Ir ao futebol é também respirar o futebol. Sentir os cheiros. O da relva, claro, mas também outros antes disso.

O das bifanas. O dos couratos. O dos cachorros. Até o da cerveja derramada entre um e outro brinde. Ao Benfica. Ao FC Porto. Ao Sporting. À amizade!

Ainda há pouco mais de duas semanas, numa conversa nas redes sociais, o humorista Bruno Nogueira pedia conselhos a Bernardo Silva sobre como se conseguir entusiasmar com futebol. A receita do ex-Benfica foi simples.

«Não gostas de futebol? Mas gostas de copos? E gostas de beber copos com os amigos? Então tens de ir para as rulotes do Estádio da Luz. Não há melhor do que aquilo: couratos, bifanas e malta bem-disposta. Não há melhor», garantia.

Isso, porém, não volta agora. O regresso do futebol não traz com ele esse convívio e esses cheiros extra-jogo.

E se eles vão fazer falta a muitos adeptos, o que dizer sobre quem faz desse negócio a forma de vida?

Foi isso que o Maisfutebol foi tentar perceber junto de comerciantes das rulotes que se costumam encontrar junto aos estádios do nosso futebol.

«Será que acham que os adeptos do futebol são estúpidos?»

Daniel Rodrigues é, aos 55 anos, um dos decanos deste tipo de vida que escolheu aos 23.

O proprietário do espaço Parybeb confessa que nem sabe bem o porquê de, depois de ter terminado a tropa, ter decidido apostar neste negócio. Mas acha que foi o amor ao futebol que o empurrou.

«Sempre fui ao futebol, lembro-me de ver alguns espaços e aos 23 anos decidi comprar uma rulote e começar também a fazer negócio. Dediquei-me a isto e é uma vida de que gosto», resume, ele que emprega dois funcionários, que teve de colocar em layoff neste período.

Presença habitual junto ao Estádio da Luz – onde tem dois espaços -, ao de Alvalade e ao do Jamor desde que o Belenenses se mudou para ali, o comerciante diz que «80 por cento do volume de negócios provém dos dias de jogo», que complementa com a presença em alguns mercados.

Mas apesar de lamentar o corte que teve no rendimento devido à interrupção da competição, a maior revolta que Daniel Rodrigues sente é na pele… de adepto.

«Depois de mais de 30 anos disto, se fossem dois meses sem vender que me fizessem dizer que andava a passar fome, estaria a mentir. Ou então não tinha tido cabeça durante 30 anos», admite, resumindo: «Mais do que a perda de rendimento, o que me revolta é este sentimento de injustiça».

«Nem há palavras para o facto de as pessoas não poderem ir ao futebol, que é ao ar livre. Mas depois podem estar 2.000 pessoas no Campo Pequeno a assistir a um espetáculo [Deixem o Pimba em paz]. Será que o ar dos estádios tem micróbios? Ou acha, que os adeptos de futebol são todos estúpidos? O futebol sem adeptos é ridículo», defende.

«Há clientes que me ligam com saudades do convívio»

A um do dia do regresso da Liga, o dono da Parybeb ainda não viu respondida a solicitação para voltar a abrir junto ao Estádio da Luz, mas já sabe que não vai poder voltar esta época a Alvalade. E garante que entende a justificação.

«O local onde ficamos nos jogos do Sporting é no jardim do Campo Grande e obriga a cortar a estrada. E sem adeptos no estádio, se calhar não se justifica estar a cortar a estrada», concede.

De resto, é notória a paixão com que Daniel Rodrigues fala da vida que abraça há mais de três décadas. E isso também está relacionado com as amizades que foi criando ao longo desse tempo. Ao ponto de, durante o período de confinamento, vários clientes lhe terem telefonado… para desabafar.

«Nós lidamos com pessoas e ao longo de tantos anos, muitos clientes tornaram-se amigos. Tenho clientes de 30 anos e alguns deles têm-me ligado com saudades dos convívios que se faziam em dias de jogo», confidencia.

«O futebol é festa e aquilo que eu faço não é apenas um negócio. É festa também. É o convívio de gente que se conheceu no futebol, que vem de todo o país e que se junta a conviver junto às rulotes», descreve.

«Em dia de jogo, faturamos o equivale a três semanas boas»

A mesma ideia é defendida por Fernando Colaço que, juntamente com a esposa, gere a rulote ‘Naia’, vizinha de um dos espaços de Daniel Rodrigues, junto ao centro comercial Colombo.

Com negócio aberto há três anos, Fernando Colaço explica que a ‘Naia’ funciona diariamente e não apenas em dias de jogo, porém, esses eram os dias que faziam realmente valer a pena.

«Para ter uma ideia, em dia de jogo nós faturávamos o equivalente a três semanas boas. São enchentes de gente que se juntam ali e ficam a conviver com os amigos enquanto comem e bebem qualquer coisa», nota o empresário.

E por isso mesmo, não é apenas do negócio que Fernando Colaço sente falta, tal como diz o gerente do Parybeb. É da vida que um jogo de futebol cria para lá do jogo.

«O convívio que se gera nesses dias é muito bonito e importante. Há amigos que só se encontram em dia de jogo, fazem de uma rulote o ponto de encontro e ficam ali a conviver. Nós percebemos que o futebol é também um escape dos problemas de todos os dias e assistimos a isso em dias de jogo», assegura.

Ainda assim, com três anos desta vida, a estabilidade financeira dos proprietários da ‘Naia’ não permite falar com tanto distanciamento dos rendimentos perdidos, como faz Daniel Rodrigues. Mesmo que Fernando Colaço tenha um emprego que não o obrigou a parar nestes últimos meses.

«Financeiramente foi complicado. O dinheiro que tínhamos conseguido economizar nos últimos anos, tivemos de o gastar agora», revela o comerciante que reabriu o seu espaço na segunda-feira.

«Durante a semana, a maior parte do movimento vem de gente que trabalha no Colombo ou nos escritórios aqui em volta. No primeiro dia que abrimos, posso dizer só que tivemos 30 euros de lucro», lamenta.

Ora, tendo isso em conta, e apesar de saber que não viver as enchentes de público habituais em jogos do Benfica, Fernando Colaço espera que o Benfica-Tondela desta quinta-feira ajude a animar o negócio.

«Apesar de ser à porta fechada, o jogo pode gerar algum movimento. Como temos televisões na rulote, temos esperança que algumas pessoas fiquem por ali a ver a bola e a beber umas cervejinhas», deseja.

Para isso, já foram tomadas todas as medidas de segurança impostas pelas autoridades.

«Temos de ter vários cuidados: gel desinfetante nas duas pontas da rulote, luvas, máscaras e desinfetante para nós e os clientes têm de estar a um metro e meio do balcão e com distância entre eles», informa.

No fundo, também aqui se vai viver uma nova realidade. Uma realidade menos colorida, mais distante, com menos abraços. E nem os cheiros de sempre vão voltar ao futebol.