Mesmo em plena pandemia da Covid-19, o futebol português foi retomado sem adeptos no estádio. Um sinal dos tempos. O jogo de que amamos excluiu quem tanto dele gosta.

Três jornalistas do Maisfutebol juntaram os seus testemunhos para contar aos leitores como foi trabalhar cheio de condicionantes neste regresso aos estádios. No fundo, esta é a nossa nova realidade. Uma visita aos bastidores dos jogos da Liga pela mão de três repórteres.  

1. Testemunho de Vítor Maia, jornalista que acompanhou ‘in loco’ o Famalicão-FC Porto:

Um silêncio ensurdecedor. Assim se pode descrever a entrada para a zona de acesso à bancada de imprensa no estádio Municipal de Famalicão. Foi estranho, confesso. Depois de receber a credencial e medir a temperatura (36.2), entrei no estádio e sentei-me no lugar que me estava destinado. Ainda assim, senti que não pertencia ali.

A pouco mais de uma hora para o início do Famalicão-FC Porto quase não há barulho. Há um vazio gigante que incomoda e entristece. O som dos relatos dos colegas das rádios, que tantas vezes passa despercebido, preenche a bancada. Mas não chega. Faltam os adeptos e, por isso, observei um cenário desolador.

Os adeptos fazem falta e só quem está num estádio praticamente deserto pode entender o quanto. Ainda que de máscara e rodeado de embalagens de álcool e gel, consegui alhear-me da tristeza que me rodeava assim que a bola começou a rolar.

Estive atento ao futebol falado pelos jogadores: ao que diziam e como diziam, e às indicações dos treinadores. É preciso não perder o fascínio pelo jogo, mesmo quando este está a fugir entre os dedos de quem o ama, não é verdade?

Tentei levar à grande maioria dos leitores (exceção feita a quem seguiu o jogo nos prédios adjacentes ao recinto) um lado poucas vezes visto do jogo e acho, francamente, que fui capaz de fazê-lo (pode ler aqui a crónica). Porém, é preciso sublinhar que não foi possível assistir às conferências de imprensa tanto de João Pedro Sousa como de Sérgio Conceição face às restrições impostas pela DGS. E, como é importante o leitor perceber o nosso lado, as perguntas foram encaminhadas por WhatsApp para um jornalista que representou todos os outros.

Pela demora no acesso aos conteúdos das imprensas, cheguei a casa por volta das 2h da manhã. A experiência enriqueceu-me profissionalmente, mas pessoalmente senti-me um alien num Municipal de Famalicão sem público.

«Oh, I'm an alien, I'm a legal alien
I'm a man in an empty stadium
Oh, I'm an alien, I'm a legal alien
I'm a man in an empty stadium»


2. Testemunho de Ricardo Gouveia, jornalista que cobriu o Benfica-Tondela na Luz:

Um enorme esqueleto vazio, sem vida e sem alma. Foi assim que os jornalistas encontraram o Estádio da Luz, ao final da tarde de quinta-feira, a poucos minutos do início de um jogo que se antevia eletrizante, em que o Benfica tinha a liderança, perdida antes da pandemia, novamente à mercê. Um jogo para uma elite de 189 pessoas que estavam autorizadas a entrar no recinto. Um jogo diferente para toda a gente, a começar pelos jogadores, mas também para o restrito grupo de 25 jornalistas que o acompanharam ao vivo.

Os profissionais da informação viram-se condicionados pelas rigorosas medidas de segurança, limpeza e higiene, mas nem tudo foi negativo, pelo contrário, também houve aspetos positivos a destacar. A começar pela comunicação proporcionada pelo clube, através da criação de um grupo no Whatsapp, criado exclusivamente para este jogo, com toda a informação necessária aos jornalistas. A começar pelo local de estacionamento, passando pelo levantamento de credenciais, até ao percurso até à bancada de imprensa e, mais tarde, a imprescindível ficha do jogo, desta vez em formato digital.

As mudanças notaram-se, desde logo, a caminho do estádio, com um trânsito limpo, sem os habituais estrangulamentos que circundam a zona em dia de jogo. Poucos minutos da redação até ao Estádio da Luz onde os jornalistas, ao contrário do que é habitual, tinham estacionamento reservado dentro do recinto. Segunda boa notícia. O levantamento das credenciais, junto às piscinas, desta vez com o cartão de cidadão a substituir a carteira de jornalista, também foi mais fácil, sem filas de espera, face ao número reduzido de jornalistas e à ausência dos técnicos de rádio ou câmaras de televisão [o clube proporcionou imagens para todas as estações].

A partir daqui foi obrigatório o uso de máscara. Primeiro constrangimento, face ao calor que ainda se fazia sentir àquela hora e tendo em conta a infindável escadaria que os jornalistas têm de subir para chegar à bancada de imprensa. Para quem conhece, é de tirar o fôlego. O acesso à bancada de imprensa também teve um percurso diferente. Passámos pela Fan Zone, habitualmente cheia de atividade, desta vez completamente despida. As restrições estenderam-se a todo o perímetro do estádio, ficando vedado o acesso a toda zona comercial, bem como às piscinas e pavilhões.

Em vez da habitual porta 30, entrámos pela porta 15 A, que permitiu dar praticamente uma volta ao recinto e passar por zonas que, habitualmente, são interditas. Já na bancada de imprensa, mais uma boa surpresa: a internet, facultada pelo clube, sem adeptos nas bancadas, funcionava a mil à hora. Mais: a bancada tinha um autocolante que garantia que tinha sido previamente desinfetada. Levantando a cabeça, o primeiro choque. As bancadas vazias, mas enfeitadas, nos pisos inferiores, com 21.116 cachecóis que os adeptos foram enviando ao longo da semana [o número promete crescer nos próximos jogos, uma vez que a iniciativa continua a decorrer]. «ESTAMOS CÁ», lia-se numa enorme faixa.

O Benfica procurou, de várias formas, minimizar a ausência dos adeptos e manteve praticamente todos os rituais habituais: as equipas foram anunciadas nos altifalantes, Bruno Lage subiu ao relvado, a águia Vitória fez o tradicional voo e, com a entrada das equipas em campo, ouviu-se a inconfundível voz de Luís Piçarra. Após os primeiros acordes e versos do hino do Benfica, o clube juntou uma gravação de milhares de adeptos. Um cheirinho de ambiente antes do regresso do silêncio demolidor.

Depois ouviu-se o estridente apito de Manuel Mota a anunciar o início do jogo. Faltou o habitual burburinho quando Rafa arrancava sobre a linha, mas ouviam-se perfeitamente as interjeições dos jogadores em campo e até os pontapés mais fortes na bola. Não houve golos, mas o silêncio continuou a imperar e nem se desfez quando foi consumado o resultado negativo. Nem um assobio.

Os jornalistas foram, de imediato, reagrupados, e encaminhados, sob a escolta da simpática Carla Figueiredo, até à sala de imprensa. Um espaço readaptado às necessidades da distância social, com as cadeiras dispersas pela sala e sem microfone para as perguntas. Entre a saída de Natxo González e a entrada de Bruno Lage, a sala voltou a ser desinfetada, com uma equipa de senhoras equipadas com sprays. Mal o treinador do Benfica deu a última resposta, os jornalistas foram convidados a abandonar a sala, alvo de nova desinfeção, e foram encaminhados diretamente para o parque de estacionamento. As últimas peças de reportagem foram, assim, escritas já no interior do carro do jornalista.

3. Testemunho de Adérito Esteves, jornalista que esteve na Cidade do Futebol, nova casa do Santa Clara, a acompanhar o jogo diante do Sp. Braga

Lá desinfetado é este novo futebol. Que ninguém duvide disso.

Aliás, a primeira nota que retiro do regresso a um estádio de futebol é que o consumo de álcool subiu de forma descontrolada.

Jornalistas, jogadores, árbitros, seguranças. Todos. Ninguém se inibe de procurar o álcool de tempos a tempos.

E se uma bola sai de campo e é outra que volta a entrar, junto à linha lateral ninguém descansa enquanto não lhe passa o álcool pelo pêlo. Salvo seja.

Quanto ao álcool, não sei como é nos outros estádios, mas na Cidade do Futebol há para todos os gostos: em gel, em espuma e em frasco. É bar aberto. Tudo em prol da higiene e segurança, pois claro.

Por isso, nem é estranho ver dois frascos de álcool etílico mesmo ao lado do da cabine onde o árbitro pode ir consultar as imagens do VAR. (Mas que isso nunca sirva de desculpa para o que quer que seja.) Estamos só aqui a conversar, não se metam com ideias.

Outras coisas que se passam nessa mesma cabine é que, além de ver as imagens, o árbitro consegue ouvir opiniões para todos os gostos.

Artur Soares Dias, por exemplo, ouviu com certeza as palavras de um radialista: «O corte de Lincoln é limpo. Trincão cai, mas não há qualquer falta». Mas a verdade, é que assim que saiu da cabine apontou para a marca de penálti.

Este novo futebol não faz com que os árbitros se deixem influenciar. Nisso, parece estar tudo igual.

Já o mesmo não se pode dizer das emoções.

O que foram fazer às emoções do jogo, minha nossa!

Os abraços dos jogadores depois de um golo não se perderam por cá. Menos mau.

Mas se já é estranho não ter quem se abrace na bancada, o que dizer de ver um jogador beijar a bola de jogo antes do apito inicial… sem tirar a máscara?

Eu vi André Horta fazê-lo. E não pude deixar de ficar triste. Nem a bola reagiu da mesma forma. Mas sempre se evitou gastar mais uns mililitros de álcool. Valeu a pena? Não me parece.

Instantes depois outro momento triste. Aplausos de contrafação.

Isso mesmo. Nunca pensei assistir a um momento assim, mas foi isso mesmo que saiu das colunas do estádio aquando da entrada das equipas.

Não sei se todos sentiram o mesmo, mas eu achei por momentos que estava dentro de uma sitcom. Daquelas com gargalhadas orientadas. Não se riam, por favor.

Mas calma. Também tive momentos de rebeldia pura. Um exemplo? Beber água. A olhar pelo canto do olho, para ver se ninguém percebia que estava sem máscara e lá vai disto. Ir ao álcool é muito mais tranquilo, podem acreditar.

Mas para comer, assumo que fui um menino. Levantei-me do meu lugar e fui comer para fora da bancada de imprensa. Nessa não me apanham!

E karaoke numa conferência de imprensa, alguma vez alguém nisso? Eu nunca tinha pensado, assumo. (Se bem que evito muito pensar em karaoke. Não é nada bom de ver ou ouvir).

Desta vez, porém, passou-me pela cabeça. Porque na Cidade do Futebol não há ninguém a estender o microfone para quem quer fazer perguntas. Há quatro microfones de pé na sala e quem quer perguntar algo a um treinador na conferência tem de se levantar, dirigir a um dos microfones e dedicar o tema ao treinador sentado à sua frente.

E álcool? Já falei disso?

Tenho ideia que sim. Mas depois do jogo continua a haver muito álcool. E rapidez de mãos, diga-se. Porque à saída de um treinador da mesa onde falou aos jornalistas, há logo quatro mãos a surgirem.

Enquanto duas limpam mesa e cadeiras com panos embebidos em desinfetante, outras duas trocam microfones e desinfetam os que saem e os que entram em cena.

Ninguém facilita. E isso é importante nesta fase. Para que tudo volte ao normal o mais rapidamente possível.

É isso que todos desejamos.