Carlos Manguito tem 61 anos e trabalhou em clubes da Linha de Sintra, com uma passagem pelo Benfica, Vítor Silva está quase a completar 74 e dedicou-se aos clubes da Linha de Cascais, sobretudo ao Estoril. Ambos dedicaram grande parte da vida a treinar miúdos, numa responsabilidade que abraçaram com dedicação e prazer.

Em conversa com o Maisfutebol, confessam memórias e ilusões que lhes enchem o coração.

«Tenho uma vida dedicada à formação e enquanto puder mexer-me vou continuar. O futebol de formação realiza-me. Ao contrário de outros treinadores, sinto-me preenchido na formação. Aliás, na formação deviam estar, se não os melhores, pelo menos muitos bons treinadores, mas isso infelizmente não está a acontecer», começa por contar Carlos Manguito.

«Há muitos clubes que continuam a colocar miúdos de vinte anos, acabados de sair da faculdade, que estão ali de passagem, para tentar dar o salto, e não sabem lidar com os jovens. São treinadores sem vocação. Muitos dizem-no diretamente: não têm vocação para aquilo.»

Carlos Manguito diz que são treinadores que «tiraram um curso para trabalhar com os seniores» e que «caem ali de paraquedas». «Um treinador lidar com um jovem aos gritos e à asneirada, não pode ser. Não deve acontecer nem nos seniores, quanto mais na formação. É caricato. Mas eles não sabem fazer as coisas de outra forma, não estão preparados para isso», acrescenta.

Ora esta reportagem procura ir ao encontro de homens que são o contrário destes jovens técnicos: homens que desenvolveram uma vocação para dedicar a vida aos jovens.

Vítor Silva, treinador das camadas jovens há quase 46 anos, não se refere aos seus atletas como «jogadores» ou como «jovens». Para ele são sempre os seus «meninos».

«Os presidentes e os treinadores são um problema. Uma chatice enorme. Não entendem a importância do desporto para os meninos e para a evolução deles enquanto seres humanos», conta.

«O Hélder, o antigo treinador do Benfica B, foi meu jogador e numa entrevista recente ao Expresso até me agradeceu publicamente o que fiz por ele. Ele criou ali a escola de formação dele e convidou-me para ir para lá, mas não aceitei. Não aguentava lá quinze dias. Quando me dizem que o importante na formação é ganhar, ganhar, ganhar, não dá para mim.»

Tanto Carlos Manguito quanto Vítor Silva defendem que ganhar é uma consequência: não pode ser o fim que norteia a formação. Mais importante é educar.

«Eu cheguei a ver, no início da época, um treinador fazer uma roda e dizer: o Manel, o Joaquim, o António ficam. O tal, e o tal, e o tal vão de vela. Vão de vela, veja bem. E claro, a lágrima a cair pela cara do menino. Isto não pode acontecer no futebol de formação», adianta Vítor Silva.

«Eu gostava de juntar no início da época os pais, os treinadores, os diretores, fazer um jogo de futebol e falar-lhes da ética do desporto: daqueles comportamentos que para mim eram essenciais.»

 O treinador que passou quase vinte anos no Estoril não esquece, aliás, um episódio.

«Num jogo no Estoril contra o Belenenses, estávamos a perder 1-0 e perto do fim há um lance entre dois jogadores embrulhados na área do Belenenses, em que o árbitro marca penálti por mão na bola. O meu menino vai direito ao árbitro e diz: ó senhor árbitro, quem tocou com a mão na bola fui eu. O árbitro dizia que não, que tinha visto bem. E ele: não, não, fui eu, acredite», refere.

«O árbitro mudou a decisão e marcou livre a favor do Belenenses. Perdemos o jogo, mas tivemos uma vitória maluca. Uma vitória totalmente maluca. Fizemos uma festa. Era um miúdo reguila, mas educado na verdade. Também por mérito dos pais, que lhe davam uma formação sólida.»

Numa vida dedicada ao futebol de formação, ambos ganharam títulos, ganharam torneios, formaram craques como Hélder Cristóvão, Diogo Salomão ou Ricardo Janota, mas nenhuma vitória é tão boa como encontrar um antigo jogador na rua e saber que ele está bem na vida.

«Eu fico satisfeito se um jogador singrar no futebol, porque é muito difícil, mas fico muito mais satisfeito se ele singrar na vida profissional e familiar. Chegar lá acima no futebol é muito difícil. As pessoas andam iludidas: pais, dirigentes e muitas vezes treinadores. Só porque o miúdo dá três toques e faz umas fintas? Isso é muito, muito pouco para chegar lá acima», conta Carlos Manguito.

«É preciso muito mais: é preciso, por exemplo, ter sorte. Já conheci centenas de jogadores com uma qualidade tremenda, mas que não chegam lá acima. Centenas deles. Há milhares de jovens com qualidade. Vemos miúdos de oito, nove ou dez anos com um talento incrível. Mas quando eles chegarem a juniores, já vai ser tudo diferente. Eles próprios já vão ser diferentes.»

Vítor Silva assina por baixo tudo o que o colega de profissão disse.

«No Estoril tínhamos equipas muito boas, mas os melhores miúdos nunca ficavam mais do que os infantis. Vinham o Benfica e o Sporting e levavam-nos. Prometiam coisas aos pais, faziam-lhes a cabeça e lá iam os miúdos. Eu dizia sempre: atenção à escola. Mas aquilo subia à cabeça dos pais, começavam logo a pensar em milhões e a escola vinha por ali abaixo», refere.

«Aliás, uma vez participei numa reunião com o Carlos Queiroz, ali em Cascais, em que ele falava do êxito da formação em Portugal. E eu perguntei-lhe: Mas que êxito? Então e a escola? Quantos jovens é que tens que não foram jogadores e se formaram? O que tens é malta que se dedicou inteiramente ao futebol e hoje nem são jogadores nem outra coisa. Porque nem todos são um Rui Costa ou um João Pinto. Isso são três ou quatro, em milhares que lhe passavam pelas mãos.»

Por isso, porque se preocupam de facto com os miúdos e se dedicam inteiramente a eles, acabam por receber os maiores troféus quando passeiam na rua, na praia, no centro comercial.

«É um orgulho encontrar na rua miúdos que começaram comigo, que hoje têm 30 ou 30 e tal anos, e ver que triunfaram na vida, que tiraram o seu curso, que estão casados, com filhos e realizados. Ainda há dias um homem vem direito a mim, nem o estava a reconhecer, ele abraça-se a mim e eu não conseguia identificar quem era. Sou o tal. Também não há muito tempo, um outro rapaz que conheci nas escolinhas, e que ainda levei para o Benfica, me disse que tinha estado a falar de mim num grupo de amigos, que o ajudei muito», recorda Carlos Manguito.

«Na realidade o que fiz por ele nem foi nada de especial comparado com o que fiz por outros, miúdos que ia buscar e levar a casa, a quem dava chuteiras, dava roupa, levava-os a ver uns jogos do Benfica, ajudava-os a ler e a escrever, enfim. Tirei muitos miúdos da má vida, miúdos de bairros complicados, com famílias complicadas. É uma satisfação que fica para toda a vida.»

Vítor Silva é um contador de histórias por natureza. Vêm umas a seguir a outras.

«Trabalhei aqui num clube, em que o autocarro estava parado à porta e os meninos vinham a pé para os treinos, ao vento, à chuva, ao sol. Então eu comecei a ir buscá-los no meu carro. Um dia fui falar com o diretor do futebol, disse-lhe que não fazia sentido eu fazer quatro viagens, quando estava ali um autocarro parado. No Benfica também não vão buscá-los a casa, respondeu-me ele. Ai é? Então treina tu, eu vou-me embora», recorda.

«Outra vez fomos fazer um torneio a Vila Real de Santo António. Estávamos lá no hotel e um responsável do torneio veio falar comigo muito exaltado, a dizer que tinha de ir lá acima, porque alguém tinha feito não sei o quê e era preciso descobrir quem tinha sido. Respondi-lhe logo: Tu estás mas é maluco. Eu, ir lá acima, dizer aos meninos que ou acusam um colega ou os ponho na rua? Tu não me conheces, pá. Eu não estou aqui a ensinar bufos. Estou aqui a preparar meninos para a vida

Vítor Silva orgulha-se, de resto, de nunca ter mandado nenhum miúdo embora de uma equipa sua. O treinador tem um carácter pedagógico, que gosta de levar a sério. No carro traz dossiers com fichas, avaliações e autoavaliações, apontamentos e postais que os miúdos lhe escrevem.

«Tinha grandes guerras com as direções, porque queriam planteis curtos. Comigo não, não mando nenhum menino embora. Se fosse um plantel de 24 ou 25 miúdos, paciência. Eu mandar uma criança embora? Nem pensem nisso. Eles se quisessem que me mandassem a mim embora», diz.

«Tive um miúdo que queria ser como o Humberto Coelho, mas não tinha aptidões nenhumas para o futebol. O miúdo corria com uma velocidade e uma resistência formidáveis, mas com a bola não dava nada. Pensei que ele devia ser atleta de maratonas. Então levei-o, com muito cuidadinho, a um treino no atletismo do Belenenses. Aquele miúdo corria o risco de um dia perceber que o futebol não era para ele e acabava-se o desporto. E isso é que não podia ser.»

A prática do desporto é para o técnico fundamental. Para colocar os miúdos a jogar, aliás, já viveu situações caricatas. Com aquela em que um pai o recebeu aos gritos à porta de casa.

«À sexta-feira à noite reunia-me com o pessoal aqui de um clube, para definir as carrinhas para ir buscar e levar os miúdos para o jogo. Certo dia faltava informar um miúdo, aqui de uma aldeia chamada Madorna, e não havia forma de comunicar com ele. Disse-lhes para não se preocuparem que eu resolvia isso. Fui lá, bati à porta de um café, não sabiam onde o miúdo morava», recorda.

«Bati à porta de uma tasca, disseram-me que o miúdo morava lá para o alto. À meia noite entro no bairro social, subo a escadaria até lá cima e descubro qual é a casa. Bato à porta, atende-me o pai, cheio de sono. Lá lhe comecei a explicar quem era e o que estava alia a fazer. O pai nem me deixou acabar: E se você fosse mas é para o c...? O gajo não joga um c..., o que é que ele está a fazer na equipa? Vi o miúdo pela porta, disse-lhe a hora a que a carrinha o vinha buscar e vim-me embora.»

Ora por falar em pais, ambos concordam que os progenitores são um problema grave do futebol de formação. Um problema grave e difícil de resolver.

«Já lidei com crianças e jovens que não têm o mínimo de regras. Mas também já apanhei pais que são piores do que os filhos, e esse é muitas vezes o problema. Os pais são terríveis. Os jovens, se perceberem que estamos do lado deles e que os queremos ajudar, se não os maltratarmos ou ofendermos, acabam por melhorar o comportamento», conta Carlos Manguito.

«Só que muitas vezes são os próprios pais a desviá-los outra vez do bom caminho. Eu nunca ofendi um jogador por cometer o maior erro dentro de campo. Não crucifico um jovem. Ele já sabe que falhou e que esteve mal, se o penalizarmos por isso, então ele fica ainda mais revoltado. Mas os pais não têm este tato, não têm esta atenção e muitas vezes estragam tudo.»

Vítor Silva recorda o dia em que foi convidado para ir coordenar a formação do Trajouce e foi ver como o clube funcionava. Estava a haver jogo e ficou a observar.

«Um pai não parava de gritar, faz isto, faz aquilo, chuta, não faças isso. Estava a incomodar toda a gente, incluindo a equipa e o próprio filho. Aproximei-me dele e disse-lhe para não fazer aquilo, que estava a prejudicar o filho. Eu faço o que quero, eu pago e faço o que quero, respondeu-me.»

Carlos Manguito vai mais longe e lembra como os pais atropelam uma verdade evidente do futebol de formação: os resultados não devem ser importantes.

«A pressão dos pais para os miúdos ganharem é terrível. A competição existe desde que nascemos, isso é verdade, quando entramos em qualquer coisa é para ganhar, por isso não podemos enganar os miúdos e dizer que vamos jogar só por jogar. O intuito deles é vencer, claro que sim. Mas têm de o fazer sem utilizar meios fraudulentos, e há muita gente que os utiliza», refere.

«Temos de ter a coragem de dizer: os outros utilizam meio ilegítimos para ganhar, nós não o fazemos, ganhar tem que ser com o nosso mérito, não vale tentar ganhar a todo o custo. Caso contrário, que jovens estamos a formar para a vida? Há que ter vocação para formar os miúdos. Mas infelizmente muita gente não tem. Por isso voltamos à conversa anterior, muitos miúdos de 20 anos, que são treinadores da formação para darem o salto, querem dar nas vistas e como o fazem? Vencendo. Para eles vencer é mais importante do que tudo o resto e não pode ser assim.»

Por falar em vocação, a conversa com Vítor Silva termina a olhar para as dossiers de folhas que guarda. Folhas nas quais os miúdos se avaliam, dizem o que fizeram bem, o que fizeram mal, o que sentiram, o que querem melhorar. A tinta vermelha, as correções que é preciso fazer.

«A minha correção termina sempre bem, para não desmotivar os meninos. Depois eles dizem os aspetos em que se tinham sentido menos bem, ou fisicamente, ou taticamente, ou tecnicamente, e trabalhamos de acordo com isso. O desporto faz falta na vida dos jovens. É preciso criar adultos com pedagogia para o desporto», diz.

«Às vezes encontro antigos jogadores meus, que me vêm cumprimentar, com uma barriguinha. E eu brinco com eles: olha, mais um que falhei. Eles ficam logo muito perplexos, a dizer não falhei nada, que foram os melhores tempos da vida deles, e tal, e os amigos. Pois, mas o principal não foi alcançado. Por essa barriguinha já vejo que não consegui incutir-te uma educação para o desporto.»

No fim de duas horas de conversa, fica a certeza que o desporto precisa de mais homens como Carlos Manguito e Vítor Silva: homens que dedicam uma vida aos miúdos porque é isso que lhes enche a alma.