Boa parte do mundo do desporto amanheceu para a discussão em torno dos eGames por esta altura. Por que o fez só agora? Provavelmente porque, pela primeira vez, a americana ESPN fez capa com um eGamer: chama-se Ninja e foi o primeiro a encher a capa de uma revista de referência.

As reações não se fizeram esperar e foram muito díspares.

Houve quem se tenha divertido com a promoção de um fenómeno cada vez maior, mas houve também quem se tenha revoltado com o facto da revista tratar Ninja por «atleta»: entre adeptos e desportistas, não faltou quem tenha feito questão de sublinhar que os eGames não são um desporto.

A questão não é pacífica, mas a verdade é que foi lançada a ideia de ter os jogos eletrónicos nos Jogos Olímpicos do Japão, em 2020, e essa imagem não saiu do papel.

José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico, diz a esse propósito que «a atividade de eGames não configura uma modalidade desportiva e não pode integrar os Jogos Olímpicos».

«As modalidades desportivas foram criadas num contexto de atividade motora e de luta contra o sedentarismo, não sendo comparáveis com um fenómeno que é competitivo, mas que está muito longe de promover o bem-estar físico», acrescenta.

Ora nesse sentido, como se explica que tantos clubes tenham aderido aos eGames?

«Porque encontraram um produto de natureza comercial que é muito lucrativo. Trata-se de um consumo muito intenso entre os jovens e que é muito alimentado pela máquina comercial, que tem como objetivo vender equipamentos, camisolas e produtos de natureza consumista», responde.

A verdade é que os números que sustentam os eGames são brutais. É uma indústria que deve movimentar 900 milhões de euros ainda este ano e houve um jogo que foi visto em direto por 27 milhões de pessoas: só para se ter uma ideia, poucos vezes a Liga dos Campeões atinge este valor.

Nesta altura estima-se que a audiência dos jogos eletrónicos nas várias plataformas de transmissão ao vivo, como o Twitch e o Youtube, seja em 2018 de 425 milhões de pessoas, devendo ultrapassar os 600 milhões de espectadores em 2020.

Ninja, por exemplo, tem 11 milhões de seguidores no Twitch, 20 milhões no Youtube e gera mais interações nas redes sociais do que Ronaldo, Shaquille O’Neal ou Messi.

O eGamer norte-americano, especialista em Fortnite, ganha aliás cerca de 450 mil euros por ano, entre prémios e assinaturas, sem contar com os patrocínios da Uber, da Samsung e da Red Bull.

Todas as grandes marcas, de resto, querem associar-se aos eGames: marcas desportivas, automóveis, de telecomunicações, enfim. Basicamente sentem que é uma forma rápida de chegar às comunidades jovens, que além de utilizadores entusiastas são influenciadores intensivos.

São estes jovens, na faixa dos 10 aos 16 anos, que mais consomem eGames. Como, aliás, os millenials se habituaram a fazer coleção de comos e jogar futebol, as gerações Y e Z crescem a disputar jogos nos smartphones e a seguir os maiores fenómenos de popularidade nas redes sociais.

Gonçalo Nunes, por exemplo, tem 10 anos e gasta cerca de uma hora e meia por dia a jogar Fortnite e Star Wars Battlefront II.

«Gosto de jogar com os meus amigos e de falar com eles sobre o que que conseguimos fazer nos jogos. Depois sigo alguns gamers no youtube e nas redes sociais. Gosto de seguir o Flex Power e o Ninja. Mas não vejo quando eles jogam um nível a seguir, porque gosto de ser eu a descobrir.»

Gonçalo está a pensar lançar até um canal de youtube. O futebol não entra nestas contas. O jovem gosta de jogar, embora confesse que joga pouco. Consumir... não obrigado.

«Não gosto de ver futebol, acho muito secante. Estar sentado a ver jogos é uma seca.»

Guilherme Viana, de 12 anos, é um apaixonado por eGames e joga na equipa sub-13 do FC Porto. Joga Fortnite, FIFA e UFC, segue o Ninja, o Tfue e o Tiagovsky e divide-se entre as duas realidades: os eGames e o futebol. Mas vê mais youtube do que televisão.

«Se estiverem a jogar grandes equipas, se for o Manchester United ou o FC Porto, prefiro ficar a ver o jogo. Se não estiver a gostar do jogo, vou fazer outra coisa», conta. «Quem me influencia mais quando vou comprar umas sapatilhas? Eu gosto mais de imitar o que vejo nos jogadores de futebol, mas tenho colegas que preferem comprar as coisas que vêm nos eGamers.»

Luís Vieira tem 13 anos, joga no Fofó e também diz que vê jogos de futebol na televisão, mas quando se cansa muda-se para as redes sociais. «Eu jogo mais o FIFA e gosto de ver vídeos sobre o jogo, mas também sigo as transmissões ao vivo no youtube», refere.

Ora tudo isto lança uma questão: não estão os eGames a ocupar o espaço juntos das gerações jovens que devia ser do futebol?

Miguel Cal, administrador da SAD do Sporting com o pelouro do marketing, conta que um relatório de uma consultora internacional feito junto dos maiores clubes europeus identificou que, para estes, a maior ameaça ao futebol no futuro são mesmo os eGames.

Há, portanto, essa preocupação.

«A chamada geração Z está muito agarrada a estes jogos e, por exemplo, ainda recentemente um torneio de League of Legends teve uma audiência superior a qualquer jogo das finais da NBA. Portanto a ameaça existe e é real, mas é também uma oportunidade», adianta Miguel Cal.

«É exagerado dizer que estes miúdos não veem futebol. O que acho é que consomem eGames durante muitas horas. Mas isto gera uma oportunidade para nós. Se os clubes de futebol agarrarem esta oportunidade, trazendo estes miúdos para o seu ecossistema, geram um espaço de cross-selling de audiências, de patrocinadores e de merchandising.»

O administrador lembra que o Sporting já convidou alguns miúdos a ir a Alvalade, tendo acabado a jogar FIFA com os profissionais do clube: Bruno Fernandes, Raphinha ou Nani.

«É assim que podemos trazer o cross-selling para o nosso ecossistema. Outra forma é criar city boards de eGames, onde os miúdos estão a jogar antes dos jogos, e quando o jogo começa vão para a bancada. Enfim, se fizermos um bom trabalho, podemos transformar a ameaça em oportunidade e gerar novas fontes de receita para o clube.»

Raul Faria, coordenador da secção de eSports da Federação, acredita que não se trata de uma ameaça. Exatamente porque é preciso saber olhar para isto como uma oportunidade.

«O futsal ou o basquetebol são uma ameaça ao futebol? Claro que não. Isto depende sempre do posicionamento de cada desporto e a forma como consegue trabalhar em conjunto. Basta ver o trabalho da FPF. Várias vezes levamos os jogadores de eSports ao futebol. A forma como estamos a trabalhar os eSports tem muito a ver com a forma como queremos ver o futebol», refere.

«Os fenómenos de internet e de transmissões online tem crescido, o Twitch foi comprado pela Amazon e está hoje ao nível do Facebook, mas os eSports não deixam de ser compatíveis com as outras modalidades, que também têm de estar no digital. Portanto, mais cedo ou mais tarde, todas as modalidades vão estar online e depois depende da forma como interagem com a audiência.»

Raul Faria lembra que Sporting, Boavista e Sp. Braga já estão nos eSports, sendo este um trajeto que não vai parar. As maiores equipas do futebol europeu, da NBA e da NFL já aderiram, aliás.

Alexandra Schutz é uma portuguesa que trabalha para LP eSports, uma empresa que está a organizar a primeira liga profissional do mundo de eGames. O Barcelona vai participar, por exemplo, mas também vários dos maiores clubes americanos de vários desportos. A liga vai jogar Clash Royal e Rocket League, e pretende massificar ainda mais este fenómeno.

«O desporto e os eGames são compatíveis e estão cada vez mais ligados. A prova disso é que Javi Martínez, Suárez, Griezmann, Messi, jogam eGames. Para além de que os eGames e o desporto tradicional têm targets diferentes.»

Ora por falar em targets diferentes, interessa saber se os miúdos que hoje consomem eGames vão no futuro, quando tiverem mais anos e mais maturidade, mudar de hábitos.

A resposta não é linear.

Quase todos os jovens, aliás, dizem que não se imaginam a deixar de jogar quando forem mais velhos. Outros, como Miguel Esperança, de 24 anos, confessam que jogam todos os dias FIFA. Diogo Rodrigues, de 22 anos, joga uma média de uma hora por dia de League of Legends e segue os vídeos no youtube dos eGamers que mais o entusiasmam.

«Jogo sempre com amigos, é uma boa forma de conviver e ao mesmo tempo estar a jogar algo que me dá prazer. Jogo quase desde que me lembro mesmo. Desde a PS1 e teria uns 5 ou 6 anos.»

O que nos levanta outra questão: conquistar os jovens é garantir várias gerações de consumidores? É provável que sim. Mas esse é outro problema que o futebol terá que saber lidar.

José Manuel Constantino resume tudo em duas frases.

«O futebol ao longo do tempo tem-se habituado a lidar e a ultrapassar desafios, este é mais um. É um novo paradigma de ocupação dos tempos livres com o qual é preciso saber conviver.»

Conviver e provavelmente capitalizar. Até porque os eGames vieram para ficar.