«Um dia, estava na porta do estádio e chega um senhor que me diz: “Don Manuel, tenho de falar consigo. O meu pai morreu, mas continuo a trazê-lo para ver o Betis. Aliás, trago-o aqui.” E tira um frasco de pêssego em calda…»

Quando Manuel Ruiz de Lopera contou esta história em direto na televisão houve duvidasse do que ouvia. O riso nervoso e incrédulo da plateia crescia à medida que o antigo presidente do Betis de Sevilha desenrolava os pormenores numa entrevista ao jornalista e também aficionado bético Carlos Herrera.

A cada frase, aquele episódio dos anos 90 tornava-se mais incrível e ganhava contornos trágico-cómicos. Até que tudo se tornou ainda mais surreal quando Lopera revelou como resolveu o problema daquele sócio.

«A polícia não me deixa entrar para ver os jogos com este frasco de vidro. Se o presidente desse autorização para guardar as cinzas no estádio, eu todos os domingos viria aqui recolhê-las antes de ir para a bancada», propôs o adepto.

Solução pronta do histórico presidente: «Espera, vamos a fazer as coisas de modo a que não tenhas de deixar cá as cinzas. Vais passar a entrar com as cinzas dentro de um pacote de leite.»

O plano absolutamente inverosímil foi adiante.

«Todos os domingos, quando Betis marca um golo, o rapaz olha na minha direção e abraça o seu pai», recordou então, no seu carregado sotaque andaluz, o dirigente, que presidiu ao clube durante uma década.

Lopera era assim, louco como os adeptos do seu Betis.

Emblema bético soldado no mais alto arranha-céus

São vários os episódios que comprovam a paixão do popular clube de Heliópolis que tem como lema «Manquepierda» – ser incondicionalmente do Betis, mesmo que perca – e a sua rivalidade com o Sevilha, o vizinho da mais central zona de Nervión.

Um desses exemplos aconteceu em 2013 e ocorreu nos céus da capital andaluz, no alto dos 180 metros da Torre Sevilla, um dos mais altos edifícios da Península Ibérica e o mais elevado de toda a região.

Aquando da construção do arranha-céus projetado para a ilha de La Cartuja pelo malogrado arquiteto argentino César Pelli – Prémio Pritzker e autor das famosas torres Petronas, na Malásia – um grupo de operários da construção civil decidiu de moto próprio dar largas à criatividade e paixão clubística.

Vai daí que soldou na última viga do edifício um emblema do Betis, publicando um vídeo no Youtube com a façanha.

O resultado foi uma polémica que saltou para as páginas dos jornais e que só não terminou com a suspensão dos autores da obra devido à pressão da opinião pública junto das construtoras.

«São anédoctas de Sevilha. Há histórias que só acontecem aqui», reagiu o então alcaide da cidade Juan Ignacio Zoido.

O columbário que acabou em fracasso

Não é por acaso que o dérbi da Andaluzia é considerado o mais frenético de toda a Espanha. A paixão não conhece limites. É assim desde que em 1907 o Betis foi fundado, adotando o nome dado pelos romanos ao rio Guadalquivir e as cores da bandeira da região, bem como o termo castelhano Balompié, como contraponto ao Sevilha FC, fundado por britânicos em 1890 (um ano depois do vizinho Huelva, clube decano do futebol espanhol).

Mas voltemos ao início da história.

Imagem do exterior do estádio do Betis, no bairro de Heliópolis

Em junho de 2011, o Betis passou mesmo a possibilitar aos seus adeptos a hipótese de guardarem após a morte as suas cinzas no estádio do clube.

Um espaço com 400 metros quadrados, com lugar para quatro mil columbários individuais foi criado numa zona nobre do Estádio Benito Villamarín – recinto que durante 2000 e 2010 se designou por Manuel Ruiz de Lopera, numa decisão tomada durante o mandato do próprio.

Por três mil euros, os familiares de um adepto falecido podiam depositar as cinzas por um período de 99 anos no Memorial Real Betis Balompié, que entre os murais em azulejo tinha um peculiar com o emblema do clube adaptado à obra «A criação de Adão», que Miguel Ângelo pintou na Capela Sistina, com o lema: «Deus fez o mundo em seis dias e no último criou o Betis.»

A ideia aparentemente insólita – que havia sido lançada também pelo Atlético de Madrid – não vingou. Pouco mais de uma dezena de adeptos acabou por ser sepultado no local e o Betis que antevia uma receita de 10 milhões de euros a médio prazo não recebeu nada, acabando numa batalha judicial com a Giem Sports, que fazia a gestão do espaço, que acabou com a resolução do contrato entre ambas as partes em 2015.

Imagem do extinto columbário no Benito Villamarín

O que aconteceu então aos adeptos ali sepultados?

«O espaço encerrou, mas as cinzas das pessoas que lá havia foram trasladadas numa cerimónia com as suas famílias para o monólito de homenagem a Miki Roqué que há no estádio», explicou ao Maisfutebol Mercedes Tordesillas, responsável de comunicação do Betis.

Roqué, jovem jogador do Betis, faleceu em 2012 aos 23 anos na sequência de uma doença oncológica. O seu desaparecimento provocou uma onda de comoção que varreu a cidade, tal como aconteceu com as mortes de Antonio Puerta (2007) ou a mais recente do ex-Benfica Jose Antonio Reyes (2019), figuras do Sevilha.

Nessas ocasiões, e beticos e sevilhistas deixaram as rivalidades de parte. Afinal, não podem viver uns sem os outros e essa consciência da finitude aproxima-os ainda mais.

Aparentemente, em Sevilha, ninguém conhece o lema «Até que a morte nos separe».

No futebol e em tudo o resto.