Que fenómeno é este?

Luís Freire tem 34 anos, leva oito épocas como treinador principal e conta com seis subidas de divisão.

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis.

Primeira divisão da AF Lisboa. Divisão de Honra da AF Lisboa. Pro-Nacional AF Lisboa. Campeonato Portugal. II Liga. Liga.

Ericeirense. Ericeirense. Pêro Pinheiro. Pêro Pinheiro. Mafra. Nacional.

A oficialização do final da II Liga pela Liga Portuguesa de Futebol decretou a subida de Farense e Nacional da Madeira ao principal escalão do futebol nacional.

E isso significa também o pleno de Luís Freire, técnico do conjunto insular. Desde a base do distrital, ao topo do futebol português.

Razão mais do que suficiente para o Maisfutebol ir em busca da origem desta história. E perceber, bem no início, que esta ‘queda’ por escalar vem de longe. Do tempo em que era observador e muitas vezes se tornava num «ninja que subia prédios, postes e o que fosse preciso» para ter um relatório mais completo.

Pediu para ver os treinos, fez um relatório e foi contratado… sem custos

O início do percurso do treinador natural da Ericeira no futebol sénior foi batizado por Filipe Moreira.

Na época 2009-2010, um então jovem, de 24 anos, pediu-lhe para assistir aos treinos do Mafra.

O descaramento não foi muito bem acolhido numa primeira fase, mas Luís Freire valeu-se de dois amigos, jogadores do plantel, que foram seus cúmplices e o ajudaram a dar a volta ao mister.

Depois de alguns treinos, o miúdo voltou a atacar e entregou um relatório a Filipe Moreira.

A resposta demorou três dias a chegar.

Filipe Moreira disse a Luís Freire que queria mais relatórios do género para o Mafra. Mas que não lhe podia pagar pelo trabalho.

Fim de história? Sabemos que não. Mas damos a palavra ao próprio Luís Freire.

«Eu disse-lhe que não havia problema. Comprei uma câmara de filmar com a ajuda dos meus pais e ao fim de semana fazia observação dos adversários. Ia ver jogos a todo o lado, filmava às escondidas e fazia os relatórios», detalha o técnico, que durante a semana estava em Évora a acabar o curso de Educação Física.

O trabalho realizado valeu-lhe o convite para acompanhar o líder da equipa técnica que na época seguinte se mudou para o Tondela, então ainda na II divisão B. Luís Freire já recebia um ordenado, mas Filipe Moreira não tem dúvidas: «Ele foi para lá perder dinheiro. Recebia muito pouco e ainda tinha de pagar renda de casa.»

«Ele quis sempre aprender mais. Era um estudioso e teórico que queria passar para a prática. Sempre foi muito empenhado e humilde e aliava isso à qualidade que já tinha», recorda o experiente treinador.

«No comer e beber informação que é esta vida de treinador, e com as qualidades que tinha, o Luís criou a sua ideia de futebol, defendeu-a e sustentou-a», elogia Filipe Moreira.

«Aquilo que melhor me recordo dele é que me apareceu muito humilde e preparado para aprender, foi crescendo, evoluindo e fez-se homem do futebol. Na altura ajudou-me muito no processo do Tondela, num ano em que fizemos uma grande época, com ele e o Pepa na equipa técnica», sublinha.

Um «ninja» dedicado

Pepa também não poupa nos elogios a Luís Freire. O técnico do P. Ferreira, cujo percurso também foi feito a pulso desde a distrital até à Liga, recorda que encontrou nessa época alguém com quem se identificou de imediato.

«Quando conheci o Luís vi que era muito dedicado e apaixonado pelo que fazia. Tivemos uma forte empatia muito rapidamente porque eramos capazes de estar 24 horas a falar sobre futebol. Éramos ambos viciados no trabalho», descreve.

E essa dedicação valeu-lhes algumas aventuras vividas em dupla. Uma dupla de ninjas.

«Lembro-me de sairmos de Tondela - num carro que não tinha as melhores condições -, para assistirmos de forma meio escondida ao treino de um adversário nosso, na zona do Porto. Parecíamos uns ninjas, se tivéssemos de subir a um prédio ou um poste, o que quer que fosse, nós fazíamos para apresentar o melhor relatório possível», lembra.

Desses tempos, Pepa diz conseguir agora identificar nas equipas do amigo algumas ideias que já na altura defendia.

«É alguém muito organizado e rigoroso, que gosta de colocar as equipas a jogar de olhos fechados. Todos sabem o que têm de fazer dentro de campo», nota, reforçando a ideia positiva que o colega lhe deixou.

«Já lhe dizia na altura que ele podia ser um dos melhores observadores/analistas do mundo. Para ser treinador principal, ele foi adquirindo ao longo do tempo a capacidade de liderança. Acho que foi muito bom ter começado perto de casa porque teve ajudas importantes para se fortalecer como líder», defende Pepa, enaltecendo também o trajeto ascendente de Luís Freire.

«Se houvesse um estudo sobre isso, não sei quantos treinadores começam na distrital e passam por todas as divisões de forma tão rápida. Mas mais do que chegar rápido, é importante chegar bem. E ter capacidade para continuar a evoluir. E ele tem essa capacidade e humildade para continuar a evoluir e querer ser melhor amanhã do que é hoje», resume o treinador do P. Ferreira.

Desde o ninho, sempre a subir

Após a época em Tondela, Luís Freire acompanhou Filipe Moreira no regresso a Lisboa, então para trabalhar no Oriental, antes de se aventurar a solo.

'Aventura', porque apesar de ter iniciado o percurso em «casa», no Eiriceirense, clube no qual tinha sido um defesa central «esforçado», a tarefa de Luís Freire não se adivinhava fácil.

No que podia ser o conforto do ninho, o treinador, então com 27 anos, apanhou uma equipa a desinvestir. Valeu-lhe a capacidade de convencer os jogadores - muitos deles que o conhecia há alguns anos -, que não olharam para o bilhete de identidade do homem que apareceu com ideias inovadoras.

Dessa equipa fazia parte Tiago Petrony, guarda-redes que hoje defende as cores do Sporting e que é bicampeão mundial de futebol de praia, vertente que começou a abraçar pela mesma altura.

«Quando ele chegou não demos importância à idade. Muitos já o conheciam, e o projeto que ele apresentou agradou a todos desde o início», começa por recordar.

«O clube não estava bem financeiramente, mas o projeto dele era muito à frente para aquele nível. Havia muita atenção ao trabalho individual e ele sabia tudo sobre as equipas adversárias, o que naquele nível não era fácil», reconhece.

Definindo o técnico como «exigente e perfecionista», Petrony destaca uma característica que ouvimos de todos aqueles com quem falámos sobre Luís Freire.

«Era um trabalhador nato. Dedicava-se ao futebol quase 24 sobre 24 horas. Mesmo não recebendo nada. Via-se que ele estava a investir muito na carreira de treinador e no trabalho dele», descreve.

As mesmas palavras são utilizadas por Rúben Franco, que também jogava nessa primeira equipa orientada por Luís Freire, o amigo de infância que o desafiara a juntar-se ao projeto.

Luís Freire e Rúben Franco (à dir.) em trabalho numas férias desportivas

«Ele tinha sempre tudo preparado de forma muito detalhada e modificou completamente a metodologia. Nunca pensei que pudesse haver algo assim num nível distrital», introduz o antigo defesa central, que ainda passou pelo Benfica na formação.

«O Luís é muito obstinado e desde o início quis mostrar a toda a gente que se podia trabalhar de forma profissional, apesar de estar num nível amador», refere Rúben Franco, que era ainda colega de Freire como professor de Atividades Extra-Curriculares (AEC).

«Já na altura tinha definido que tinham de chegar ao futebol profissional em quatro ou cinco anos. Caso contrário, teria de mudar de rumo e procurar outra coisa. Mas também se percebia que se o futebol fosse justo – e sabemos que muitas vezes não é -, ele ia conseguir», conclui o agora treinador do Coutada.

«Ele é também muito agregador. E isso percebe-se, porque só um grande líder consegue convencer os jogadores da mesma forma, e implementar as suas ideias, desde a distrital até aos campeonatos profissionais», elogia.

Aproveitamos a dica: desde a distrital até às competições profissionais.

João Gomes, defesa central de 23 anos, esteve com Luís Freire em três das seis subidas de divisão. Fez parte da equipa do Pêro Pinheiro que venceu a divisão de honra e a pró-nacional da AF Lisboa em épocas consecutivas, e no ano seguinte acompanhou o técnico, ajudando o Mafra a conquistar o Campeonato de Portugal.

E depois, tal como o treinador, demorou-se um ano entre a distrital e a II Liga, seguindo novamente o treinador, agora no Estoril.

«Aquilo que melhor o define é o trabalho. Até o objetivo estar alcançado, é trabalho, trabalho e trabalho», define.

Questionado sobre o principal ensinamento que leva dos anos a trabalhar com Luís Freire, João Gomes não hesita um segundo: «Tudo é considerado impossível até ser feito.»

«Ele está em modo besta, só quer superar-se»

«Impossível» é, aparentemente, uma palavra que não entra no léxico de Luís Freire. Mas os amigos encontram uma aplicação possível: seria impossível ele ter dado jogador.

«Ele era um defesa-central que mostrava curiosidade pelo jogo, gostava de dar indicações dentro de campo, mas não era um jogador que se destacasse», descreve Pedro Bonifácio, que partilhou com Luís Freire o balneário na formação do Eiriceirense, desde os 11 anos.

«O Luís começou completamente do nada. Era impossível ele ter começado mais do nada do que ele, que até começou a trabalhar de borla porque sentiu que podia ter ali uma porta de entrada. E com a motivação que ele mostra, tem tudo para chegar ainda mais acima», acrescenta Bonifácio, que na época 2009/10 ajudou a convencer Filipe Moreira a deixar que Freire acompanhasse os treinos do Mafra.

O outro “cúmplice” foi Rúben Franco, que diz que o amigo «está em modo besta»: «Cada nível que alcança, só quer superar-se.»

Luís Freire com Pedro Bonifácio, nos tempos de jogador

O futuro traçado num guardanapo

Este é momento de assumir um erro grave da nossa parte. Esquecemo-nos desta «besta» a que Rúben Franco se referiu num momento crucial: o de confrontar Luís Freire com aquilo que nos tinham dito sobre ele.

Lançámos então para a mesa: trabalhador nato; obstinado; fiel às ideias; jogador «esforçado».

A primeira reação surge embrulhada numa gargalhada e um esclarecimento: «Eu era um jogador mesmo fraco».

Quanto ao resto, o treinador que acabou de alcançar a sexta subida de divisão até concorda.

«Acho que essas são as palavras que podem definir o que tem sido o nosso percurso. Porque se não fosse o trabalho, a obstinação e a fidelidade às ideias, qualquer coisa nos podia ter feito desviar do caminho», aponta o técnico que fala sempre na primeira pessoa do plural, ou não tivesse cinco adjuntos que participaram em todas as etapas da escalada.

«Só quando fui para o Mafra [2017-2018] comecei a conseguir viver do que o futebol me pagava. Antes precisei sempre da ajuda dos meus pais. E conciliei o futebol com outras coisas: fui professor de atividades físicas do ensino básico, treinei miúdos, participei em férias desportivas», esclarece.

E terá sido também por essa altura que deixou de lado a carreira de ninja que Pepa nos revelou.

«Recordo-me de algumas aventuras para conseguir ter o máximo de informação sobre os adversários, sim. Foi algo que mantivemos até chegar ao Mafra. Depois, num nível mais profissional, já deixámos», conta a sorrir.

Agora ao virar da esquina está a Liga, um objetivo em tempos traçado… num guardanapo.

«Lembro-me que quando estávamos no Pêro Pinheiro, uma vez, num café, escrevemos num guardanapo que teríamos de chegar à Liga por volta dos 34 ou 35 anos», diz.

Então e agora, qual é o sentimento?

«Ah, ainda não jogámos na Liga! Mas estamos imensamente felizes. É um sonho tornado realidade», concede.

«Passo a passo, fomos sentido que estávamos no caminho certo e as subidas foram dando alento para continuar, porque fomos ajudando os clubes por onde passámos a festejar, ao mesmo tempo que desenvolvemos um processo de jogo com uma ideia atrativa», orgulha-se.

Algumas pessoas próximas de Luís Freire fizeram referência a que o técnico, a dada altura, «consumia tudo sobre o Benfica de Jorge Jesus», mas essa terá sido apenas uma das fontes de conhecimento.

«Na altura em que estávamos no Pêro Pinheiro havia essa análise mais frequente ao Jorge Jesus, mas depois passámos por muitas outras: a Fiorentina do Paulo Sousa, o Bayern Munique do Guardiola, o Nápoles do Sarri, o Dortmund do Tuchel e também as equipas do Paulo Fonseca. Analisávamos muitas ideias que depois tentávamos adaptar às nossas ideias para as equipas que treinávamos», refere.

Surge então a pergunta que abre este texto: que fenómeno é este? Como se conseguem seis promoções em oito anos?

«O fundamental é conseguir sempre unir as pessoas à volta de uma ideia e de um objetivo coletivo. Inspirar e motivar de forma a que todos se sintam importantes. Porque só se todos participarem no processo é que ele pode ter sucesso. É preciso ter uma união participada. Isso, e estar rodeado dos melhores», resume Luís Freire.

E até onde pode chegar este percurso?

«Agora é jogar a Liga. Tenho objetivos pessoais traçados com a minha equipa técnica, mas esses ficam comigo», diz o técnico, talvez a fazer segredo de um outro guardanapo.