Não há dia em que a porta da barbearia se abra e que o rádio esteja em silêncio. O aparelho, que nem leva tantos anos como os que José Carvalho tem no ofício de corte de barba e cabelo, é, para além de companhia e fornecedor de informações do que se passa na região e no mundo, o companheiro fiel do barbeiro quando a hora das emoções do futebol coincide com a chegada de algum cliente.

«Quando joga o Benfica, escuto com atenção. Quando são os outros, não ligo nenhuma.»

Foi, aliás, essa paixão pelo clube de Lisboa que fez com que o local que garantiu a José Carvalho o pão de todos os dias fosse batizado de «Barbearia Benfica».  

É neste espaço, na rua da Saúde, que o barbeiro, também conhecido na freguesia micaelense dos Arrifes como José ‘Galinha’, ainda passa uma boa parte dos seus dias.

Foi para esta arte com 10 anos, depois do professor ter enviado um bilhete ao pai.

«Senhor Carvalho, o seu filho quer é trabalho.» 

A famosa barbearia do senhor José Galinha

A recomendação foi seguida sem qualquer hesitação e José passou a acompanhar um tio que trabalhava como barbeiro, na freguesia de Santa Clara. Seis anos depois, José ‘Galinha’  estava a montar a sua própria barbearia.

Hoje, com 88 anos de idade e 78 de barbeiro, garante que não impõe data ou limite para ‘arrumar as tesouras’.

«Esta tarde já cortei dois cabelos. A idade já não ajuda mas ainda tenho a mão firme», demonstra, explicando, com recurso a uma velha máquina de corte, como desfazia fartas cabeleiras há duas décadas. Pelo manusear, nota-se que se trata de um instrumento que exigia uma boa dose de destreza e pulso rijo.

«Havia dias em que quase não se sentia a mão. Toda a gente vinha ao barbeiro. Agora, é raro o pai que traz o filho. Só alguns para mostrar como era antigamente. As mães como vão muitas vezes às cabeleireiras, levam os meninos e já despacham trabalho.»

Ferramentas histórias na Barbearia Benfica

E como o tempo mudou os hábitos, também a forma como se corta cabelo na Barbearia Benfica se alterou. A velhinha máquina de aparar que tanta firmeza exigia, reformou-se ainda antes do barbeiro. Não foi, no entanto, renegada para segundo plano. Está onde sempre esteve, ao lado das tesouras, mas, agora, a repousar… Deu lugar a uma máquina elétrica. E bem vistas as coisas, esta é mesmo a única modernice que se permite ali entrar. Tudo o resto é uma verdadeira viagem no tempo. Talvez por isso, as paragens são, cada vez mais, para ver o museu que ali se criou, do que para cortar barba ou cabelo.

Nas paredes, em prateleiras e até no teto há história e estórias. Desde dos brinquedos em madeira, também eles executados pelas mãos do barbeiro, às fotografias e quadras a preceito, mostrando que o pouco tempo na escola não lhe travou o talento para os versos.

«Tudo o que aqui fui colocando é no sentido de lembrar o nosso passado.»

Mas, como o espaço não chega para albergar as memórias de uma vida, algo teve de ser sacrificado: os adereços e posters do Benfica. Das conquistas do Glorioso, hoje em dia, pouco resta: um quadro de Miklós Fehér ou a fotografia do presidente do clube, Luís Filipe Vieira, em lugar de destaque.

«Para além de um grande benfiquista, é um filho dos Arrifes com muito orgulho na sua terra. Os adereços do clube até podem ter saído mas a paixão pelo clube permanece enorme. Isso ele não precisa lembrar a ninguém», garante Hugo Carvalho, o neto que lamenta não ter conseguido bilhete para, pela primeira vez, levar o avô a ver o Benfica.

«Tínhamos muito gosto em levá-lo ao estádio. Ele nunca viu, ao vivo, um jogo do seu clube do coração.»

A parte de trás da carrinha do senhor Laranja

Quem também não tem a entrada assegurada para o jogo desta sexta-feira em São Miguel é Manuel Bernardo. Tal como José Carvalho, é um fervoroso adepto do Benfica. E, à semelhança do barbeiro, também mantém o gosto pelo colecionismo.

Contudo, ao contrário de José ‘Galinha’,  ‘Laranja’ como também é conhecido, soma adereços do clube da Luz, seja na garagem (e até já foi apelidada de museu), nas paredes de casa e, sobretudo, na carrinha.

Para este antigo jogador de futebol, qualquer coisa que tenha ligação estreita com o Benfica, desde réplicas do estádio a meros autocolantes, tudo tem lugar na viatura que, orgulhosamente, vai conduzindo pela cidade de Ponta Delgada.

«As pessoas da ilha já conhecem a carrinha mas gostam de vir perguntar se já arranjei mais alguma novidade. Já, os turistas pedem-me para tirar fotografias. Alguns dos objetos fui trazendo da capital quando lá ia com o meu filho, outros fui adquirindo aqui pela ilha».

 

O senhor Laranja com o ídolo Eusébio

Mas nem só a carrinha vive de adereços. O proprietário também não dispensa a indumentária a rigor, desde o fato de treino ao relógio, incluindo um anel com o símbolo do Benfica.

«Tinha muito gosto em mostrar tudo isto à equipa ou aos dirigentes do Benfica. Quando a equipa veio cá da última vez, ainda estive perto da saída dos jogadores no aeroporto mas não consegui chegar a ninguém. Gostava muito que dessa vez fosse diferente».

Sobre a ida ao estádio de São Miguel esta sexta-feira, diz que até à hora do jogo não desiste de tentar conseguir um bilhete. Já ouviu falar que o ‘mercado negro’ podia ser uma saída mas prefere apostar no valor da amizade para conseguir assistir à partida. Afinal, sai mais barato e é legal…

«Tenho um amigo que é jogador do Santa Clara. Talvez ele possa ajudar-me».

Quanto aos palpites para o resultado da partida, quer “Laranja”, quer o barbeiro dos Arrifes, recusam admitir que clube mais faz palpitar o coração. É o que faz ser benfiquista e ter os Açores como berço!

[artigo originalmente publicado às 23h54, 10-01-2019]