No final de uma carreira como repórter de guerra, e perseguido pelo peso de não ter conseguido tirar a foto perfeita, André Faulques decide pintar a imagem que não conseguiu captar através da objetiva.

E tudo vai correndo bem, até lhe surgir um rosto do passado a ensombrar-lhe a existência e a mudar o curso de um final de vida que André imaginava pacato na sua ilha do Mediterrâneo.

Lembramo-nos do «Pintor de batalhas», romance do espanhol Arturo Pérez-Reverte, ao conhecer a história de Nuno Borges, o médio do Nacional que se estreou na Liga aos 32 anos e até marcou no passado fim de semana frente ao Sp. Braga.

A história de Nuno Borges é, no mínimo, improvável. E, se calhar de uma forma forçada, admitimos, tem alguns paralelismos com a do protagonista do «Pintor de batalhas».

Claro que Nuno não foi repórter de guerra. Mas também ele viveu duras batalhas. Muitas delas contra ele próprio, conforme admite ao Maisfutebol.

E foi na pintura que encontrou o ‘refúgio’ que o ajudou a colocar comida na mesa durante vários anos.

Não a pintura da forma mais romântica. Nada de imagens perfeitas. A pintura de prédios e moradias. O emprego que lhe surgiu porque a família lhe deu a mão quando foi preciso.

Também descontente com o passado, tal como André Faulques, Nuno ainda foi a tempo de largar os rolos e pincéis para traçar o destino que sonhou em criança. E que durante muito tempo andou tão distante do seu horizonte.

Longe dos holofotes desde a formação

A história de Nuno Borges não é uma daquelas que tem como base uma formação promissora num clube de renome e se perde a determinado momento.

Até aos juniores, a única camisola vestida pelo médio centro foi a do Atlético do Cacém.

E se no último ano lhe surgiu o Farense no currículo, foi porque um grande amigo rumou a sul e o desafiou a acompanhá-lo. E ele foi.

Treinou à experiência, agradou e acabou por ficar na equipa, numa altura em que o clube algarvio atravessava a maior crise da sua história, que levou mesmo ao fim da equipa de seniores em 2005.

Ponto e vírgula.

A chegada à idade sénior num clube que acabara com o escalão maior, deixou Nuno Borges sem um rumo para seguir aos 18 anos. Numa altura em que se tornou pai pela primeira vez.

Tudo junto, levou a que ficasse uma época sem jogar. A primeira.

«Ter tido um filho aos 18 anos deu-me uma responsabilidade extra. Tinha de ir trabalhar porque precisava de ter um dinheiro mais certo», explica, em conversa telefónica com o nosso jornal.

Após um ano parado, a primeira tentativa de regresso aconteceu na época seguinte, ao serviço do GDC Salgados, na 1.ª divisão da AF Algarve.

Nuno Borges, segundo à direita (em pé) no Salgados, da AF Algarve

Durou uma época. Não deu para mais.

Ponto final?

«Nessa altura decidi voltar a Lisboa e fui trabalhar com uns familiares a pintar casas e prédios. Tinha os meus amigos também e acabei por deixar o futebol de lado», revela.

Quando Nuno diz que deixou «o futebol de lado», fala do futebol federado. Porque, garante, a bola nunca deixou de rolar verdadeiramente.

«Havia sempre o futebol de rua. Quase todas as noites me juntava com uns amigos para jogar. Isso era certinho», aponta, assumindo que nessa altura lhe faltou foco.

«Estava de volta a Lisboa, tinha os meus amigos por perto e o que queria mais era divertimento. Havia pouca força de vontade para tentar chegar ao topo», admite, resumindo: «Eu pensava: ‘estou com os meus amigos, vou aproveitar para me divertir com isto'», recorda.

Os amigos acabariam, porém, por desempenhar um papel fundamental no regresso de Nuno Borges ao futebol mais a sério. Mas foi um passo dado com algumas hesitações.

«Já não estava com cabeça para o futebol. Só pensava em manter o meu trabalho certo, até porque tinha casa, mulher e filhos a precisarem de mim», confessa.

Contudo, após quatro anos sem jogar, além das peladinhas com os amigos, o regresso à competição aconteceu mesmo... ainda que no campeonato da Inatel. Com a camisola da Associação Luso Cabo-verdiana de Sintra (ACAS) vestida.

Nuno Borges ao centro na fila de cima no ACAS que competia no Inatel

Com 24 anos, e já com uma segunda filha, Nuno Borges volta depois ao futebol federado. Fá-lo ao serviço do Negrais, que acaba por descer no final dessa época à 3.ª divisão da AF Lisboa.

Na época seguinte, porém, Nuno Borges ajuda a equipa a subir de divisão e inicia aí o percurso ascendente rumo ao topo do futebol nacional.

A força dada pelos filhos e o sonho ali tão perto

Após subir com o Negrais, o médio foi contratado pelo Igreja Nova, clube que militava na divisão de honra da AF Lisboa, onde ficou apenas uma época. Porque deu logo o salto para os campeonatos nacionais em 2015-2016, aos 27 anos.

Um passo decisivo, assume.

«Chegar ao Sacavenense fez-me acreditar que ia conseguir o meu objetivo. Ainda faltava um pouco, mas tinha bons treinadores, bons colegas e uma força-extra», revela.

Essa motivação, assegura, são os filhos. O filho que teve aos 18 anos e as duas meninas que tem com a atual companheira. É para ser um exemplo para eles que Nuno Borges luta todos os dias.

«A minha força vem dos filhos. Quero que eles lutem pelos sonhos deles, por isso tenho de mostrar que luto pelos meus. É isso que me dá força para conquistar aquilo que tenho conseguido», nota.

Ao serviço do Sacavenense, Nuno passou duas épocas e meia. A primeira delas, mantendo-se ainda a trabalhar nas pinturas. Mas na segunda o clube deu-lhe a possibilidade de se dedicar apenas ao futebol e ele percebeu que não podia desperdiçar a oportunidade.

«Acho que foi muito importante porque já só me dedicava a jogar, sem ter de me preocupar com outras coisas além do futebol. Pude seguir o meu sonho», orgulha-se.

«Comecei a sentir que queria mais do que aquilo e que talvez conseguisse chegar lá. Tive muito bons treinadores, principalmente o Tuck que me deu muito bons conselhos e fez-me acreditar mais em mim», acrescenta, antes de falar de outro homem que encontrou em Sacavém e a quem se mostra bastante agradecido: Manuel do Carmo, ou ‘Nelo’.

«O presidente disse-me que se houvesse uma proposta para eu ir para o futebol profissional, deixava-me sair livre. E cumpriu a promessa. Quando apareceu o Farense, acompanhou-me sempre até eu assinar o contrato», destaca.

Neste ponto da conversa, Nuno Borges aproveita para estender o agradecimento a outros dirigentes, treinadores e colegas de balneário que apanhou pelo caminho até à Liga.

«Tive sempre sorte nos clubes por onde passei. Não tenho nenhum episódio daqueles que às vezes ouvimos. Em todos os clubes, cumpriram sempre tudo comigo. Lidei sempre com homens de palavra», sublinha.

No regresso a Faro, Nuno apanhou o clube num momento completamente distinto daquele que tinha conhecido enquanto adolescente.

O Farense estava no Campeonato de Portugal, mas acabaria por conseguir a subida no final da época, com o médio a participar ainda em 13 jogos na segunda metade da época, marcando apenas um golo, mas um daqueles que viria a revelar-se decisivo na chegada dos algarvios à II Liga.

Na primeira-mão dos quartos de final do playoff, frente ao Felgueiras, o Farense empatava 2-2 em casa do clube nortenho, quando Nuno Borges marcou o golo da vitória aos 86m.

Uma semana depois, no Algarve, todos se perceberam a importância desse golo quando o jogo da segunda mão terminou com uma vitória do Felgueiras por 1-0, valendo então o triunfo garantido pelo médio contratado ao Sacavenense.

«Continua a ser uma luta comigo mesmo»

Sem tempo nem de esfregar os olhos para perceber que não se tratava apenas de um sonho, a época feita na II Liga pelo Farense chamou a atenção de alguém que também sabe bem o significado de subir a pulso desde o fundo até ao topo do futebol nacional: Luís Freire.

O jovem treinador do Nacional conhecia Nuno Borges desde os tempos em que este jogava no Igreja Nova e ele treinava o Ericeirense.

Nessa época de 2014-2015, as sortes de ambos até foram bem distintas, com Luís a subir de divisão, enquanto a equipa de Nuno Borges desceu.

Porém, até seria o médio a chegar primeiro aos campeonatos nacionais, pela mão do Sacavenense. E os destinos de ambos ainda se viram a cruzar na final do playoff que valeu o título do Campeonato de Portugal ao Mafra de Luís Freire, diante do Farense de Nuno Borges.

Mas se ambos foram sorrindo à vez, a união só trouxe sorrisos a ambos até ao momento.

Na primeira época a trabalharem juntos, o Nacional subiu à Liga graças à liderança que lhe pertencia quando a competição foi interrompida devido à pandemia.

Agora, com quatro jornadas cumpridas, Nuno Borges é totalista no conjunto insular e cumpriu mais um sonho no passado fim de semana, ao marcar em plena Pedreira, diante do Sp. Braga.

O Nacional até perdeu o jogo, mas esse será mais um daqueles momentos que o médio, que entretanto se tornou também internacional por Cabo Verde, não esquecerá.

Porque apesar de se calhar não ter para apresentar a imagem perfeita do que deve ser um percurso no futebol, Nuno Borges sabe bem aquilo que passou para chegar a este ponto. E até nem se importa de partilhar a receita. Mesmo que ela inclua arrependimentos.

«Se há coisa de que me arrependo é de ter parado aqueles quatro anos. Se não o tivesse feito, talvez tivesse chegado aqui mais cedo. Mas cheguei. Com esforço, dedicação, humildade e sacrifício», orgulha-se.

O segredo? Não ouvir velhos do Restelo. E não ser inimigo de si próprio.

«Ainda hoje continua a ser uma luta comigo mesmo. Todos os dias. Mas se posso deixar um conselho é que quem corre atrás de um sonho não deve ligar às bocas daqueles que dizem que nunca se chegará lá. Eu nunca liguei muito. Segui em frente e trabalhei. Às vezes ainda não acredito que cheguei aqui. Mas cheguei, e agora tenho de fazer valer a pena», aponta.

Sem fantasmas do passado a ensombrar o presente. Sem nada a borrar a pintura.