Desmitifiquemos já o título. Se vem à procura de uma história lamechas, não é aqui que a vai encontrar. Porque João Jerónimo não é assim.

A história em cru. A traquinice dos 15 anos fê-lo aventurar-se em cima de um empilhador enquanto esperava que a mãe saísse do trabalho. O veículo descontrolou-se e a perna direita de João ficou presa entre a torre e uma parede, não restando alternativa à amputação.

O jovem assume que no primeiro mês após o acidente «foi complicado lidar» com o que lhe acontecera. Mas depois disso, passou. Fez da superação uma rotina e por isso encara cada dia como mais um e não como uma vitória pessoal.

E é assim, até quando fala do dia em que se sagrou campeão europeu da modalidade que praticava desde os 4 anos e que tivera de interromper após o acidente. Aconteceu no passado domingo, em Leiria. E foi mais especial por ter sido na cidade onde cresceu este andebolista de 30 anos, que optou por se adaptar às circunstâncias para correr atrás do sonho, em vez de ficar a pensar «como poderia ter sido».

Claro que João Jerónimo não chegou ao título europeu sozinho. O andebol em cadeira de rodas é uma modalidade coletiva e a maior diferença para o andebol convencional é que são seis, e não sete, os jogadores em campo.

Ou seja, o título é de 14 atletas, mais treinadores e dirigentes que fazem parte do que foi um feito único no andebol português.

A história de João Jerónimo difere da dos restantes atletas num ponto: o andebol faz parte da vida dele desde sempre. A ligação à modalidade surgiu 11 anos antes do acidente e voltou ao seu horizonte em 2012, quando foi convidado pela Associação de Andebol de Leiria (AAL) para assistir a uma palestra sobre o projeto Andebol 4ALL, desenvolvido pela Federação Portuguesa de Andebol.

«Saí daquela palestra com uma certeza: vou fazer uma equipa. Depois comecei a tentar mexer-me e percebi que era muito mais difícil do que pensava. As burocracias eram muitas, mas aí contei sempre com o apoio da Associação Portuguesa de Deficientes (APD) Leiria, clube que sempre representei, e se consegui cumprir o desejo devo-lhes a eles», introduz.

Atletismo, natação, basquetebol… sim, mas e o andebol?

Quando João teve o acidente, no fim de um dia de praia com os amigos, era guarda-redes da equipa de juvenis do AC Sismaria, depois de ter iniciado a formação na Juve Lis e ter jogado vários anos na U. Leiria.

E depois de seis meses internado nos Hospitais da Universidade de Coimbra para recuperar do esmagamento da anca que obrigou à desarticulação total da mesma, João tinha uma certeza: queria manter-se ligado ao desporto.

«Ainda experimentei o atletismo, mas não gostei muito. Depois fui para a natação, que já me agradou mais e consegui ter alguns resultados: fui campeão nacional e ibérico. Mas em 2012 desanimei, também por ter falhado os mínimos para o Mundial e foi quando o então presidente da AAL me ligou a falar de uma palestra que ia haver sobre andebol para cadeira de rodas», explica.

Os dados estavam lançados. Nesse mesmo dia teve conhecimento da existência da equipa de basquetebol de cadeira de rodas da APD Leiria e decidiu ir experimentar – hoje é internacional também nesta modalidade -, desafiando os colegas também para começar a introduzir o andebol.

«Foi uma ajuda mútua. Eles tinham todo o trabalho de cadeira de rodas que era necessário e eu levei alguns métodos do andebol. Os resultados? Temos equipa há seis anos e somos tetra campeões nacionais e queremos ser penta este ano», orgulha-se.

A ajuda da comunidade para comprar umas «sapatilhas» do seu número

Nesta ideia de dar e receber, há ainda um episódio do qual João Jerónimo faz questão de falar.

«Quando comecei a jogar, a APD Leiria emprestou-me uma cadeira de competição. Ela foi-me muito útil, mas a partir de determinada altura, senti que não ia conseguir evoluir mais com aquela cadeira que tinha já mais de dez anos e não estava adaptada para mim.»

Só que aí surgiu um problema: o preço. «A cadeira é como se fossem as nossas sapatilhas. Imagina, eu calço o 42 e estava a jogar com umas sapatilhas 38. E estamos a falar de algo que é extremamente caro», realça.

Sem possibilidade de investir o valor necessário para comprar algo que considerava essencial para chegar a um nível que acreditava poder conseguir, João Jerónimo lançou um movimento para pedir apoio a quem quisesse ajudar.

E cerca de um ano depois de ter iniciado a campanha, conseguiu juntar os 5.600 euros necessários, graças, também, a uma pessoa que ofereceu 2.000 euros para a causa, de forma anónima.

Com a nova cadeira, o sonho de João ganhou asas. «Em pouco tempo dei um pulo muito grande em termos de performance e os resultados começaram a aparecer», resume.

Erguer o troféu «foi o auge», mas o melhor momento foi outro

Quando João diz que os resultados começaram a surgir refere-se não apenas aos títulos nacionais, mas também às duas finais de europeus em que participou com a seleção portuguesa – em 2015 e 2016 -, ambas perdidas para a Holanda.

Essas derrotas, porém, foram uma importante aprendizagem para aquilo que aconteceu no último fim de semana. Frente às congéneres da Holanda, Hungria e Croácia, Portugal conseguiu quatro vitórias noutros tantos jogos e levantou o caneco que todos tanto desejavam.

«Quando somos miúdos criamos aquelas listas de sonhos e um dos meus era cantar o hino nacional na minha cidade, a representar a seleção. E o erguer do troféu foi o auge, mas os últimos 30 segundos da final contra a Croácia foram também muito especiais», revela, confidenciando a forma como viveu aquele momento.

«Estava no banco e afastei-me um pouco para ficar sozinho ao lado para apreciar aquele que foi o melhor momento da minha vida. Ver o pavilhão todo de pé a aplaudir a nossa equipa e sentir a união que conseguimos criar até chegar àquela conquista tão merecida», recorda.

O Maisfutebol arrisca: foi nesse momento que sentiu que todo o esforço feito tinha valido a pena? A resposta desarma-nos.

«Não propriamente. O meu esforço vale sempre a pena e até sinto mais isso quando vejo miúdos como os que treino a evoluir nesta modalidade e a ultrapassarem o estigma de jogarem em cadeiras de rodas», confessa o jovem que é também treinador da modalidade e que diz ter «o andebol na cabeça 24 horas por dia.»

«O João é um líder por natureza»

Danilo Ferreira é o selecionador que conduziu a equipa portuguesa à conquista do título europeu e destaca a vitória como «o coroar do trabalho de muita gente, que começou em 2009, quando nasceu o projeto Andebol 4ALL.»

Depois de ter vivido por dentro as derrotas nas finais de 2015 e 2016, Danilo Ferreira orgulha-se da forma como o grupo «conseguiu obter o resultado que procurava».

Para este Europeu, o selecionador manteve a base da equipa que já tinha estado nas finais anteriores e juntou algumas novas peças, sendo que «o equilíbrio conseguido foi perfeito.»

A capitanear a equipa, esteve João Jerónimo, uma opção natural, como explica Danilo Ferreira.

«O João é um líder por natureza. Ele sabe quando tem de estabilizar a equipa e os momentos em que é preciso dar um grito», analisa, garantindo: «É o complemento do treinador dentro do campo».

Sendo um homem do andebol – está ligado à modalidade há 30 anos -, Danilo Ferreira não tem dúvidas de que o sentimento de João Jerónimo foi diferente, por também ter jogado o andebol convencional. Ele e Teodoro Cândido, aliás, um atleta de 65 anos que também praticou a modalidade enquanto jovem.

«Para eles tem um significado diferente porque é uma conquista na modalidade de sempre, conseguida depois de terem ficado impedidos de a praticar», defende.  

Essa ideia está, até, resumida na forma como João Jerónimo garante encarar a conquista do título europeu.

«Não vejo esta conquista como uma vitória pelo que me aconteceu quando tinha 15 anos. Vejo-a muito mais como a realização de um sonho na modalidade pela qual sou apaixonado.»

Manuel Sousa (Mecânico), Etelvina Vieira, Iderlindo Gomes, Joaquim Escada (Responsável pelo projeto Andebol 4ALL), Teodoro Cândido, Danilo Ferreira (selecionador), João Jerónimo, Daniela Ferreira (Fisioterapeuta), Marco Francisco, Rui Rodrigues, José Pinto, Adriano Mendes, Diana Machado, Maria Relvas, Pedro Marques, Patrícia Traquina (da esquerda para direita);
No chão: João Pedro, Ricardo Queirós e Serghei Mitrofan.

Fotografias cedidas pela Federação Portuguesa de Andebol