Dentro do campo, Miguel Batista é guarda-redes. Mas a maior defesa que o jovem de 22 anos teve de fazer na vida aconteceu longe dos relvados. Na madrugada do passado dia 15 de outubro, «o pior dia do ano em matéria de incêndios», Miguel meteu a mãe, o irmão de 9 anos e as primas dentro do carro e conduziu-os para longe do fogo que ameaçava a habitação da família. Para trás ficava o pai que, sem água devido à falha da energia, tentava tudo para salvar a casa, localizada nos arredores de Tondela.

«Enfiei-me no carro e a minha ideia era levá-los para um largo que existe na aldeia, para depois voltar e ajudar o meu pai. Mas quando cheguei a esse tal largo, também estava tudo a arder e percebi que tinha de os levar para o centro de Tondela, que fica a seis ou sete quilómetros da minha casa.»

De acordo com o relato do jovem que está emprestado pelo Tondela ao Nogueirense, o caminho que percorreu entre a sua aldeia, junto à zona industrial, e o centro da cidade do distrito de Viseu, estava «assustador». «Acho que não passámos em nenhum local onde não estivesse a arder», recorda, um mês depois do ocorrido.

Com os familiares em local seguro, e apesar de ter acabado de fazer aquele trajeto pelo meio de chamas, a cabeça de Miguel continuava com o pai e o objetivo era voltar à casa. A mãe, contudo, quis trocar-lhe as voltas para o proteger.

«Como não queria que eu voltasse, tirou-me as chaves do carro». Assunto encerrado? Nada disso. «Aquilo estava um caos e eu disse à minha mãe que ia a casa do Cláudio Ramos, que mora ali perto e que é muito meu amigo, e voltei para casa a correr para ir tentar ajudar o meu pai», descreve Miguel Batista ao Maisfutebol.

Pelo caminho, e depois de se ter cruzado com Ricardo Costa, quando este tentava apagar alguns focos de incêndio que iam ardendo junto ao hotel que fica nas imediações do Estádio João Cardoso, Miguel ainda enviou uma mensagem para o grupo do plantel do Tondela com duas indicações: «Pedi ao Cláudio Ramos para dizer à minha mãe que eu estava com ele caso ela lhe ligasse e avisei que as estradas estavam todas cortadas, para ninguém tentar sair do centro de Tondela, que era o local mais seguro para estarem», descreve.

A casa de Miguel Batista

Ao chegar junto do pai, de um cenário que podia ser de inferno total, Miguel desvaloriza as perdas que encontrou. «Arderam sete carros da minha família, mas isso é um mal menor. Felizmente, essas foram as maiores perdas. Parte da fachada da casa ficou chamuscada, mas graças aos meus vizinhos, que ficaram a ajudar porque eram os únicos que tinham água da companhia, a casa não ardeu», salienta o jovem jogador.

«Às vezes fala-se de pressão no futebol. Pressão é lutar para salvar o trabalho de toda uma vida», resume.

Miguel Batista
Miguel Batista

Território desfeito em cinza

De há umas semanas para cá, qualquer pessoa que percorra alguns concelhos do distrito de Viseu vai deparar-se com um cenário vestido de negro, a perder de vista. Quase um mês depois dos incêndios que, só naquela zona da Beira Alta vitimaram 15 pessoas e deixaram algumas centenas desalojadas, o cheiro a queimado mantém-se tão intenso como se tivesse ardido há poucos dias.

E isso dá sentido à frase que nos foi dita por Tiago Barros, médio do Lusitano de Vildemoinhos, que, na mesma noite do relato de Miguel Batista, andou a combater as chamas em Silgueiros, no concelho de Viseu, para proteger casas de alguns familiares.

Tiago Barros (Foto Diana Zadilska)

«Neste momento, acho que é impossível haver uma pessoa nesta zona que não conheça alguém que perdeu isto, que perdeu aquilo, ou que ficou sem nada depois destes incêndios.»

No próprio balneário do Lusitano, basta olhar para o lado. Basta ouvir a história vivida pelo avançado Hélder Rodrigues, que mora a sul de Viseu, no concelho de Carregal do Sal.

«Nessa noite tinha-me deitado perto das 23 horas. Sabia que estava a arder em Santa Comba Dão, que é um dos concelhos vizinhos, mas nunca pensei que chegasse até ali», assegura. Enganou-se, porém.

Hélder Rodrigues (Foto Diana Zadilska)

«Perto das 2 da madrugada, os avós da minha esposa ligaram a dizer que já tinha ardido tudo à volta do Carregal e que as chamas estavam perto da casa deles. Fui logo para lá, mas só tive tempo de tirar o trator de um barracão que já estava a em chamas. E tudo o que lá estava, todas as plantações deles... ardeu tudo», lamenta.

Ainda assim, salvou-se a casa, depois de uma noite passada «encostados às paredes, de mangueiras na mão a tentar que o fogo não pegasse na casa», objetivo que foi conseguido.

Para continuar a recolher relatos de perdas não precisamos de sair do seio do Lusitano. É ali que falamos com Vítor Filipe, fisioterapeuta do clube que milita na Série C do Campeonato de Portugal.

Vítor Filipe (Foto Diana Zadilska)

Depois de passar a noite a proteger, com sucesso, a casa dos pais, «que fica pegada com uma serração que ardeu totalmente», tal como cerca de 80 por cento das áreas verdes do concelho de Santa Comba Dão, a pior notícia chegaria no dia seguinte, quando entrou no lar onde também trabalha.

«Já sabia que tinham ardido duas casas de primeira habitação na minha aldeia, Vila Pouca, mas depois soube que um dos funcionários do lar também acabou por perder a vida quando foi ajudar o irmão a tentar salvar um aviário, na freguesia de Sanjoaninho», rememora, enaltecendo a impossibilidade de, durante os dias seguintes, ultrapassar essa perda.

«Enfrentámos aquilo todos juntos»

Bernardo Abrantes

Bernardo Abrantes, médio de 23 anos do Mortágua e residente no concelho de Tábua, repete ideias que ouvimos de outros jogadores. A velocidade incontrolável com que as chamas avançaram e a impossibilidade de descrever em palavras o que foi vivido na noite de 15 de Outubro.

«Infelizmente, estamos muito habituados a ter incêndios na zona de Tábua, mas naquele dia não era igual à outras vezes. O fogo andava longe dali e, de repente, já dava a volta à aldeia», recorda o jovem residente no lugar de Póvoas.

«Andava a ajudar o meu pai, mas perto das 19 horas vim ter com os meus avós porque não havia gente para todas as situações. Tudo o que era verde à volta da casa deles desapareceu. Só às 3 da manhã é que me sentei um bocado no meio da estrada a descansar», refere o atleta que, no meio do que podia ter sido uma tragédia na pequena aldeia, identificou algo muito positivo.

«Foi muito bom ver a entreajuda de todas as pessoas. Há aqui pessoas de idade muito avançada, mas todos ajudaram os outros. Enfrentámos aquilo todos juntos e só assim é que foi possível evitar perdas maiores», orgulha-se “Berna”, como é conhecido no mundo do futebol.

Ora, e nesta história, o futebol também soube estar à altura. Além dos jogos da seleção nacional que a Federação Portuguesa de Futebol promoveu, fazendo reverter as receitas para as famílias que ficaram desalojadas nos distritos de Viseu e Leiria, várias outras iniciativas têm sido feitas em vários pontos do país.

Uma delas acontece, aliás, no próximo fim de semana, em Tondela. A AF Viseu desafiou o clube primodivisionário a  juntar-se ao Académico de Viseu, ao Lusitano de Vildemoinhos e ao Mortágua, para a promoção de um torneio solidário que pretende ajudar as corporações de bombeiros voluntários dos concelhos representados na competição.

Mas a ajuda, ainda que não de forma direta, vai também estender-se às populações. A certeza é de Miguel Batista.

«O torneio é uma grande iniciativa. Tudo o que servir para ajudar é necessário e o futebol faz bem em aproveitar a visibilidade que tem para se associar a este tipo de causas. E nem é só pelo dinheiro que se pode conseguir, mas sim pelo gesto. Eu olho para as pessoas daqui e penso: o que é que elas têm para se distraírem? Ao domingo, vão à missa de manhã e depois vão ao futebol. É isso que têm. E é por isso que estes pequenos gestos podem fazer a diferença.»