Na primeira vez que colocou um pé num torneio de ténis profissional, a credencial de João Guedes identificava-o como «Acompanhante». Uns meses mais tarde, conquistada a confiança de atletas, treinadores e agentes oficiais, o português passou a ser identificado como «Treinador».

Em 2020, a evolução transformou a palavrinha mágica para «Fisioterapeuta». O preconceito, diz na conversa com o Maisfutebol, não permite mais. E o que é esse ‘mais’?

«Sou terapeuta de reflexologia. O WTA Tour já começa a abrir-se às terapias alternativas, mas a mentalidade e o protocolo ainda são retrógrados. A própria Ons Jabeur – atual número 39 do ranking mundial – tinha vergonha de mim no início. Trabalho com ela desde 2017.»

Reflexologia. Talvez o melhor seja começar por aí. O que é a reflexologia e de que forma João Guedes a aplica no circuito mundial de ténis profissional?

«A reflexologia baseia-se na existência de áreas reflexas que correspondem às nossas partes anatómicas e aos nossos órgãos. Ao estimular essas áreas reflexas procuramos devolver o equilíbrio ao nosso organismo. Cada parte corresponde a determinado órgão ou órgãos.»

VÍDEO: uma sessão de reflexologia com João Guedes

Para perceber a entrada de João no ténis profissional, é preciso voltar a 2005 e a um acidente que lhe muda a vida e coloca-o no caminho da reflexologia. Um caminho de «paz e saúde».

«Era instrutor de defesa pessoal, mas um dia acordei e tinha a perna esquerda a parecer um tronco. Fui ao hospital, tinha a perna muito inchada, mas só me deram uma injeção de Aspegic. No dia seguinte estava pior. Três meses depois, em grande sofrimento, fui ao dr. Leandro Massada, um ortopedista famoso no Porto. Assustou-se e mandou-me logo para o Hospital de Santo António. Ele percebeu que a origem do problema não estava na perna e acertou. No hospital fizeram-me o diagnóstico certo: tromboembolismo pulmonar. Mudou a minha vida.»

João é forçado a mudar, passa um período longo em casa a restabelecer-se e, «por curiosidade», inscreve-se num curso de reflexologia.

«A minha irmã falou-me de uma amiga que ia experimentar e eu na altura tinha tempo livre. Tirei um curso de dois anos e fiz uma especialização a seguir. Chama-se ‘Observação Dinâmica do pé’. Fui investindo no meu próprio conhecimento, criei algumas técnicas só minhas e passei também a lecionar cursos de reflexologia.»

Em poucos anos, João Guedes estabelece-se por conta própria e passa a colaborar com o IPO do Porto. Uma experiência, mais uma, que lhe muda a forma de olhar a própria existência.

«Em 2011 passei a fazer voluntariado no IPO do Porto. Fiz uma investigação grande sobre os benefícios da reflexologia em pacientes com cancro e, por volta de 2013, esse estudo foi aprovado internamente. A diretora de serviço dos cuidados paliativos viu os resultados do meu trabalho e passei a receber os pacientes com prognóstico mais grave», conta João Guedes.

«Só saí de lá porque a diretora de investigação do IPO, Manuela Seixas, também saiu. Criámos um método muito interessante, mas a doutora foi contratada pela Fundação Champalimaud. Fui ficando, mas percebi que havia muita gente a morrer por culpa dos efeitos secundários provocados pelo tratamento. Em muitos casos, sim, a quimioterapia é benéfica. Noutros, não.»

A vida não pára e, ao mesmo tempo que o IPO fica para trás, o projeto em nome próprio ganha asas e voa até Miami.

«Através de uma rede social fui abordado por uma senhora de lá. Elogiou o meu trabalho e desafiou-me a trabalhar com ela nos EUA. Nesse período conheci um dos pacientes dela, um chef francês muito famoso. Ajudei-o com o meu trabalho e ficámos grandes amigos até hoje.»

«Mais tarde, esse chef abriu-me as portas de Paris», recorda o terapeuta português. «O chef e a minha irmã criaram amizade e falaram-me de uma tenista profissional, amiga deles, que se queixava de uma dor no calcanhar. Isto em 2015. Ela tinha andado em vários fisioterapeutas e não melhorava. Veio cá ao Porto ser consultada por mim.»

A tenista chama-se Selima Sfar, a melhor tunisina de sempre. Tem dois Jogos Olímpicos no CV e é comentadora da modalidade na televisão BeIn Sports.

«Era uma coisa simples, uma inflamação na zona do calcanhar. Resolvi facilmente. O problema é que o protocolo dos médicos e fisioterapeutas do WTA é muito restrito. Baseia-se muito em medicação à base de anti-inflamatórios. As tenistas passaram a sentir necessidade de procurar ajuda noutros lados. É aí que entram as terapêuticas alternativas, como a reflexologia, menos invasivas.»

Ainda sem saber, João Guedes carimba com esse tratamento a Selima a entrada no restrito WTA Tour. Um mundo de oportunidades.

De 180ª a 39ª no ranking mundial: o lado visível do trabalho com Jabeur

No final de 2017, chega o convite. A protegida de Selima Sfar, Ons Jabeur, precisa de ajuda. Para crescer, para estabilizar física e emocionalmente. Os bons serviços de João Guedes são requisitados com urgência.

«A Ons Jabeur ia fazer as qualificações de Miami e Wimbledon e precisava de um terapeuta. Ela nem sabia bem o que eu fazia (risos). Tentei mexer com a cabeça dela, acima de tudo, porque o ténis é uma modalidade de concentração e inteligência.»

«Via-a a bater com a raqueta, a gritar, a chamar nomes aos outros. Fui ter com ela e disse-lhe: ‘Hoje foi a última vez que fizeste isso. Boas atitudes trazem bons resultados’. Mudei as energias que a rodeavam», recorda o português. Os resultados não se fazem esperar, muito por culpa dessa «estabilização emocional».

«Qualificou-se para o quadro principal de Wimbledon, ainda em 2017. Ela tem uma qualidade técnica incrível, mas emocionalmente era frágil, muito frágil. A nossa ligação inicial era muito pontual e estivemos até meses sem falar. Uns tempos depois, quando a carreira estava a cair a pique novamente, recebi uma mensagem dela. Abril de 2018. Pediu novamente a minha ajuda e lá fui eu.»

A tunisina está em crise de resultados. João junta-se ao staff – há ainda um treinador e um preparador-físico que também é marido – e ganha em definitivo a confiança da tenista.

Ons Jabeur e João Guedes em Wimbledon

«A Ons não ganhava um jogo há muito tempo. Começamos por um ITF de 100 mil dólares em França. A primeira adversária foi uma jogadora que lhe tinha ganho no torneio imediatamente anterior. Ganhámos 6/4, 6/3 e chegámos às meias-finais.»

Qual é o segredo, o que pode um terapeuta de reflexologia levar à atleta?

«Além da manipulação e do tratamento nos pés e nas mãos, que lhe dão bem estar físico e saúde, dou-lhe alegria e companheirismo. Um abraço no momento certo faz toda a diferença no desporto profissional. O lado emocional do meu trabalho é fundamental.»

Os dados são objetivos, para crentes e não crentes, crédulos e incrédulos. Ons Jabeur ocupa o 180º lugar do ranking WTA em abril de 2018, altura em que João Guedes começa a acompanhá-la frequentemente. Dois anos depois, a tunisina é 39ª.

«Os resultados gerais da Ons Jabeur melhoraram radicalmente. Em 2019 já conseguiu chegar à terceira ronda do US Open e em 2020 esteve nos quartos-de-final do Open da Austrália e do Open do Qatar. Na Austrália ganhou à Caroline Wozniacki, no último jogo da carreira da Wozniacki», resume João Guedes.

«Gostava de ter dado ‘the last dance’ à Sharapova»

Viagens, estágios, treinos. Dureza. «Lembro-me dos treinos que fizemos em Maiorca. Levei-a ao limite do sofrimento. Degraus, rampas, corrida na praia. Fazíamos isto e um trabalho emocional muito rigoroso para devolver-lhe confiança. Quero que ela entre em court e toque na terra, na relva, que fale com o campo. Ela encaixou isso.»

O tempo passa e o português torna-se presença cada vez mais habitual no mundo das tenistas famosas. Sem surpresa, as adversárias de Ons Jabeur começam a solicitar-lhe os préstimos. Das menos conhecidas a… Maria Sharapova.

«Vou à Turquia e Rep. Checa com a Ons em breve, mas já há muitas tenistas a pedirem o meu apoio, é verdade. Já ajudei várias. A Tatjana Maria, alemã e número 91 do ranking, mais cinco ou seis tenistas francesas. A Maria Sharapova? Estava no limite da dor no ombro e falaram-lhe de mim. O problema era grave, dizem-me, mas tínhamos as coisas apalavradas e acredito que a podia ter ajudado. Ela decidiu, entretanto, acabar a carreira. Gostava de ter trabalhado com ela, nem que fosse para the last dance

No meio disto tudo, onde entra o ténis português na carreira de João Guedes?

«Nunca tive nenhuma abordagem de tenistas portugueses. Cruzo-me pontualmente com o João Sousa, quando o WTA e o ATP estão no mesmo sítio, mas nem sequer falamos. Acho que nem sabem que eu existo (risos).»

O futuro? Passa certamente pela valorização profissional dentro do mundo do ténis. «A estrutura oficial do WTA Tour está cada vez mais recetiva a este tipo de terapias. Gosto muito do que faço e eles também.»