Dias de tempestade. Renzo entra e sai de casa, Renzo come a correr, Renzo não ouve o ralhete dos pais, Renzo quer vestir a melhor roupa e dançar.

Estamos em 2009 e aos 16, já cantavam os GNR, Renzo tem o mau gosto de vestir como os DJ’s. «Tive de ir a Córdoba e esperar por ele em casa. Quando chegou, tivemos uma conversa muito séria: ‘niño, vieste para cá jogar futebol. Se não aproveitas o sacrifício dos teus pais, então voltas para a tua tierra’»

Reinaldo Saravia, pai de Renzo, acerta no tom e no timing. Acabam as noitadas, acabam as bebidas, acabam as namoradas multiplicadas. «Em Córdoba há a cultura do Cuarteto, uma música popular», explica don Reinaldo ao Maisfutebol.

«Todas as noites há concertos e bailes. A música, o fernet [uma bebida argentina de alto teor alcoólico] e as mulheres não acabam nunca. Disse ao Renzo que se persistisse nesse comportamento, então nunca cumpriria os nossos sonhos», continua o pai de Renzo Saravia, pai do agora lateral do FC Porto.

A adolescência é assim, um compêndio de comportamentos parvos. Renzo parou a tempo. Longe de casa, sem o controlo diário dos pais, Córdoba era uma arena perversa de boémia e tentação. O futebol, o sonho maior, prevaleceu.

Villa de Maria Rio Seco fica 26 kms a norte de Córdoba

Uma infância sem maldade e o roubo das sapatilhas novas

Dias de inocência. Renzo nasce em Villa de Maria de Rio Seco, pequena aldeia com cinco mil habitantes, a 26 quilómetros de Córdoba, norte da Argentina.

Reinaldo, o pai, é polícia e apaixonado por boxe. Chega a ser pugilista amador. Stella, a mãe, é professora e a voz de todas as consciências dos Saravias. A casa não é grande, mas não falta amor, cumplicidade e barulho.

«Tivemos seis filhos, cinco rapazes e uma menina. Renzo, Facundo, Juan Manuel, Alejandro, Flavia e Benjamim», conta Reinaldo ao nosso jornal, permitindo-nos espreitar pelo buraco da fechadura lá de casa.

«O Renzo teve uma infância típica do povo serrano. Não havia maldade, não havia drogas, só pureza. Pureza e futebol», continua o progenitor do novo dragão, certificando o bom coração do filho.

«Era uma criança obediente. Há uma história famosa na nossa família, sobre umas sapatilhas», diz, já entre gargalhadas, o pai de Renzo Saravia. «Nós demos-lhe, com esforço, umas sapatilhas novas. Mas ele sabia que não podia jogar futebol com elas, eram as únicas que tinha.»

«Aqui na rua havia jogos todos os dias e o Renzo não resistiu. Tirou as sapatilhas novas e jogou descalço. Fez das sapatilhas uma das balizas. Cada uma a fazer de poste. Jogou, jogou e, quando olhou para trás, as sapatilhas novas já lá não estavam. Alguém as roubou. Mais valia ter jogado com elas.»

Uns bons anos mais tarde, a lógica é invertida. É Renzo quem ajuda os pais. «É a história da nossa família. O Renzo foi para o Belgrano, aos 19 anos, e com os primeiros salários ofereceu-me uma camioneta nova. Uma camioneta a mim e um automóvel ao irmão. Ele é assim.»

Renzo conheceu Dybala no Instituto, aos nove anos

Com Dybala no Instituto e com dois dragões no Belgrano

Dias de esperança. Villa de Maria começa a ser demasiado pequena para os sonhos de Renzo. Aos nove anos, o pai leva-o a treinar ao Instituto, um pequeno clube de Córdoba. Renzo agrada e fica por lá durante seis anos. Sai de casa dos pais e passa a viver com dois irmãos num pequeno apartamento na cidade.

No Instituto conhece aquele que viria a ser um dos melhores amigos: Paulo Dybala. O corpo não acompanha o talento e Renzo sofre. Passa demasiado tempo a ver os outros a jogar, pensa desistir, fazer a mala e voltar a casa. O pai não permite a derrota.

«Foi um problema. Um dos treinadores dizia que ele era muito pequeno e não tinha físico de jogador. Aos 15 anos decidi tirá-lo de lá e levá-lo ao Las Palmas, outro clube de Córdoba. O Renzo recuperou o entusiasmo, mas o Instituto não queria dar o passe… foram seis meses só a treinar.»

A espera vale bem a pena. É no Club Atlético Las Palmas que Renzo começa a mostrar o que vale. «O rapaz desinibiu-se, deve ter sido a tal paixão pela música [risos]. A verdade é que o Belgrano interessou-se logo por ele e o Renzo só ficou um ano no Las Palmas», recorda o pai, compreensivelmente nostálgico.

O resto da história desportiva é já conhecida: aos 18 anos estreia-se na equipa principal do Belgrano e permanece cinco anos no clube. É lá que conhece no balneário, ironia das ironias, dois homens com um passado ligado ao FC Porto: Mario Bolatti (22 jogos, 2007/08) e Sebastian Prediger (3 jogos, 2009/10).

Renzo chegou em 2009 ao Las Palmas. Tinha 16 anos

A manhã em que Renzo teve de se explicar à Polícia

Dias de balneário. Bolatti é irmão de armas de Renzo entre 2015 e 2017. Mantém uma ligação forte com o reforço do FC Porto e aconselha-o «todas as semanas». Prediger é camarada em 2015 e 2016.

«O Renzo ainda era muito novo, mas percebi que tinha grandes condições para ser um bom lateral», diz Bolatti, 34 anos, ao nosso jornal. O antigo médio está a tirar o curso de treinador e já fala do antigo colega nesse estatuto.

«O traço mais forte do jogo do Renzo é a facilidade com que faz o corredor. Sobe, desce, sobe, desce. Tem condição física e aptidão técnica para desequilibrar. O título do Racing, aliás, viveu muito do trabalho atacante dos laterais.»

Prediger, 32 anos, ainda joga no Tigre. «No Belgrano cometia alguns erros, normais para a idade dele, mas evoluiu muito no Racing. Gostava, principalmente, da forma como colocava o pé direito nos cruzamentos. É bom rapaz, sabe ouvir e gosta de aprender.»

Do Belgrano ao Racing, do Racing à seleção da Argentina e da seleção da Argentina ao FC Porto. A ascensão, garantem, não surpreende Bolatti e Prediger.

«O Renzo detestava errar, ficava doido. Isso obrigou-o a amadurecer e a melhorar», clarifica Prediger. Bolatti, já a falar à treinador, sublinha os pontos fortes e fracos do seu futebol.

«O melhor, insisto, é a forma como se projeta no ataque. É aguerrido e sabe o que fazer. Toca e passa, mas sabe driblar também. O menos bom? Diria que era o posicionamento. Ficava demasiado aberto, por vezes. Mas, mesmo aí, melhorou imenso.»

Os balneários são casulos de brincadeiras, desabafos, experiências. Mario Bolatti é desafiado a uma ou outra revelação sobre Renzo. E lá surge uma, a custo. «Lembro-me de um dia em que o treino começou e ele não tinha ainda chegado. Depois soubemos que adormeceu em casa de um amigo, acordou à pressa e pegou no carro sem carta de condução. Teve de ir explicar-se…»

Não fosse o problema de saúde do pai e o ano no Racing teria sido perfeito

O susto com o pai no ano de todos os sonhos

Dias de sonho. É isso, «o FC Porto é um sonho». «O último ano foi extraordinário, uma loucura», celebra Reinaldo, o pai de Renzo. «Agarrou o lugar no Racing, foi chamado pelo Scaloni à seleção, teve aquele duelo com o Neymar, foi campeão argentino e transferiu-se para um dos maiores clubes da Europa.»

Em Villa de Maria de Rio Seco e em Córdoba, a transferência foi festejada como se de um triunfo no Mundial se tratasse. «Eu tive de me controlar. Tive um ataque cardíaco nos festejos do título do Racing», lamenta Reinaldo. «Estou bem, recuperado, mas não posso abusar. Mas quando o Renzo nos disse, dios mio, não foi fácil acreditar.»

Reinaldo Saravia concorda com o fecho do negócio antes da Copa América, até porque a participação da Argentina e de Renzo «não foi brilhante».

«O Renzo está impressionado com as condições do FC Porto. Fez, fizemos, muitos sacrifícios para ele estar aí, em Portugal. Agora já pode estragar as sapatilhas que quiser (risos).»

Renzo Saravia está a viver com a namorada Eva Perez no Porto. A família, com don Reinaldo e o irmão Ale - futebolista do Cienciano, clube do Peru -, à frente, chega nas próximas semanas, «só em visita».

Do Bairro Panamericano ao Dragão, uma vida vivida a correr. Anos que parecem dias, caro Renzo.