativar o sistema nervoso central, ativa também todas as áreas corticais, as quais estão ligadas aos processos de tomadas de decisão, de inteligência e de memória. Ao ativar essas áreas, está-se também a torná-las mais funcionais: a terem mais oxigénio e a funcionarem melhor. O futebol, ao contrário da corrida, implica decisões: correr, passar, parar, orientar-se no espaço. Por isso intervém nestes aspetos da cognição.»

Ora tudo isto se percebe quando se fala com alguns dos pacientes que jogam futebol. Tiago Santos, paciente de 30 e poucos anos, destaca os aspetos sociais dos treinos e dos jogos.

«Gosto de jogar à bola. Se me deixa mais cansado? Não, deixa-me mais feliz e mais satisfeito. Sempre quis jogar e gosto de estar aqui com os meus colegas, com o mister, com toda a gente», conta, claramente intimidado pela presença de um gravador.

Mário Vultos, um pouco mais velho, ficou com uma deficiência na fala, mas está mais à vontade.

«A mim entusiasma-me jogar futebol. Gosto de correr com a bola e marcar golos. Fico contente e sinto-me bem. Estou sempre à espera que chegue a sexta-feira para jogar», acrescenta.

O treinador Carlos Manguito, ao lado deles, ouve-os com atenção. Não pode deixar de sentir um certo orgulho na forma como os jogadores que orienta falam com alegria dos treinos.

«Sem dúvida que isto é terapêutico para eles. Indo de encontro ao trabalho que o Prof. André Seabra desenvolve na Federação, o futebol é um medicamento. Não há dúvidas. Os benefícios não são só físicos, tem várias outras vantagens e temos de explorar isso tudo», acrescenta.

«Toda a minha vida me dediquei ao futebol e isto não é só treinar e ganhar jogos, a parte educativa e terapêutica também tem de se explorada, porque os benefícios são óbvios. Muitas vezes os treinadores querem é treinos e jogos e ganhar. Mas eu passei a minha carreira dedicada ao futebol de formação e tenho um espírito mais aberto para outras áreas do futebol.»

Apesar disso, a competição está no horizonte do Centro de Apoio Social do Pisão. É o próximo passo e é fundamental no processo de integração dos pacientes através do futebol.

«A intenção é criar um grupo para participar em torneios e campeonatos. A parte competitiva, mas saudável, também é importante para eles. Têm de ter outras vivências, outras experiências e têm de se lhes proporcionar outro tipo de integração», conta o treinador Carlos Manguito.

«Há uma equipa de outra instituição, a Quinta Essência, que uma vez por mês vem cá jogar. Temos também equipas voluntárias que jogam contra nós, os próprios escuteiros, e agora queremos entrar em torneios. Eles próprios pedem isso, querem que isto se torne mais sério», diz Cláudia Dias.

O próximo passo para o Centro Social do Pisão é colocar os doentes a competir e o próximo passo para as instituições de apoio a pacientes mentais em geral é colocar os doentes a jogar futebol.

Palavra do professor Duarte Araújo.

«Existem alguns locais que já fazem um bom trabalho a este nível, mas não existem muitos sítios a prescrever o futebol especificamente para patologias mentais, como já existe para patologias biológicas. Penso que esse é um passo que deve ser dado muito em breve. Há um grupo em Copenhaga que está mais avançado e que está só agora a entrar nas patologias mentais.»

Porque o importante, como diz Carlos Manguito, é olhar para os doentes: e trazer-lhes ânimo.