Aquilo que se perdeu em rendimento, ganhou-se em generosidade.

Com o surgimento da pandemia do Covid-19, os atletas que que faziam da residência do Centro de Alto Rendimento (CAR) do Jamor o seu lar, foram obrigados a procurar alternativas, uma vez que ali os quartos são partilhados, o que poderia colocar em causa a saúde dos atletas.

Acontece, porém, que nem todos tinham para onde ir. E para esses, o CAR transformou-se em refúgio. Salvaguardando um teto, sem descurar qualquer medida de segurança.

Assim, dos 70 atletas que moram na residência do Jamor, apenas quatro permanecem ali desde que foi decretado o estado de emergência em Portugal, altura em que os atletas foram aconselhados a regressar às suas casas.

Porém, nem todos tinham alternativas viáveis para enfrentar este momento e o Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ) foi sensível às suas situações e abriu-lhes uma espécie de regime de exceção.

«Nenhum dos atletas que permaneceu na Residência do CAR Jamor durante a fase de emergência nacional tinha condições para regressar a casa. Na maior parte dos casos, pelo facto de não ter casa e família em Portugal. Neste sentido, e porque qualquer outra solução seria sempre pior do que a solução de permanecer na Residência, tomámos essa decisão», explica José Serrador, coordenador do CAR Jamor, em declarações ao Maisfutebol.

«Foi um alívio saber que podia ficar aqui»

Agate Sousa foi apanhada pela pandemia numa altura em que estava longe do país natal, para poder perseguir o sonho de estar nos Jogos Olímpicos.

A atleta de 19 anos é recordista santomense do salto em comprimento e está em Portugal desde setembro, ao abrigo de uma bolsa olímpica fruto de uma parceria entre as federações de atletismo de Portugal e de São Tomé e Príncipe.

A ideia inicial seria ficar até aos Jogos Olímpicos, prova para a qual ainda procurava o apuramento, mas o adiamento do evento deixou-a mergulhada num mar de dúvidas. Felizmente para ela, a questão da residência foi resolvida.

«Estava a pensar alugar casa com uma colega porque não tinha alternativa onde ficar. Mas ia ser complicado, por isso foi muito importante ter esta autorização. Foi um alívio quando soube que ia poder ficar», revela, em conversa com o Maisfutebol.

E se foi para treinar que Agate veio para Portugal, é também isso que a permanência no CAR lhe permite continuar a fazer.

«Se tivesse saído, não iria ter forma de treinar. Aqui tenho espaço para treinar e foi-me facultado algum material de ginásio.  Os treinos são um pouco limitados, mas há algum espaço. Só não tenho a caixa de saltos», aponta.

Já em termos pessoais, com a família em S. Tomé, e agora sem saber quando vai poder regressar, a jovem atleta assume que tem pensado mais nos seus, ainda que lembre que esta é uma situação normal para quem quer fazer carreira no desporto.

«Já tenho pensado em como é difícil estar longe da minha família nesta fase, mas quando saí de S. Tomé sabia que ia estar longe deles. Claro que há sempre saudades, mas tinha de ser para ir atrás do meu sonho», sublinha.

«Ando há um mês a bater num gajo imaginário»

Família.

Todos aqueles que tiveram de ficar no Jamor, abdicaram, obviamente de estar com os seus. E se para Agate soma-se à distância o facto de estar há sete meses longe das suas raízes, o que dizer de Farid Walizadeh?

O boxeur afegão, cuja história o Maisfutebol contou na última semana, tinha reencontrado a mãe e conhecido os irmãos há pouco mais de um ano, depois de ter crescido sem saber o paradeiro de qualquer familiar.

Ele que assumiu à nossa reportagem que a família «ainda se está a conhecer» acabou por ser afastado novamente, ainda que desta vez tenha o conforto de conhecer os seus paradeiros e saber que estão em segurança.

«Tive de tomar esta opção. Não podia fazer as viagens todos os dias para poder continuar a treinar», explica o atleta que ia participar no torneio de qualificação para tentar integrar a Equipa Olímpica de Refugiados.

Os treinos, porém, estão longe de ser os ideais, claro.

«Só posso treinar no quarto. Basicamente trabalho com o peso do corpo. Mas isto não é bem um treino e já estou assim desde o início de março. Ando há mais de um mês a bater num gajo imaginário», relata, bem-humorado.

«Pelo menos estou a conseguir ler os livros que tinha e que ainda não tinha tido tempo para ler», sublinha.

Família.

Voltamos aí.

Para que os atletas pudessem ficar na residência, houve outras pessoas que tiveram de se ‘sacrificar’, continuando a trabalhar quando a ordem para quase todos era ficar em casa.

Falamos dos funcionários que asseguram as refeições, a limpeza e a segurança da residência, cujas equipas foram redimensionadas, mas que continuam a funcionar. E também para eles, as palavras dos atletas com quem falámos são de agradecimento e elogios unânimes.

«A relação dos profissionais que trabalham na residência do CAR Jamor com os atletas é muito boa. É como uma família. Eles compreenderam a necessidade de continuar a apoiar os atletas, embora de forma muito mais cuidada e respeitando as recomendações gerais da DGS», explica José Serrador.

Ideia semelhante é partilhada por Rosalina Santos, velocista do Sporting, que se mudou da Madeira para o Jamor em setembro.

«Houve alguma preocupação por parte dos atletas antes de nos ser garantido que poderíamos continuar a contar com o apoio destas pessoas, mas não nos surpreendeu que eles o fizessem», refere a atleta, sublinhando a relação que existe entre todos.

«A verdade é somos muito chegados. Eu só vim para cá há sete meses, mas percebi rápido que havia uma relação muito boa entre todos. E notei a preocupação deles connosco, quando isto surgiu. Sem dúvida que nos têm tornado tudo mais fácil», enaltece ainda.

Menos fácil tem sido treinar, ainda que Rosalina não seja das menos prejudicadas as limitações de espaço para o seu treino específico.

«Apesar de não podermos sair muito daqui do espaço onde estamos, conseguimos material de ginásio e para o treino de uma velocista, consigo adaptar ao que tenho aqui», revela a atleta de 22 anos, sublinhando ainda a envolvência que, neste caso é uma grande mais valia.

«Além de tudo, podemos respirar. É outra das vantagens de estar aqui no Jamor, nesta zona de natureza, apesar de não podermos sair muito da zona da residência», conclui.

«Somos uns privilegiados»

Mas se Rosalina consegue fazer um treino mais semelhante ao que fazia, apesar de algumas limitações, mais difícil é a situação de Edujose Lima. Porque ele não pode lançar um disco imaginário. E precisa de um espaço amplo para treinar os lançamentos

Ainda assim, o atleta que tem a residência no CAR do Jamor há quatro anos – e cuja família que o poderia acolher mora em Manchester – assume-se como um privilegiado pela possibilidade que lhe deram para permanecer ali.

«Aqui consigo treinar com algumas condições, mais parecidas com as habituais. Fiz requisição de algum material de ginásio e tenho mais espaço para treinar lançamentos, algo que era impossível se estivesse num T1», realça, mostrando-se agradecido pela abertura que o IPDJ mostrou.

«Acabamos por ser uns privilegiados. Além de estarmos mais seguros, temos melhores condições para treinar do que muitos dos nossos colegas», admite.

O atleta que compete com as cores do Sporting estava ainda em busca da marca de qualificação para o Europeu – adiado esta semana – e refere que a pandemia o apanhou quando se sentia em forma para alcançar os objetivos que tinha para esta época.

«Estava à procura da marca de qualificação para o Europeu. Andava bem próximo da marca, parecia encaminhado para conseguir estar presente no meu primeiro europeu sénior», nota.

Edujose admite, porém, a dificuldade em lidar com esta situação. Mesmo para atletas de alta competição, normalmente habituados a lidar com a imprevisibilidade.

«Nós, os atletas, somos quase como soldados: estamos sempre preparados para tudo o que puder acontecer. Mas a verdade é que ninguém estava preparado para uma situação desta dimensão», concede.

Como é fácil de perceber, também os responsáveis do CAR do Jamor não estavam preparados para lidar com uma situação como a que o mundo atravessa.

Foi encontrada uma solução temporária que satisfez a necessidade destes quatro atletas. Mas como será no futuro? Foi isso que também perguntámos a José Serrador. Mas essa é uma questão para a qual ainda não existe resposta.

«O realojamento dos atletas ainda não tem data. Estamos a reunir informação para ajudar na tomada de decisões e a antecipar as diferentes medidas de mitigação necessárias para a diminuição dos riscos, mas ainda aguardamos a evolução desta situação e as recomendações das autoridades de saúde para considerarmos poder receber novamente os atletas em condições de segurança», explica o coordenador do centro.