O sorriso que se abre aqui e ali não disfarça a tristeza que se percebe no olhar. Frishta Qasime é uma menina abatida. Tem um inglês ainda básico, mas esforça-se por dizer tudo. Um amigo, que não a abandona durante toda a conversa com o Maisfutebol, explica que ela nem queria estar ali, junto à Torre de Belém. «Tivemos de a convencer, ela está muito abatida.»

Quando a conversa chega à família, tapa a cara com as mãos para evitar as lágrimas. Dizemos que podemos falar de outra coisa, mas ela responde que não, que quer falar.

«Estou aqui sozinha. O meu pai era chefe do exército e está desaparecido desde que os talibãs tomaram o poder. Só tenho mãe e dois irmãos e duas irmãs mais pequenos, mas não os consegui trazer. Cada atleta podia trazer três familiares. Eu vim com uma prima e os meus tios. Não pude trazer a minha mãe e os meus irmãos. É o que mais quero na vida, tirá-los do Afeganistão, que eles venham viver comigo para Portugal», refere.

Frishta Qasime é de Mazar-i-Sharif, no norte do Afeganistão. Começou a jogar futebol em 2015, representa a equipa de Balkh e desde 2020 que é internacional afegã.

Aliás, é duplamente internacional: desde 2017 pratica também kickboxing, já ganhou seis medalhas de ouro, a última das quais num importante torneio em Cabul, que lhe valeu a chamada à seleção afegã e uma grande festa na cidade natal.

No entanto, e apesar do desporto lhe correr nas veias, por um daqueles caprichos do destino o nome dela não apareceu na lista de 28 internacionais que a ONG Deliver Fund retirou do Afeganistão. Aconteceu com várias jogadoras, aliás, sendo que outras ainda permanecem no Afeganistão.

Por isso só conseguiu sair porque veio a acompanhar uma prima que também é jogadora internacional e os tios. Foi uma oportunidade que era pegar ou largar, ela pegou.

É uma guerreira que se agarra à vida.

Nesta altura a conversa já está a ser acompanhada por vários afegãos. Duas mulheres com seguramente mais de cinquenta anos gritam. Perguntamos o que elas estão a dizer.

«Esta está a dizer que o marido dela ficou no Afeganistão e esta está a dizer deixou lá o marido e dois filhos. Estão a pedir que escreva isso.»

Zaki era um engenheiro eletrotécnico em Cabul. É mais velho, fala melhor inglês, veio para Portugal como familiar de uma jogadora e é ele que ajuda na conversa das meninas com os ocidentais. Ao Maisfutebol confessa que o caso de Fristha Qasime é especial.

«Toda esta gente deixou familiares no Afeganistão. Mas a Fristha é diferente. Ela não tem pai, é muito pegada à mãe e precisa da família para estar bem», refere.

Frishta tem outra particularidade. É hazara, a etnia minoritária no Afeganistão e a mais perseguida pelos talibãs por divergências religiosas: os azaras são muçulmanos xiitas. Por isso tornaram-se um alvo para os talibãs. Ainda no final de agosto foi notícia um massacre a nove homens hazaras. Tudo isso torna a história desta adolescente mais dramática.

«Eu falo com eles, ainda conseguimos falar para o Afeganistão. Se não conseguíssemos falar com os nossos familiares, então dávamos em malucos. Mas estamos sempre preocupados», adianta.

«Também falamos com as outras jogadoras da seleção que ainda lá ficaram e elas pedem-nos ajuda, para as tirarmos de lá. Mas não temos como. Os talibãs estão a dar cabo do país. Uma mulher não pode sair de casa se não for acompanhada pelo marido, pelo pai ou por um irmão. Quando o governo colapsou foi um choque. Os talibãs são homens que vêm das montanhas, não têm famílias nas cidades e não têm respeito por ninguém.»

Portugal recebeu cerca de 70 afegãos, entre jogadoras de futebol e respetivas famílias. São um grupo que, percebe-se, está grato pelo que o nosso país fez por eles. Mas o drama destes afegãos ainda não terminou. A cabeça continua cheia de fantasmas pelos familiares que deixaram na terra deles, que de um momento para o outro se tornou terreno minado.

Frishta Qasime faz parte deste grupo de meninas que quer estudar, quer jogador futebol, quer viver. Aos 16 anos sente que todos os sonhos são possíveis: desde que o mundo a deixe sonhar.

«Quero ser médica e ser uma grande jogadora de futebol, conhecida em todo o mundo. Quero aprender português e estudar medicina. Se vai ser fácil? Sim, muito fácil. Já sei dizer algumas palavras», refere, antes de atirar na língua de Camões: «Obrigado. Olá. Bom dia.»

De véu islâmico preto a cobrir-lhe o cabelo, camisa bege e posição defensiva, conta que saiu de Mazar-i-Sharif, a quarta maior cidade do Afeganistão, no meio de uma grande confusão. Foram dias de incerteza desde que o governo afegão caiu, até abandonar o país.

«Era para sairmos no dia 26 de agosto, mas aconteceu a explosão no aeroporto. Ficamos à espera de notícias, sem saber o que ia acontecer, até que viajámos para a Geórgia e de lá para Portugal.»

Frishta conta que o grupo nunca soube que vinha para Portugal.

«Nunca nos passou pela cabeça. Sempre imaginámos que iríamos para os Estados Unidos ou para o Canadá. Só quando chegámos é que nos disseram que íamos ficar em Portugal. Foi uma grande surpresa, não estávamos à espera. Mas acabou por ser uma surpresa muito boa», sublinha.

«Estamos muito felizes em Portugal. O que mais gosto é das pessoas, muito simpáticas, todas nos receberam muito bom. Portugal é um país muito bom para futebolistas, toda a gente aqui gosta muito de futebol, há muitos campos, é o país do Cristiano Ronaldo.»

O futebol, sempre o futebol. Um bálsamo para as dores que insistem em perseguir as miúdas.

«Temos jogado muito. Todas as manhãs vamos para o parque, fazemos corrida e depois jogamos entre nós. Ainda não pudemos ir a nenhum relvado, só ao parque.»

A conversa com Frishta Qasime aconteceu na terça-feira à noite, na quarta-feira à tarde finalmente cumpriu-se o desejo de ir a um relvado. Em Odivelas, no Multidesportivo das Colinas do Cruzeiro, as meninas afegãs jogaram com Farkhunda Mutaj, a capitã da seleção do Afeganistão, que viajou desde o Canadá para estar com elas e fazer-lhes uma surpresa.

É impressionante como toda a linguagem corporal de Fristha mudou no campo de futebol. Mais solta, ela que no dia anterior andou sempre tímida,, gesticulou, bateu palmas, falou. Nota-se que tem jeito, gosta de se evidenciar, sente-se confiante a jogar futebol.

Farkhunda Mutaj, de resto, tem sido uma peça fundamental em todo o processo de repatriamento das jogadoras, tendo agendado para estes dias uma visita. Apareceu de surpresa junto à Torre de Belém, para onde as jogadoras afegãs e suas famílias foram levadas, e arrancou muitas lágrimas.

Ela é afinal a personalização do sonho que estas miúdas perseguem: uma afegã que saiu do país, construiu uma vida longe de casa, alcançou sucesso e é conhecida no mundo.

Para já, Frishta Qasime tem estado com os cerca de setenta compatriotas num hotel, à espera de novidades e a pensar na mãe e nos quatro irmãos mais novos que deixou em Mazar-i-Sharif.

«Portugal é um país muito seguro. Aqui sentimo-nos em segurança e é muito bom para viver. Mas estou preocupada. Tudo o que mais quero é a minha família aqui comigo.»

E mais uma vez tapa a cara com as mãos.