Em todos os jogos em casa, a rotina repete-se. Campo preparado, equipas em campo, adeptos na bancada e…presos nas janelas das celas. É assim a vida do Lamadrid, dos escalões secundários da Argentina, que é uma espécie de equipa da prisão da Villa Devoto, um dos bairros de Buenos Aires, a capital.

Não que a equipa seja formada por presidiários, mas estes são uma fatia dos adeptos. Explicando. O campo Enrique Sexto, onde joga o Lamadrid, fica nas costas de uma prisão. De 15 em 15 dias, quando há jogo, é habitual ver as janelas das celas enfeitadas com cartazes e bandeiras do clube.

Por 90 minutos, os presos têm algum contacto com a realidade, mesmo que atrás das grades. O futebol acaba por ser um momento de regresso à normalidade. De liberdade, embora confinada a quatro paredes. Espreitar o mundo real.

A história invulgar já deu origem a um livro. Marcelo Izquierdo, jornalista, é oriundo da Villa Devota e não esquece o lugar. Único, como escreveu no livro «Carceleros», alcunha pelo qual é conhecida a equipa.

«Do conhecimento que tenho, o Lamadrid é o único clube que joga em frente a uma prisão. Tudo acontece debaixo do olhar dos presos. Homens que lançam papelinhos das suas celas, estendem toalhas azuis nas janelas como se fossem bandeiras», descreve o jornalista, numa entrevista recente ao jornal «Ole».

O clube nasceu em 1950. A prisão já lá estava desde a década de 20. Na Argentina, a cultura de clube de bairro é muito valorizada. Os moradores adotaram o Lamadrid e os presos fizeram o mesmo. Porque lhes permite o tal contacto com o mundo que ficou fora do cárcere.




«Aqui nada acelera o passar do tempo. Nem os motins que várias vezes golpeiam o lugar. Nem as fugas histórias, como a do Gordo Valor, em 1994. Ou o massacre de 78, que roubou a vida a 78 detidos. Nem quando um helicóptero aterrou, sem aviso, no campo em plena ditadura militar.» [Excerto do livro «Carceleros»]

O preso que se tornou dirigente e os sócios que acabaram presos

Ao longo de 65 anos de vida, muitas histórias marcaram esta peculiar equipa. Como poderia não ser? O exemplo de «El Loco» Mario Oriente talvez seja o mais curioso.

Adepto do Boca Juniors quando foi condenado e levado para a prisão da Villa Devoto. Lá apaixonou-se pelo Lamadrid. Quando a pena terminou e foi libertado, comprou uma casa no bairro, tornou-se dirigente no clube e compôs o hino que é usado ainda hoje.

Izquierdo conta que também houve vários casos inversos: sócios que se entregaram à delinquência, acabaram presos e a ver os jogos da sua equipa atrás das grades. E mais, até, do que o futebol.

No livro é recordado que, sobretudo durante a ditadura militar, era comum a realização de concertos e festas no campo do Lamadrid, que os presos também aproveitavam para espreitar, esquecendo por momentos a solidão.

«Para os presos, o Lamadrid foi sempre uma via de escape. O único contacto que tem através do exterior são as janelas das celas. E de lá o melhor que podiam ver era, mesmo, os jogos de futebol aos domingos», sublinhou o jornalista.

Por ano, o clube perde cerca de 60 bolas para a prisão


A prisão em si, o edifício, fica a cerca de 50 metros do campo Enrique Sexto. O espaço que separa os dois lugares é preenchido, em grande parte, pelo pátio da prisão, por onde os detidos passeiam durante o dia.

Ora, a proximidade traz inconveniências. Por ano, o clube perde cerca de 60 bolas, que vão para o pátio e não voltam. «Outras vezes vai uma bola nova e devolvem uma velha», conta Izquerdo.

Apesar do amor entre muitos dos presos e o clube, a relação já teve períodos de turbulência. No início dos anos 60, um grupo de sócios do Lamadrid barricou-se no campo durante quatro dias, quando veio a público a prisão iria alargar para lá as suas fronteiras. Não deu em nada, mas a ameaça continua real até aos dias que correm: o terreno onde fica o campo pertence ao Estado.

«Ninguém gosta de viver num bairro com uma prisão. Mas ali acabaram por habituar-se. Ninguém gosta da prisão mas faz parte da vida das pessoas. Hoje ainda não se sabe se é a prisão que pertence ao bairro ou o bairro que pertence à prisão»,
define Izquierdo.

Um resumo de um jogo no Enrique Sexto: