Que tatuagem é que fica na alma de uma criança de 12 anos que saiu de casa dos pais para viver num centro de estágios?

O tema é polémico e pouco consensual.

Há muitos homens da formação - treinadores, diretores ou psicólogos - que se opõem vivamente à opção dos clubes de trazer jovens tão novos para as academias.

No fundo estão a arrancar uma criança do ambiente familiar para a fazer mergulhar num objetivo único e incomparável: tornar-se jogador profissional de futebol.

A verdade, porém, é que apenas dois por cento dos praticantes de futebol se tornam profissionais. O que vai acontecer aos restantes 98 por cento: como vão lidar com o falhanço, sobretudo depois de terem perdido o aconchego de uma vida familiar para se dedicarem inteiramente àquele sonho?

Para perceber que memórias e cicatrizes ficam, o Maisfutebol foi falar com quem há uns anos trocou a casa dos pais por uma academia. As impressões não são consensuais e Rafael Lopes, que viveu no Centro de Estágios do Seixal entre os 16 e os 19 anos, tem uma afirmação lapidar.

«Acho que ser feliz ou não numa academia depende muito de cada um. Sempre me dei bem com a maioria das pessoas, por isso para mim correu bem e eu fui feliz no Seixal. Mas também soube de outros que não gostavam tanto de estar lá ou que passavam por dificuldades. Acho que não posso dizer que é uma coisa má ou uma coisa boa. Lá está, depende de cada um.»

Rafael Lopes já deixou o futebol, hoje está em Coimbra a tirar uma licenciatura em Desporto, mas não guarda mágoas do tempo que perdeu a sonhar ser um jogador profissional.

Até porque, para ele, não foi tempo perdido.

«O início, longe da família e do aconchego dos pais é complicado, claro. Houve um choque muito grande. Mas depois foi tudo bom e as memórias são ótimas. O pessoal foi impecável», conta.

«O convívio com as pessoas, as brincadeiras que havia desde que acordávamos até que nos deitávamos - era todo o dia na palhaçada -, o companheirismo... Nós partilhávamos tudo, todos os nossos segredos, todas as nossas coisas. Enfim, tudo isso me deixa muitas saudades. Custou um pouco sair da zona de conforto, mas depois foi tudo ótimo e guardo excelentes memórias.»

Jorge Abreu passou pela Academia de Alcochete entre os 14 e os 18 anos, também já deixou o futebol, hoje tem um emprego normal, e também ele garante que não ficaram mágoas.

Bem pelo contrário.

«As memórias que guardo desses tempos são boas e deixam muitas saudades. Éramos felizes sem saber. Na altura não dávamos valor a pequenas coisas que agora seriam tudo na nossa vida. Reclamávamos porque estávamos longe de tudo, por exemplo, reclamávamos porque tínhamos de nos juntar e dividir um táxi para ir ao Freeport ou a Lisboa, reclamávamos porque tínhamos de arranjar uma namorada com carta e carro para poder ir passear à tarde, mas hoje percebemos que eram essas pequenas coisas que nos faziam felizes», conta.

«Eu era do Norte, custou-me deixar a família e os amigos, mas depois tudo mudou. Às vezes nem íamos a casa nos fins de semana para estarmos juntos, na palhaçada uns com os outros, a fazer sessões de cinema e torneios de ping-pong ou de matraquilhos. São coisas que deixam saudades.»

Rafael Lopes e Jorge Abreu estão praticamente do mesmo lado da barricada: deixaram o futebol e têm hoje uma profissão normal. Já Nelson Monte está do outro lado: o central viveu entre os 13 e os 17 anos no Centro de Estágios do Seixal, conseguiu um contrato profissional, representa atualmente o Rio Ave, é internacional sub-20 e tem uma carreira promissora pela frente.

Entretanto voltou à cidade natal de Vila do Conde, mas, tal como Rafael Lopes e Jorge Abreu, não lamenta o tempo que passou longe de casa.

«As memórias são boas. Obriga-nos a amadurecer e a ficar homens mais cedo. É difícil deixar a família e os amigos para ir viver para longe, mas é uma experiência única e agradeço a Deus pelo tempo que passei no Seixal. Ainda hoje guardo amigos desses tempos», refere.

«Há pessoas que podem ver os centros de estágio como um bicho que arranca as crianças dos pais, mas verdade é que aquele é o sonho dessas crianças. Além disso os clubes dão um grande apoio às famílias para ir visitar os filhos. O Benfica, por exemplo, pagava as viagens aos meus pais para irem ver os jogos, estava sempre em contacto com eles, ligava-lhes a perguntar se estava tudo bem com eles, se precisavam de alguma coisa, enfim tentava ter os pais sempre perto do Seixal.»

O psicólogo Hélder Leal, que trabalha particularmente com a adolescência, partilha da opinião de Nelson Monte: as academias de formação não são uma situação de rutura com o ambiente familiar.

«Estes jovens não vivem uma situação semelhante à vivida pelos filhos de pais separados, por exemplo. Neste caso eles são os artistas principais: a realidade não lhes é imposta, é uma opção deles. Além disso os pais não desaparecem de repente. A família continua por perto», sublinha.

«Há uma coisa que é preciso ter em atenção: o meio cada vez é mais exigente, a sociedade cada vez é mais exigente e os pais tentam por isso estimular as capacidades dos filhos. Mas a verdade é que lhes impõem tantas atividades extracurriculares que acabam por obrigá-los a começar o dia muito cedo e a terminá-lo muito tarde. Os jovens acabam por não ter tempo para o que mais precisam: para se distraírem e serem jovens. Por isso, o tempo que estas famílias estão juntas muitas vezes não é tempo de qualidade. Se os jovens que vivem em centros de treinos, apesar da distância, conseguirem ir ao fim de semana a casa e passar tempo de qualidade com os pais, não têm nenhuma privação em relação a outros que vivem em casa dos pais.»

Para Hélder Leal há, de resto, um pormenor que é fundamental para perceber como os centros de estágio não são uma má influência para quem sai do ambiente familiar.

«Quando um jovem é convidado a entrar num centro de estágio é porque reúne uma série de qualidades pouco comuns. Não é qualquer jovem que tem essa possibilidade de ir para uma academia. Portanto ele tem uma aptidão especial e um interesse em ser jogador de futebol.»

A partir daqui, acrescenta o psicólogo clínico, tudo muda de perspetiva na cabeça do jovem.

Diogo Matos não traça um cenário tão otimista. Para o antigo diretor da Academia Sporting, em Alcochete, é preciso ter muita ponderação e prudência na forma como se tira uma criança de casa.

«Nada substitui a vivência com o seio familiar. Os clubes querem apostar na recolha dos melhores jogadores em todo o território do país, mas devem estar ao mesmo tempo conscientes da necessidade de substituir a presença dos pais. Porque a vida para estes miúdos não é fácil», conta.

«Talvez as idades de início de uma experiência destas pudesse ser mais regulamentada. Estas situação vão sempre acontecer, os clubes vão continuar a querer captar os jovens promissores, por isso talvez fosse bom ouvir pais, psicólogos, enfim, pessoas que podem ajudar e estabelecer que a idade mínima para ir viver para uma academia fosse 14 ou 15 anos.»

Diogo Matos lembra que é muito complicado para uma criança que abandona a casa e fica longe dos pais chegar ao fim de semana, por exemplo, e não ser convocada para o jogo: está ali para seguir um sonho, está a fazer sacrifícios para o agarrar, mas sente que ele lhe está a escapar.

A desilusão, a frustração e o sentimento de fracasso vão tomar conta dessa criança. Por isso muitos jovens, sobretudo quando são mais novos, acabam por desistir de viver longe dos pais.

Fábio Novo concorda com Diogo Matos. Ao contrário de Rafael Lopes ou Jorge Abreu, não chegou ao centro de estágios com 14 ou 15 anos: chegou com 12, o que faz toda a diferença.

«Custou-me muito. Com 12 anos, nenhum miúdo está preparado para sair de casa dos pais, nenhum miúdo está preparado para ficar meses longe da família. Aos 12 anos não se está preparado para ficar sem o beijo da mãe ou sem a festa do pai. Tem a ver com a falta de carinho, com jantar em casa, com aqueles momentos de partilha que se perdem.»

O jovem de 22 anos, que representa a equipa sub-23 do Cova da Piedade, é natural de Santa Maria da Feira e ficou a viver a três centenas de quilómetros dos pais. Durante sete anos, a casa dele foi o Centro de Estágios do Seixal e a família dele foram outros miúdos com o mesmo sonho.

Diz que não é contra as academias, mas é contra os jovens mudarem-se para uma academia muito novos, como por exemplo aconteceu com ele.

«Se deixava um filho meu sair de casa para ir para um centro de estágios? O meu pai já me fez essa pergunta, curiosamente. Deixava um filho meu ir para um centro de estágios a partir dos 15 anos. Antes disso não, antes disso é muito cedo», sublinha.

«Um miúdo de 12 ou 13 anos não está preparado para ficar sem os pais, para chegar a casa e não falar com eles, para não jantar em família. São coisas que nos marcam para toda a vida.»

Rodolfo Castro esteve também sete anos numa academia, neste caso em Alcochete, e concorda que o início não é fácil. Mas depois disso é perfeito, garante.

«Entrei para o Sporting aos sete anos e tinha o objetivo de ir para a Academia, porque queria ser jogador. Além disso estava cansado das viagens de Lisboa para Alcochete, de acordar todos os dias às 7 horas para só voltar a casa às 11 da noite. Por isso quando atingi a idade mínima, que era 12 anos, fui para a Academia e na altura isso para mim foi a concretização de um sonho», lembra.

«Os primeiros dois ou três meses foram complicados, foi muito difícil separar-me dos pais, mas fui iludido pelo sonho de ser jogador. Chorei muitas vezes, liguei muitas vezes à minha mãe a dizer que queria desistir de ser jogador e ir para casa. Mas acordava no dia seguinte, ia à escola, depois ia para o treino, a bola começava a rolar e tudo passava.»

Hoje tem 25 anos, joga no Beira Mar e só tem memórias boas de Alcochete.

«Acabou por ser bom sair de casa tão cedo, porque me permitiu aprender muitas coisas que os outros miúdos não aprendiam», acrescenta.

«Depois do Sporting passei por clubes como o Académico de Viseu, a Naval, o Mirandela ou o Lusitano e percebi que os jogadores que vinham de academias, não só de Alcochete, mas também do Benfica, do FC Porto ou do V. Guimarães, estavam mais bem preparados para viver sozinhos. Eram mais responsáveis e tinham por exemplo mais noção da necessidade de cumprir horários.»

Rodolfo Castro lembra que na Academia tinham o dia todo preenchido, com aulas, ginásio, treinos, salas de estudo, enfim, tudo controlado pela ditadura do relógio. Mas que isso lhe fez bem.

Feitas as contas, portanto, é difícil dizer se os Centros de Estágio têm uma influência negativa ou positiva na formação da personalidade dos jovens jogadores. É claro que, na teoria, é uma violência arrancar crianças do regaço do seio familiar, mas a verdade é dez anos depois de serem arrancadas do regaço do seio familiar a maioria das crianças de outrora garante não ficado com sequelas.

E a memória delas é a cicatriz mais forte que pode haver.