Na infância de Gerson, o Cristo Rei estava tão próximo que podia, por vezes, ser confundido pelos miúdos do bairro com um guarda-redes gigante.

O que seria no mínimo injusto, tendo em conta as pequenas balizas com uma pedra da calçada a servir de cada poste naquele campo com vista para o Tejo.

Mas Gerson não se deixava intimidar.

Da mesma forma que nem tempo teve para ter receio quando a mãe lhe disse que iam deixar o Monte da Caparica e rumar ao Luxemburgo, em busca da qualidade de vida que não conseguiam ter ali no lugar onde ficava toda a família materna.

Com menos de dez anos, Gerson ia pela mão da mãe para um novo país. E seria sempre de mãos dadas com a mulher que foi mãe e pai que o miúdo iria atrás do sonho de ser futebolista.

Um sonho que se cumpriu longe do Monte da Caparica. Que galgou as curtas fronteiras do Luxemburgo e que se está a tornar maior a cada dia que passa. Um sonho vivido graças à mãe, que agora vê tudo lá de cima. Do céu, para onde Gerson aponta sempre que marca um golo. Todos os golos são para a mãe Eduarda. É com ‘Dada’ que Gerson partilha todas as alegrias.

A última vez que o fez foi no sábado, quando deu a surpreende vitória luxemburguesa sobre a República da Irlanda. E a próxima vez que o deseja fazer é já nesta terça-feira quando voltar a defrontar o país onde nasceu e deu os primeiros pontapés na bola.

Foi esse o pretexto para o Maisfutebol viajar às origens do avançado de 25 anos, do Dínamo de Kiev, que será nesta terça-feira o maior perigo apontado à baliza portuguesa no jogo de qualificação para o Mundial.

Fê-lo através das memórias de Leonel Rodrigues Bessa, ou simplesmente Né, o tio também emigrado no Luxemburgo.

A rodar o mundo atrás de uma bola

É Né que nos recorda os tempos no Monte da Caparica. E de como Gerson tentava gastar a inesgotável energia nas peladinhas no bairro.

«Ele sempre teve uma energia que parecia não acabar e muita genica. Quando eramos miúdos, jogávamos muito no bairro do Monte da Caparica. Eram aquelas peladinha de rua, com uma pedra da calçada a fazer de poste. E ele tinha muita qualidade», assegura.

Porém, a entrada no futebol mais a sério só aconteceu depois de ter emigrado com a mãe para o Luxemburgo, ali pelos dez anos de idade.

A qualidade que o miúdo mostrava, superior à de muitas outras crianças, levou a mãe a arriscar: dia sim, dia não, lá iam Dada e Gerson rumo a Metz, um clube de futebol francês que ficava perto da fronteira com o Luxemburgo e que proporcionava melhores condições para o crescimento do jovem jogador.

Durante cinco anos, foi quase sempre a mãe que acompanhou o filho na viagem de cerca de uma hora para cada lado. O tio também o fez algumas vezes.

«Não era qualquer um que entrava nas escolas do Metz. Ele mostrou qualidade e ficou no clube que era exigente, não só em relação ao futebol, como às notas que os miúdos tinham de ter na escola», aponta Né.

Na chegada à idade sénior, começou o périplo pouco comum em termos de latitudes futebolísticas. Mas isso também ajudou muito ao crescimento de Gerson enquanto jogador.

Depois de três épocas a jogar no campeonato luxemburguês, a primeira porta que se abriu para Gerson foi na II divisão holandesa.

Mas a estadia no Telstar duraria apenas meia época. Foi o tempo que o Sheriff, crónico campeão moldavo e presença regular nas eliminatórias da Liga dos Campeões e da Liga Europa, resgatar Gerson para os seus quadros.

«O Sheriff foi a primeira equipa mais importante onde o Gerson jogou. Aí, percebemos que estava a ficar sério. Mas é normal, ele é muito competitivo, adora ganhar em tudo o que se mete».

As palavras do tio de Gerson tornam mais fácil compreender a ambição do jogador que ficou apenas um ano na Moldávia, saindo como campeão nacional… para o Japão.

Um passo arriscado. Mas que deu resultado. Apesar de no Júbilo Iwata os resultados não terem sido os melhores, com o clube a ficar em último lugar do campeonato, Gerson voltou a dar nas vistas. Os sete golos apontados em 12 jogos chamaram a atenção do Dínamo de Kiev.

«Gerson admirava Ronaldo, agora joga contra ele, contra Messi…»

É certo que a afirmação de Gerson na equipa ucraniana não foi imediata. Após meia época, com dois golos em 12 jogos, seguiu-se um empréstimo para o Ankaraguçu, da I liga turca, onde o luso-luxemburguês se destacou com seis golos em apenas 11 partidas.

E isso fez dele aposta clara para esta época do Dínamo de Kiev, equipa que parece lançada para reconquistar o título ucraniano, que lhe foge há quatro anos e que nos últimos 11 só duas vezes conseguiu ‘roubar’ ao Shakhtar Donetsk, agora treinado por Luís Castro.

O internacional luxemburguês leva cinco golos em 29 jogos, numa época em que se estreou na fase de grupos da Liga dos Campeões, defrontando a Juventus de Ronaldo e o Barcelona Messi, por exemplo.

«Os jogadores que ele mais admirava quando era miúdo eram o Ronaldo e o Ronaldinho Gaúcho. E lutou muito para chegar a este nível. Agora joga contra o Ronaldo, este ano também já jogou contra o Messi… Se há alguém que merece, é ele porque saiu tudo dos esforços que fez», orgulha-se o tio.

O convite do V. Guimarães e o sonho da seleção portuguesa que não se cumpriu

Com destinos tão díspares no currículo de Gerson Rodrigues, a pergunta surge de forma natural: jogar em Portugal nunca foi hipótese?

«Ele chegou a receber um convite do V. Guimarães para ir fazer um teste. Mas, entretanto, lesionou-se num pé e acabou por não ir», confidencia Né.

Já da federação portuguesa, nunca houve qualquer contacto. Algo que o avançado chegou a sonhar.

«Ele nasceu em Portugal, por isso, claro que teve esse sonho. Mas como não surgiu nenhuma convocatória para as seleções jovens, o passo de optar pelo Luxemburgo foi natural, até porque ele tem muito carinho pelo país em que passou quase toda a vida», confessa.

Nesta terça-feira, será a quarta vez que Gerson defronta Portugal. E Né não tem dúvidas: ele vai tentar marcar pela primeira vez frente ao país em que nasceu.

«Ele quer sempre ganhar. Para ele, Portugal pode ganhar todos os jogos, mas contra o Luxemburgo não», atira, sorridente.

Mais difícil para o tio será antecipar como podrá o sobrinho festejar, caso marque.

«Se ele marcar a Portugal, acho que vai fazer alguma coisa especial. Vai festejar com respeito, porque gosta muito de Portugal, onde está a avó, as tias e o bisavô, e onde ele ainda vai muitas vezes», acredita.

Uma coisa não faltará, com certeza: as mãos e o sorrisso apontados ao céu que guarda Dada. A mãe que o levou do Monte da Caparica, onde a baliza era feita com as pedras da calçada, pelo mundo fora. E que o guiou à conquista do sonho de se tornar futebolista.