O Bayern Munique mergulhou numa batalha ética e moral. De um lado os sócios do clube, apoiados, dizem, pelos jogadores, do outro lado a direção. No meio os contratos de patrocínio celebrados com empresas do Qatar, que os adeptos consideram ser dinheiro sujo e indigno.

No jogo com o Friburgo, por exemplo, mostraram uma tarja enorme com as figuras dos diretores Oliver Kahn e Herbert Hainer, vestidos com fatos de macaco de borracha, em frente a uma máquina de lavar que derramava sangue. «Em troca de dinheiro lavamos tudo», podia ler-se na tarja.

Esta batalha no interior do Bayern atingiu o ponto mais alto no último dia 25 de novembro, quando o associado Michael Ott apresentou uma moção para impedir a renovar dos contratos com o Qatar.

A direção não permitiu que a moção elaborada pelo jovem advogado de 28 anos fosse votada em Assembleia Geral e a reunião magna do clube terminou com gritos e ameaças.

A direção argumenta que, para além de um clube, o Bayern também é uma empresa e várias empresas alemãs mantêm ligações ao Qatar, como sejam as gigantes Siemens, Deutsche Bank ou Volkswagen. Acrescenta até que foi a própria chanceler Angela Merkel a incentivar várias empresas a estabelecer laços comerciais com o Qatar.

Os sócios do clube não aceitam estes argumentos, dizem que não é digno de uma instituição como o Bayern manter relações com um país acusado de violar direitos humanos, que o clube está a branquear os crimes do emirado e que não precisa de dinheiro sujo.

A batalha está para durar e surge numa altura em que a Amnistia Internacional lançou mais um relatório sobre o atropelo dos direitos humanos e dos direitos dos trabalhadores perpetrados no Qatar, a maior parte das vezes com a cobertura do governo, que nos últimos anos criou várias leis para calar a contestação internacional, mas pura e simplesmente não as aplica.

O Maisfutebol conta agora alguns dos atropelos referidos pela Aministia Internacional:

Yam Rana, do Nepal
Yam Bahadur Rana trabalhava longas horas sentado ao sol como segurança no aeroporto. Morreu repentinamente no dia 22 de fevereiro. Era casado e deixou dois filhos no Nepal. «Estamos despedaçados. A própria vida tornou-se um vidro partido», disse Bhumisara, a esposa de Yam Rana à Amnistia Internacional, adiantando que ela e os dois filhos vivem agora com uma pensão mensal de 14 euros do governo nepalês.

Tul Gharti, do Nepal
Tul Bahadur Gharti morreu durante a noite de 28 de maio de 2020, enquanto dormia, após trabalhar cerca de dez horas debaixo de temperaturas que chegavam aos 39 graus. Bipana, a esposa de Tul Bahadur Gharti, disse que desde então tinha passado vários dias a chorar. «Estar sozinha é muito difícil. O meu marido foi incendiado no deserto. Eu sinto que estou a ser queimada em óleo.»

Sujan Miah, Bangladesh
Sujan Miah era emigrante do Bangladesh e tinha 32 anos. Os colegas encontraram-no morto na cama na manhã de 24 de setembro de 2020. Era instalador de tubos num projeto no deserto e tinha estado trabalhar nos quatro dias anteriores, sob temperaturas acima dos 40 graus. A Aministia Internacional diz que o Qatar foi obrigado a introduzir legislação que proíbe o trabalho sob temperaturas superiores a 32,1 graus, mas as autoridades não respeitam a legislação.

Manjur Kha Pathan, 40 anos
Manjur Kha Pathan tinha 40 anos e trabalhava entre 12 e 13 horas por dia como motorista de um camião. O ar condicionado da cabine estava avariado. O emigrante do Bangladesh desmaiou no quarto a 9 de fevereiro de 2021 e morreu antes da chegada da ambulância. Deixou uma esposa e quatro filhos. Como acontece em quase todas as mortes de emigrantes, o Qatar não investigou a morte, atribuindo-a a «causas naturais» ou «paragem cardíaca», o que liberta o governo e os empregadores de pagar indemnizações às famílias.

Jackson, Uganda
Uma das violações de direitos mais recorrente no Qatar é a falta de pagamento. Os empregadores não pagam os salários, atrasam-se a fazê-lo ou cobram uma taxa pelo direito de o emigrante trabalhar no país. «As empresas são astutas, têm sempre maneiras de nos enganar mais. Nos meses anteriores, cortaram-me o salário sem motivo», contou Jackson, do Uganda, referindo que muitos trabalhadores fizeram empréstimos para poder viajar para o Qatar e estão presos àquele salário.

Musa
Musa trabalhava para um patrão que não cumpria com o acordado e pediu a carta de rescisão. Queria ir para casa, voltar ao Qatar com um novo visto e trabalhar para outra empresa. Nessa altura o patrão afastou-o, descontou-lhe três semanas no salário e propôs-lhe mudar de local de trabalho. Musa recusou, a empresa não lhe renovou o visto de residência e apresentou queixa por fuga. Mesmo que Musa continue a viver na empresa. «Um caso criminal na minha ficha significa que não posso voltar. Preciso que retirem a queixa para que possa ficar no Qatar e sustentar minha família. Vendi as minhas terras para vir e não recebo há meses. Preciso de dinheiro.»

Aisha
Aisha viajou para o Qatar para trabalhar na restauração a ganhar 390 euros. Afinal o que a esperava era uma empresa de fornecimento de mão de obra que lhe pagava 320 euros, que se atrasava, que fez vários cortes salariais e que a colocou num quarto com mais 12 pessoas. Aisha ficou até ao fim do contrato de dois anos para poder mudar de emprego. Só que o patrão quis renovar. Aisha recusou e solicitou o obrigatório certificado de não objeção. O empregador disse que ela teria de pagar 1300 euros pelo documento ou seria enviada de volta a casa. Segundo Aisha, pelo menos dez colegas aceitaram pagar 1300 euros pelo certificado e mudaram de emprego.

Emigrante anónimo
Perante a pressão internacional, o Qatar criou nos últimos tempos leis para punir as empresas que retêm os salários dos trabalhadores ou que cometem outros atropelos aos direitos humanos. Em último caso, a punição pode passar pela perda de licença para construir, mas mais uma vez a fiscalização é praticamente inexistente. «A lei é bonita, mas não tem dentes. Os empregadores que são bloqueados metem a empresa em nome do filho e continuam a operar. Ou seja, o patrão continua a viver na mesma casa’», contou um emigrante.

Wilson
Wilson é um emigrante que trabalha como paisagista, recebendo pouco mais de 200 euros por mês. «O que eu ganho é muito pouco e tive uma oportunidade de mudar, a ganhar mais. Mas precisava de ter a cartão de demissão e o certificado de não objeção carimbados pela empresa atual e o patrão recusou-se a fazê-lo.» Sem lhe dar uma razão, dois meses depois, o Ministério do Trabalho não renovou o visto e a empresa não lhe renovou a autorização de residência. Desde então Wilson continua a trabalhar para a mesma empresa, ilegal e sem quaisquer direitos.

Sara, Filipinas
As emigrantes mais sacrificadas no Qatar acabam por ser as empregadas domésticas, que vivem e trabalham com o empregador. Muitas querem por isso mudar de emprego no fim do contrato de dois anos, mas os patrões recusam dar-lhe o certificado de não objeção. Sara, uma emigrante das Filipinas, é um desses casos. «Há muitos motivos pelos quais estou assustada. Estou com medo que a polícia venha buscar-me. Estou com medo de que me mandem de volta para as Filipinas. Sou uma mãe solteira de quatro e preciso desesperadamente de sustentar a minha família.»