Catorze de novembro de 2021. 14-11-21. Não, não: 14+11+21. Isso mesmo: 46. Quarenta e seis. 46!
Bem, se depois disto o sol ainda vier a nascer amarelado em Valência no próximo domingo, só pode ser coisa do destino.
Os astros alinhados para se despedirem de uma estrela maior.
E ele merece. Valentino Rossi merece.
Mesmo que não se ligue a motociclismo. Por muito que o desporto motorizado não lhe diga nada. Mesmo assim, Valentino Rossi nunca será um nome desconhecido.
E agora que se vai despedir o homem que fez as motas saírem das pistas entrarem no mundo do comum dos mortais, a celebração tem de ser em grande.
Tem de se celebrar à Valentino Rossi.
Aos 42 anos, após 25 a competir no Mundial de Motociclismo, o carismático rapaz da pequena Tavullia vai deixar as pistas. A lenda, porém, há muito que está a ser imortalizada.
«Valentino Rossi é o maior nome de sempre do motociclismo», afirma, sem hesitar, Rui Belmonte, jornalista que há mais de 20 anos acompanha de perto o motociclismo.
«Valentino Rossi é o maior nome de sempre do motociclismo».
A frase de Belmonte nem se deve apenas ao currículo desportivo de ‘Il Dottore’, como foi tratado durante grande parte da carreira. Mas podia.
Afinal, falamos de alguém que conquistou nove títulos mundiais - um de 125 cc, outro de 250 cc e sete do Moto GP.
Nas 431 provas em que correu, Rossi conseguiu 115 vitórias, 235 pódios, terminou 372 vezes em posição de pontos.
E podíamos dizer mais. Recordar que o italiano conseguiu vencer em 29 dos 38 circuitos em que correu. Ou lembrar os 23 pódios consecutivos, alcançado entre o GP Portugal de 2002 e o GP África do Sul 2004.
Mas seriam curvas e contracurvas de números e recordes que iam atrasar o que aqui se pretende sublinhar. Por isso, aceleramos nessa parte. Inscrevemo-los num daqueles quadros de tempos que ninguém vê e seguimos a abrir pela pista fora.
Foi Robin Hood, Branca de Neve e deu umas voltas com Claudia… Skiffer
«Valentino Rossi é o maior nome de sempre do motociclismo», diz Rui Belmonte, dando eco do que pensam milhares de adeptos de todo o mundo.
«Rossi consegui levar o Moto GP para fora da esfera das motas», continua o jornalista. «Por força do espetáculo que criou em seu redor, ele mostrou ao mundo que havia uma competição de motas», continua.
Num mundo ultracompetitivo e no qual são investidos milhões e milhões, a receita para a visibilidade que Rossi deu ao Motociclismo foi a mais simples possível: divertir-se com os amigos.
«Todas aquelas celebrações que se tornaram históricas saíram da cabeça de um pequeno grupo, o núcleo de amigos dele, que inventavam aquelas formas de festejar», aponta.
Valentino Rossi sempre adorou ganhar. E carismático como é, decidiu fazê-lo em grande estilo… e com provocações à mistura.
A primeira das míticas celebrações aconteceu quando Rossi conquistou o primeiro título mundial no MotoGP, depois de uma feroz competição com o compatriota Max Biaggi, e festejou com uma volta de honra com Claudia Schiffer… Claudia Skiffer, aliás.
«Ele pediu-me para levar a Claudia Schiffer a [circuito] Mugello. Na altura, havia um rumor que envolvia o Biaggi e a Naomi Campbell e ele queria responder. Mas quando falei com o agente dela, ele pediu 25 mil euros. Quando contei ao Beggio [dono da equipa de Rossi à data], ele saltou da cadeira e disse: estás doido?», contaria mais tarde o empresário de Rossi.
A solução veio de Uccio Salussi, o melhor amigo e braço direito do piloto. O amiguinho com quem no jardim de infância fazia corridas de triciclo, enquanto as outras crianças ficavam o tempo todo a jogar futebol.
«Quando contei ao Uccio ele também achou que era um exagero: ‘realmente, 25 mil por uma ‘boneca’ dessas é demasiado’. E a palavra ‘boneca’ fez soar as campainhas. Comprámos uma boneca insuflável por 10 euros, vestimos-lhe uns calções, um top e escrevemos nas costas ‘Claudia Skiffer’. A brincadeira foi um sucesso na imprensa e em vez de 25 mil euros, custou-nos 10 euros», relata.
Tal sucesso foi o sinal verde que Rossi e a sua trupe esperava para arrancar a fundo. E o resto é história. São histórias. Cada uma mais mirabolante que a outra.
Em Donington, por exemplo, celebrou vestido de Robin Hood, lembrando o herói cujas aventuras eram vividas por aquelas bandas. Em Jerez, fez um bowling humano com o grupo de fãs que ‘convocava’ sempre para as celebrações.
Quando venceu o sétimo título Mundial, vestiu-se de Branca de Neve. E foi, e foi, para casa agora ele foi, com os seus sete anões… títulos. Sete títulos!
A churrasqueira Osvaldo que enganou até o canal público
Do mais sério possível em corrida, o talentoso piloto italiano fazia depois das pistas um autêntico recreio. Em parte, nunca deixou de ser aquele miúdo que começou nas minimotas depois de os elevados custos o terem afastado dos europeus de kart, que ambicionava fazer.
O filho de Graziano Rossi, também ele em tempos piloto do Mundial de Motociclismo, foi conquistando título atrás de título, mas também muito público que o idolatrava e que durante quase 25 anos foi pintando as bancadas de todos os circuitos de amarelo fluorescente.
Ao pai, além do talento aparentemente inato, Valentino foi buscar o número 46 com que o progenitor se estreara no Mundial, que ele eternizou na modalidade, e que até à despedida se torna impossível de descolar de Valentino.
Como Tavullia, de resto.
A pequena localidade de cerca de 8.000 mil habitantes onde Rossi nasceu, foi colocada no mapa pelo piloto.
Ninguém dissocia Tavullia de Valentino. E Valentino faz questão de não se dissociar em momento algum de Tavullia.
E até mesmo os mais distraídos teriam dificuldade para não perceberem a ligação. Porque se o filho pródigo da terra se notabilizou a acelerar nas pistas, em Tavullia é preciso abrandar mais do que o normal.
Se no resto das localidades italianas o limite máximo de velocidade é de 50km/h, na terra de Valentino Rossi é – e tinha de ser, pois claro! – de 46km/hora.
Tão conhecida como Valentino Rossi em Tavullia, só mesmo a «Polleria Osvaldo», uma churrasqueira que o piloto a dada altura decidiu promover nas celebrações, de forma a «agradecer o apoio recebido desde que era muito pequeno», e um sítio onde ia comer «sempre que podia».
A primeira aparição da «Polleria Osvaldo» aconteceu em Imola, em 1998 após a vitória na prova.
Duas semanas depois, após nova vitória, o patrocinador teve direito a ainda maior visibilidade, quando na pista, durante a volta de honra, uma mascote de galinha se montou na moto de Rossi e celebrou com ele mais um triunfo.
O insólito de um dos melhores pilotos do Mundial ser patrocinado por uma pequena churrasqueira despertou o interesse de vários jornalistas e levou a RAI, o canal público italiano a Tavullia, em busca da Polleria Osvaldo para chegar à conclusão que a churrasqueira… não existia.
Adivinhou: foi mais uma paródia inventada por Rossi e os amigos.
«Isso nasceu num momento mais delicado da época do Vale, depois de quatro quedas em provas consecutivas. Ele estava num momento mais sombrio e de dúvidas, por isso brincámos com ele: ‘não te preocupes, haverá sempre um patrocinador. De galinha para galinha, a churrasqueira Osvaldo estará sempre contigo’», revelaria mais tarde Flavio Fratesi, outro dos grandes amigos de Rossi.
Il Dottore que não fugia a rivalidades e que não tem sonhos por cumprir
Como todos os grandes campeões, Valentino Rossi não vai deixar a competição apenas com histórias bonitas para contar e bons amigos entre os rivais.
Como é fácil de perceber por algumas das ‘celebrações’ enunciadas, Rossi não perdeu uma oportunidade para algumas picardias com os rivais.
Com Biaggi, o alvo da provocação com a boneca insuflável, a coisa chegou mesmo a vias de facto, num GP de Barcelona, em 2001.
Mas há uma rivalidade que o pode ter impedido de se tornar ainda mais incontestado em termos de títulos: com Jorge Lorenzo.
Em 2011, ressentido com a contratação de Jorge Lorenzo pela Yamaha, Rossi trocou a equipa pela Ducati e ficou dois anos sem vencer qualquer corrida. Aquela foi a pior decisão que fez na carreira, como admitiu mais tarde, já depois de ter voltado à equipa.
Rui Belmonte, porém, sublinha que a mudança não se deveu apenas ao ego ferido.
«O ego foi uma das razões para a mudança, mas houve outro fator importante: o financeiro. Nessa altura ele recebeu uma importante multa do Fisco italiano por fuga aos impostos, que se veio a provar, mas que foi da responsabilidade de um manager que o enganou. E ele precisava desse dinheiro para pagar a multa, e a proposta da Ducati foi muito valiosa. Claro que se não juntasse o dinheiro num ano, juntaria em dois, mas a mudança também se deveu a isso», nota.
Certo é que a partir daí, nem mesmo com o regresso à Yamaha, voltou a ser campeão do Mundo.
Mas Belmonte não acredita que os títulos deixem de fazer parte da vida de Rossi, apesar do abandono da competição.
«Ele vai deixar as duas rodas, mas já disse que vai querer continuar a correr, acredito que em provas de carros de resistência, onde vai poder participar com alguns dos tais amigos de sempre. E vai continuar a ser um piloto a ter em conta», antecipa o jornalista.
Além disso, Rossi é responsável por aquela que já é uma das principais academias de pilotos do mundo. Por isso, não vai deixar de ser presença habitual no paddock.
«Ele vai continuar a acompanhar os pilotos da VR46, mas não acredito que vá estar em todas as corridas. Agora vai ter de se preocupar com a filha, também comprou um iate e deve querer usufruir dele», acredita.
«Il Dottore», epíteto que o próprio Rossi cunhou porque em Itália «há centenas de médicos Rossi», tem, então, a última consulta agendada para domingo, em Valência.
E ninguém espera uma saída de cena modesta. O 20.º lugar no Mundial não vai ser celebrado, certamente. Mas a carreira de Valentino Rossi é tanto, mas tanto mais que a classificação na sua última época, que a festa tem de ser em grande.
Porque é do adeus de um gigante que se trata.
De um gigante que na última conferência de imprensa de antevisão a uma corrida garantiu que não deixou sonhos por cumprir.
«O que é que vai acontecer depois da corrida? Não sei, espero não chorar. A vida a partir de segunda-feira vai ser diferente. Quero apreciar o momento e depois vou pensar no futuro. Sonhos? O meu era ser campeão de MotoGP, por isso não tenho nenhum sonho agora».
Afinal, com o que se pode sonhar depois de tocar o céu?