Naquele dia, algures em abril de 1995, o desespero teve de ser contrariado por um enorme instinto de sobrevivência.

Os confrontos em Kirkuk escalavam e uma mulher via-se encurralada por uma guerra cuja ameaça estava demasiado perto.

A única solução encontrada foi fugir. Sem pensar duas vezes. Apenas com os três filhos, de 12, sete e três anos.

A eles, juntou-se a irmã daquela mulher e também os filhos, com cinco e sete anos.

Para trás, além de toda uma vida, ficava o marido, mobilizado para combater e que ela nem sequer conseguira avisar da fuga. Mas não havia alternativa. Era de armas e bombas que se fugia, apenas com o objetivo de sobreviver. Nada mais importava.

E nessa caminhada de dias sem fim, rumo a norte, à fronteira com a Turquia, sinais de esperança foram sendo recebidos, muitas vezes, graças às portas de desconhecidos que se abriam para abrigar e alimentar aquelas duas mulheres e cinco crianças.

O sentimento de segurança, porém, só seria conquistado a mais de 4.000 quilómetros de distância do ponto de fuga, no campo de refugiados de Grou, no norte da Holanda.

E só aí entram as memórias do pequeno Osama, o mais novo dos sete que haviam feito a travessia pela sobrevivência.

Alertado pelos vizinhos, o soldado iraquiano que ficara em combate, seguiu o rasto da mulher e dos três filhos e, cerca de meio ano depois, conseguiu reunir-se com a família.

«Disso já me lembro. Uma das primeiras memórias que tenho deve ser de quando o meu pai chegou à Holanda e me agarrou ao colo pela primeira vez. O resto foi-me contado pela minha mãe, eu era muito pequeno», explica Osama Rashid, hoje jogador do Santa Clara.

Rashid com o pai, ainda no Iraque, antes de a guerras lhes mudar a vida

«A minha família estava armada para o caso de ter de se defender»

«Isto não é uma simples epidemia, é uma guerra.»

A forma como o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, justificou a declaração do estado de emergência, no dia 18 de março, caiu como uma bomba em Portugal.

A essa primeira referência seguiram-se oito réplicas da palavra explosiva.

Guerra. Guerra. Guerra. Guerra. Guerra. Guerra. Guerra. Guerra.

Num país habituado à paz, o impacto da repetição da palavra criou pânico, demonstrado mais sob a forma de falta de civismo e sentido coletivo, do que outra coisa qualquer que pudesse provocar vítimas ou destruição imediatas.

Mas para quem realmente já teve de lidar com verdadeiras guerras, a comparação acabou por resultar no esboçar de um sorriso.

Ainda que conscientes da seriedade do problema que se vive não só em Portugal, mas um pouco por todo o mundo, os protagonistas desta nossa história, respiram de alívio com a «guerra» que agora têm pela frente.

E isso é válido até para quem, sempre por pouco, conseguiu escapar duas vezes de viver por dentro o sentimento de estar em guerra.

Falamos de Avto, jogador georgiano do Leixões, que nasceu cerca de dois meses antes da queda da URSS e independência do seu país, e que se mudou para Portugal em 2007, cerca de um ano antes de um novo conflito com a Rússia.

«O clima sempre foi tenso no meu país, mas o pior foi o que aconteceu em 2008. Caíram bombas que fizeram prédios ruir. Alguns dos meus amigos mais chegados voluntariaram-se para ajudar e foram armados para fazerem o controlo das fronteiras», confessa, em declarações ao Maisfutebol.

E se ele próprio não se tivesse mudado para Portugal, o que teria feito?

«Se eu ainda estivesse no meu país, provavelmente também me teria voluntariado porque o sentimento de raiva e injustiça que o nosso povo sentia era muito grande», assume, o então adolescente, que teve acompanhar tudo à distância.

«Os meus familiares chegaram a estar armados para o caso de precisarem de se defender. Infelizmente morreu muita gente, ainda que pudesse ter sido muito pior», resume.

Avto (ao centro) na companhia da irmã e do melhor amigo, durante a infância, na Geórgia

«Sabes o que é viver quatro meses refugiado num bunker?»

Se Avto escapou por pouco a dois conflitos armados, Igor Stefanovic, companheiro sérvio no Leixões, apesar de ter apenas 32 anos, passou por duas guerras, a segunda das quais, apanhou-o adolescente.

E por isso mesmo, as cicatrizes que traz na memória estão bem vincadas.

Ao recordar esse período, o guarda-redes que está em Portugal desde 2012 e que chegou a representar o FC Porto, não consegue esconder a indignação que assume ainda sentir.

«Na segunda guerra que vivi, em 1999, eu tinha 13 ou 14 anos e lembro-me muito bem do pânico que sentíamos sempre que ouvíamos o som de aviso de ataque aéreo. Tínhamos todos de nos esconder nos bunkers, debaixo das casas ou prédios. E vivíamos os bombardeamentos com muito medo, sem saber se o sítio onde estávamos ia ser atingido», relata.

Num discurso cru, temperado com bastante revolta, ainda que sublinhando que a sua casa nunca foi atingida, Stefanovic recorda de forma particular uma tarde em que brincava com amigos.

«Eu nunca mais me vou esquecer de um dia em que estava a jogar basquetebol, com 14 anos, e vi um míssil preto passar por cima da minha cabeça. Tinha sido lançado por um barco no mar Adriático, como tantos outros que passavam por cima de nós. Aquele passou e depois de um ou dois minutos ouvimos uma grande explosão», relata, concluindo: «isso não se esquece.»

Outra coisa que o guardião não esquece são as noites. Natural de Nis, cidade que ficava a menos de 100 quilómetros em linha reta de Pristina, capital do Kosovo, território pelo que justificou aquele conflito, o jovem Igor via as suas noites, invariavelmente, iluminadas pelo detonar de explosão atrás de explosão.

«À noite era horrível. Viam-se os clarões das explosões, que faziam com que ficasse uma luz como se fosse outra vez o pôr do sol. Eu ficava à janela a ver aquelas luzes e a pensar quantos prédios ia ouvir no dia a seguir que tinham caído. Quantos eram os mortos provocados pelos ataques», lembra.

Os episódios diários daquele período marcaram de forma permanente a vida de Stefanovic.

«Sabes o que é viver quatro meses refugiado num bunker? Sem ter as coisas mais básicas e sem saber quando e onde vai cair a próxima bomba? Só preocupado em cuidar dos teus. Porque aí, se uma bomba cair e atingir um prédio, não são só os mais velhos que vão morrer. Tenhas a idade que tiveres, por muito saudável que sejas, não tens hipótese», enaltece.

«Fugir de uma bala nas costas é impossível, deste vírus não»

Por ter sido quem viveu mais intensamente o que é uma guerra, Stefanovic é também aquele que afasta os dois cenários de foma mais veemente.

«Vejo muitas pessoas assustadas, mas todos têm de saber que numa guerra a sério, morre muito mais gente. E não falo só das vítimas dos combates, mas também aquelas que sofrem depois com a pobreza que fica depois de um país ter sido destruído. Isso nem se compara com aquilo que estamos a viver neste momento», enaltece.

«Uma bala pelas costas atinge facilmente um alvo, é impossível fugir disso, mas deste vírus dá para escapar. Só temos de evitar contacto com outras pessoas», reforça.

Contudo, desengane-se quem pensa que o guarda-redes desvaloriza a perigosidade da pandemia decretada pela Organização Mundial de Saúde.

«Eu acho que é bom que as pessoas pensem que isto é como uma guerra, porque há um enorme perigo de contágio e é preciso ter cuidado, para ultrapassarmos esta fase mais rapidamente, só não é uma verdadeira guerra», esclarece.

Exatamente a mesma ideia é defendida por Rashid, que está agora separado dos pais, que permaneceram na Holanda, mas que também estão a lidar com a pandemia do novo coronavírus.

«Não se pode comparar este período com o uma guerra. Comentei com os meus pais que em Portugal diziam que isto era uma guerra e eles riram-se. Claro que temos de respeitar aquilo que as entidades disseram, mas não dá para comparar. Podemos sair de casa em segurança, ir comprar coisas ao supermercado. Podemos fazer tudo, desde que tenhamos cuidado», nota, deixando a receita para que tudo possa voltar à normalidade mais depressa.

«Isto não é difícil de passar. Basta pensar que o pior de tudo é ter de ficar em casa. E quando precisamos mesmo de sair, temos de ter todos os cuidados», sublinha.

E para Avto, as coisas também são incomparáveis e simples de resolver.

«Não é possível comparar uma guerra de bombas e armas com esta guerra biológica que vivemos. Claro que isto também mata pessoas, mas é muito diferente. Tudo o que as pessoas têm de fazer é ficar em casa», aponta.

A conclusão, essa, é deixada por Stefanovic, que percebe as diferenças entre o país que o acolheu em 2011 e aquele onde nasceu e cresceu apesar de todas as dificuldades.

«Felizmente, a sociedade portuguesa não tem um passado de guerra. Mas quem já viveu guerras de bombas, guerras de sanções comerciais que obrigam as pessoas a estar em filas intermináveis para comprar coisas tão simples como açúcar, farinha ou leite… essas pessoas sabem que esta ‘guerra’ é uma maravilha. A única coisa que temos de fazer é ficar em casa. O que é isso custa?»

O que é que isso custa?

*Imagem de capa cedida por Rashid, que é o mais novo, surgindo junto dos irmãos mais velhos e de um tio