A história foi notícia no último fim de semana: João Lopes, árbitro de 34 anos do distrito de Setúbal, tinha socorrido um jogador inanimado numa partida de juniores em Almada, entre o Sobredense e o Bairro Novo.  

O curioso é que foi a terceira vez que João Lopes socorreu um atleta. Em apenas dois anos, o árbitro, que também é bombeiro, tem portanto muito para contar.

Por isso o Maisfutebol foi naturalmente falar com ele.

«Foi um lance dividido com três jogadores, um da equipa adversária e dois da mesma equipa, um dos quais o Gonçalo Mouronho. Aconteceu tudo do lado do meu colega, do lado do segundo árbitro», começa por contar.

«O Gonçalo, ao tentar fazer um corte, escorregou, passou por baixo do colega de equipa e levou uma joelhada na frontal. Mesmo em cheio. A bola sobrou para o meu lado, dei ordem para parar o jogo, para que o meu colega fosse ver o jogador e se precisava de assistência. Quando ele chegou, perguntou: jogador, está tudo bem? E o Gonçalo ainda lhe respondeu. Logo depois disso, através do sistema de comunicação, o meu colega disse-me olha, acho que ele desmaiou.»

Nessa altura, a alma de bombeiro sobrepôs-se à de árbitro e João Lopes correu para o outro lado do campo.

«Rapidamente fui para lá, observei que o Gonçalo respirava, que tinha pulso, embora fraco, e segui o protocolo, que foi colocá-lo em PLS, Posição Lateral de Segurança. O que manda o protocolo com vítimas sem consciência, mas a respirar, é colocá-las em PLS até que recuperem», adianta.

«Passados três ou quatro segundos recuperou os sentidos. Fiz-lhe então as perguntas obrigatórias, se sentia as pernas, se sentia os braços, o que é que lhe doía, onde lhe doía, fazemos a palpação desde o pescoço até ao pés, à mínima dor a vítima tem de ser imobilizada para se transportada ao hospital.»

O jogador só referia uma dor normal na face, na zona da pancada.

«Antes de sair de campo, ele ainda indicou algumas náuseas, esperamos um pouco. Depois ele disse que estava bem, eu pedi para irem buscar uma cadeira, sentámo-lo e levámo-lo na cadeira para o balneário. Demos autorização à mãe para entrar, ele ficou com a mãe e a delegada do Sobradense, a observá-lo», disse.

«O jogo seguiu. Passados uns cincos ou dez minutos ele começou a sentir-se bastante pior, com náuseas e vómitos, mas não chegou a vomitar, e nessa altura demos logo indicação para chamar a ambulância. Já me disseram que teve alta na terça-feira, que está bem e que agora vai ficar em repouso algum tempo.»

João Lopes tornou-se então notícia e teve até algum reconhecimento público, mas diz que não precisa disso.

«O olhar de agradecimento do pai do Gonçalo chegou-me», referiu.

O pai do jogador não estava no pavilhão, mas foi avisado quando tudo aconteceu, dirigiu-se para o jogo e ainda chegou antes da ambulância. Quando o filho foi levado para o hospital, cruzou-se com o árbitro e disse-lhe tudo com os olhos.

Esta, como se disse, foi a terceira vez que João Lopes socorreu um jogador.

Mas como foram afinal as outras duas?

«A primeira vez aconteceu no ano passado, num jogo em que estava a fazer de cronometrista, e um jogador do Santa Marta, sem haver contacto, a tentar rematar à baliza, deslocou a rótula. Quando é articulações ou ossos, é muito complicado se alguém mexe sem saber. Então nessa altura imobilizei a perna ao jogador, chamámos a ambulância e o jogador foi levado ao hospital», contou.

«A segunda vez foi esta época, num jogo de juniores, dois jogadores remataram ao mesmo tempo na bola e um deles, da Quinta do Conde, saiu magoado na tibiotársica. O fisioterapeuta sentiu-se desconfortável com aquela situação, eu estava acompanhado de um cronometrista que também faz parte da minha corporação de bombeiros e os dois seguimos os procedimentos normais: imobilizámos o pé e a perna, chamámos a ambulância e foi levado ao hospital.»

Ora a história do árbitro que já socorreu três atletas ganha algum sentido quando se percebe que João Lopes não é só árbitro: também é bombeiro há cerca de cinco anos e, portanto, salvar pessoas está-lhe no sangue.

«Temos dois níveis de formação em socorrismo nos bombeiros, temos o TAT -tripulante de ambulância de transporte -, e temos TAS - tripulante de ambulância de socorro. Eu sou TAS. Estamos a falar de uma formação de 250 horas, que nos dá todas as valências de socorrismo: saber socorrer, imobilizar, entubar, enfim.»

João Lopes é, portanto, um homem dividido entre duas paixões: os bombeiros e a arbitragem. Vestir-se de vermelho e sair para a rua a salvar pessoas é um amor que nasceu primeiro, porém.

«A paixão por ser bombeiro vem de pequenino, quase desde a nascença. A minha avó foi bombeira em Elvas, quando a minha família regressou como retornada de Moçambique, e desde muito cedo tentou passar a paixão por esta área aos netos através das histórias que nos contava. Tenho primas enfermeiras, tenho eu que sou bombeiro e tenho um irmão que está a estudar para medicina», refere.

«Eu sempre tive a vontade de ser bombeiro, mas só aos 29 anos é que assinei mesmo o contrato e fiz a formação necessária. Sou bombeiro há cinco anos, mas em novembro de 2018 passei de profissional a voluntário.»

João Lopes diz que foi uma decisão que lhe custou muito, mas que teve que ser.

«Infelizmente em Portugal os bombeiros não são uma classe agradecida na remuneração, é difícil conseguir-se viver sendo só bombeiro, por isso surgiu uma hipótese de ser supervisor de limpeza e deixei de ser bombeiro assalariado», diz.

«Continuo a fazer os meus serviços voluntários, faço quatro turnos por mês, mais os serviços extraordinários que me são pedidos, e vou ajudando assim. Temos de dar xis horas por ano ao quartel, mas ao fim de seis meses já ultrapassámos esse número. Enfim, quem corre por gosto não cansa e quem está nos bombeiros é mesmo por paixão. É uma coisa que vem do coração.»

Na carreira de bombeiro, João Lopes já viveu momentos complicados, mas há um dia que não esquece. 15 de outubro de 2017: o dia em que o país ardeu. A Proteção Civil registou 443 incêndios e ele foi destacado para Monção, no Minho.

«Estive há dois anos em Pedrógão, mas fui no fim, já depois da calamidade. Depois fui também para os fogos do dia 15 de outubro. Tínhamos três carros no norte, íamos-nos revezando a cada 48 horas, às vezes um pouco mais», lembra.

«Eu estava de férias. Houve um carro na coluna de Setúbal que avariou e pediram à Corporação da Amora para enviar um carro a substituir esse. O meu comadante ligou-me, perguntou-me se podia ir fazer 48 horas a Monção e acabei por estar lá oito dias, sempre com um crescendo de trabalho, infelizmente.»

O trágico dia 15 de outubro foi o pior, mas nessa semana todos foram maus.

«Para mim do dia 14 ao dia 16 foi só um dia: comecei a trabalhar no dia 14 e só terminei a 16. Perde-se noção das horas, perde-se noção se é de dia se é de noite, enfim, aquilo foi só um dia. Tivemos situações de aperto, mas no fim correu tudo bem: não ficou lá ninguém, trouxemos o material todo, é o que interessa.»

A paixão pela arbitragem é mais recente.

«Eu comecei por me apaixonar pelo futsal, quando me convidaram para ir ajudar um treinador a ficar com uma equipa de infantis no Santa Marta. Aceitei, foi um desafio engraçado aprender sobre futsal e ler sobre futsal. Entretanto o treinador teve que sair e eu fiquei sozinho com essa equipa», recorda.

«Foi um ano muito giro, com muitas boas recordações, muitas amizades. Quando entrei para os bombeiros, e porque o tempo não dava para tudo, abdiquei do futsal, com muita pena minha. Há cerca de três anos, surgiu a oportunidade de ir tirar o curso de árbitro, pensando que ocupava menos tempo. Tirei o curso, comecei a apitar uns joguinhos, comecei a gostar e apercebi-me que exige muito de nós física e mentalmente. Mas pronto, quando se gosta das coisas...»

Curiosamente, João Lopes consegue juntar dois lados completamente opostos de uma mesma medalha: por um lado agradecimentos, por outro lado insultos. Se na dedicação aos bombeiros é elogiado, na arbitragem geralmente é cirticado. O que lança a pergunta: como é que reage aos insultos que os árbitros ouvem?

«Não ouço. Simplesmente não ouço. Apito dos benjamis aos seniores, portanto desde os pais às esposas, apanha-se de tudo, mas estou ali para impor as leis do jogo e não ouço. A única coisa que não admito é incentivo à violência ou atitudes racistas por parte do público», sublinha.

«Nessa altura, quando acontece, paro o jogo e digo aos PCS ou ao agente da autoridade para agirem em conformidade. Depois segue-se o jogo. Das vezes que aconteceu, as pessoas falaram, acalmaram-se os ânimos e o jogo seguiu.»

João Lopes só não imaginava que arbitrar jogos se cruzasse tantas vezes com a função de bombeiro. Mas não se queixa. Afinal ajudar está-lhe no sangue.