O Beira Mar recuperou há dois meses boa parte do seu espólio histórico. Teve de pagar para resgatar taças, troféus e memórias e para as levar de volta a casa. Mais um marco simbólico numa longa caminhada desde a queda, agora que o clube está perto de dar a volta. Perto do regresso aos campeonatos nacionais, quatro anos depois do fim. Um histórico a renascer, num tempo em que vários outros clubes com passado no futebol português tentam voltar depois de caírem fundo. Em Lisboa, o Atlético subiu agora ao principal escalão dos Distritais e há um novo Estrela da Amadora que começou a percorrer essa estrada. E ainda há o Belenenses, o clube a partir de baixo de costas voltadas com a SAD, que joga na Liga, também já com uma primeira subida de divisão nos Distritais garantida. Em Aveiro, o Beira Mar tem uma grande história para contar nessa tentativa de honrar a memória.

Foi no final de janeiro que o Beira Mar deu esse passo de recuperação do património, num acordo com o administrador judicial da SAD. «Comprámos matérias insolventes da SAD. O espólio histórico do clube, taças antigas, quadros. Era nosso, mas estava nas instalações da SAD e foi tudo apreendido. Também um mini-bus e uma carrinha. Pagámos cinco mil euros», diz ao Maisfutebol o presidente do clube, Hugo Coelho. Não estava lá a Taça de Portugal conquistada em 1999, essa está exposta no museu da cidade. Mas são muitas memórias. «Havia muitas taças, de futebol, de basquetebol. A Taça Ribeiro dos Reis, a réplica da Taça de Portugal que perdemos com o FC Porto, em 1991.»

Hoje o Beira Mar está a uma vitória de ser campeão e garantir a subida ao Campeonato de Portugal. A festa pode acontecer já na próxima semana, na visita ao Carregosense. Portanto, ainda não é hora de celebrar. «Ainda nos falta ganhar um jogo...»

«Não começámos do zero, começámos do -10»

Mas já é hora de olhar para o caminho que o Beira Mar fez nos últimos quatro anos até chegar aqui. Desde o fundo. «Costumo dizer que não começou do zero, praticamente foi do -10.» Quem o diz é Pedro Moreira, o capitão de equipa, o único jogador que ficou quando o Beira Mar caiu. Esteve na Liga, esteve na II Liga, assistiu ao fim, participou do recomeço e está lá até hoje.

Foi em 2015 que tudo se precipitou. O Beira Mar não conseguiu cumprir as exigências para se inscrever na II Liga e falhou também a inscrição no então Campeonato Nacional de Seniores. Com a SAD em processo de insolvência, era o fim do futebol profissional.

Pedro Moreira conta como foram dolorosos aqueles dias. «Foi um tempo muito conturbado. Já não havia esperança que o clube conseguisse inscrever-se, as notícias eram desanimadoras. Na altura dizia que envelheci dez anos em poucos dias. O telefone não parava de tocar, era uma bateria por dia. Eram os investidores, o Sindicato», lembra Pedro Moreira. «Vinha tudo parar a mim, porque era eu que fazia a ligação com os jogadores.»

Pedro Moreira, quando há um ano se tornou o jogador com mais jogos na história do clube

Hugo Coelho preside ao Beira Mar há dois anos mas na altura já estava ligado ao clube. E também tem memórias fortes desses tempos. «Estava ligado ao clube através da academia de futebol, da formação. Assisti com impacto direto à turbulência que o clube atravessou. Começou por ter um reflexo grande na formação», recorda.

Anúncios no jornal à procura de jogadores e treinos num quarto de campo

Ao clube restava começar de novo, na segunda divisão distrital de Aveiro. Do nada. Os jogadores rescindiram, não havia equipa. Do plantel só restou Pedro Moreira. «Houve quem aguentasse mais, outros menos, mas faz parte. Eu também cheguei a rescindir. Ficar foi uma decisão ponderada em família, pesei os prós e os contras. Independentemente de gostar muito do clube, tinha de pensar no que era melhor para a minha família. Decidi ficar, também porque já não ia ser a SAD, eram outras pessoas.»

Foi uma aventura. «A época estava praticamente a começar e eu estava a ser o primeiro jogador a ser contratado, o resto do plantel foi feito praticamente com sobras de outros clubes», recorda o capitão do Beira Mar.

 «A credibilidade era tão baixa que precisámos de colocar anúncios no jornal para ter atletas e poder fazer uma equipa. Ninguém queria jogar no Beira Mar, porque era um nome que estava associado à tragédia», conta por sua vez Hugo Coelho: «No princípio só conseguimos ter uma equipa por escalão.»

«Nesse verão de 2015 no espaço de um mês viveram-se muitas emoções antagónicas. Havia um mal-estar, uma relação de desconfiança com o clube», lembra o agora presidente: «Revertemos isso, mostrámos que somos um clube sério, com bons treinadores, bons jogadores, bom staff. Já voltámos a ser o clube com mais atletas do distrito.»

De volta às memórias de Pedro Moreira. «Não tínhamos campo, não tínhamos nada. Treinávamos numa freguesia ao lado, São Bernardo. Tinha um sintético, era onde treinava e jogava o futebol de formação. Treinávamos em meio campo, e a última meia hora já era só num quarto de campo, porque havia mais equipas a entrar para treinar», sorri agora Pedro Moreira. «Tentávamos marcar jogos-treino com os clubes vizinhos, nos campos deles, que era a maneira de podermos treinar. Tínhamos jogos-treino quase todos os dias.»

Mãos à obra no Mário Duarte, o regresso dos adeptos e do futebol «puro»

Mas o caminho de regresso começou aí. O momento de rutura acabou por acordar o sentimento de muitos pelo clube. Com o Mário Duarte no centro, naquele verão.

Funcionários e adeptos puseram a mão na massa para recuperar o velho estádio, a casa de sempre do clube antes da SAD e do Municipal de Aveiro, numa mobilização que foi um primeiro sinal da vitalidade do clube. «Fui um dos que esteve na reconstrução. Fomos seis pessoas que deram início a isso. Não tenho muita habilidade para bricolage, mas fiz o que pude», sorri Hugo Coelho, a contar essa história.

«O estádio estava muito danificado. Inicialmente a nossa ideia era recuperá-lo para a formação. Aos poucos fomos desafiando empresas a ajudar. E lançámos o desafio para as pessoas aparecerem para ajudar, num sábado de manhã. E começaram a aparecer, com trinchas, com tinta. Foi fantástico. Havia quem aparecesse e dissesse: ‘Não tenho jeito, mas ofereço tinta, ou ofereço dinheiro’.»

O Mário Duarte foi mesmo a casa da equipa nessa época. E o Beira Mar foi a jogo, com seis mil em campo na partida que assinalou o regresso a «casa» e uma época com apoio dos adeptos como há muito não se via em Aveiro. 

«Há uns anos havia aquela mística do Mário Duarte, do ambiente no estádio e do apoio dos adeptos. Eu não tinha vivido isso, tinha jogado sempre no Municipal. Ouvia falar, mas não sabia como era», conta Pedro Moreira. «Quando voltámos ao estádio a cidade, os adeptos, os sócios voltaram a aparecer. Jogar no Mário Duarte ajudou, tenho consciência disso. Tive jogos na primeira Liga que não tinham tantos adeptos como tivemos naquela primeira época no distrital. No mínimo eram 2500 a 3000 por jogo. Esse apoio voltou a sentir-se. Voltou o futebol ao seu estado puro, sem negociatas, sem nada.»

«Conseguimos a subida na primeira época, para surpresa de muita gente e mesmo minha», sorri Pedro Moreira. «Nos anos seguintes as dificuldades foram maiores, a nível de competição, até porque só sobe uma equipa. Mas pela grandeza do clube, pela sua história, sabíamos que mais época menos época íamos voltar aos Nacionais.»

De volta ao Municipal de Aveiro, novo desafio com sorrisos a ajudar

O regresso ao Mário Duarte foi um fator importante na reconciliação com os adeptos, mas o Beira Mar teve de voltar a mudar. O adeus ao velho estádio foi precipitado por um incidente num jogo com o U. Lamas, uma agressão ao árbitro que levou a que o clube ficasse impedido de jogar no recinto, para cumprir várias regras de segurança e nomeadamente a presença de policiamento em todos os jogos. O Beira Mar voltou a jogar no Municipal de Aveiro. Ainda treina no Mário Duarte, mas o estádio vai mesmo desaparecer como parte do plano de alargamento do hospital da cidade.

O risco é perder-se de novo alguma da ligação dos adeptos ao clube, num estádio muito maior e que nunca foi visto como casa por quem torcia pelo Beira Mar. É um desafio, diz Pedro Moreira. «Nota-se que houve uma quebra quando voltámos ao Municipal. Eu sei que não é fácil e que muitos adeptos nunca aceitaram. Mas por muito que custe, a realidade irá sempre passar pelo Municipal de Aveiro. O futuro passa por lá. Agora tem de ser um trabalho grande da parte da direção e do clube para se fazer a transição para o Municipal de Aveiro.»

Esse trabalho está a ser feito. Um dos rostos por trás dele é Ângelo Valente, diretor de comunicação do clube. Ele que trabalha no Centro Comunitário da Gafanha, já famoso pela boa energia e humor no trabalho com os utentes, e que levou essa criatividade ao Beira Mar. Com foco nas pessoas.

«O Beira Mar, na minha opinião é das oito, dez maiores marcas de futebol no nosso país. Um clube quase centenário, com história na Liga, nas competições europeias, vencedor da Taça de Portugal. É um monstro adormecido», diz Ângelo Valente. «Tento fazer tudo para que as pessoas estejam connosco. Nunca será o Beira Mar de outros tempos sem as pessoas.»

Um trabalho de adeptos para adeptos. Ângelo Valente conta que o seu «departamento» é constituído por duas pessoas: ele próprio e José Esteves. «Trabalhamos como profissionais, mas somos voluntários. O Beira Mar é feito em voluntariado, são muito poucos os profissionais. Fazemos a comunicação, tiramos as lonas, enchemos as bolas, enchemos as águas. Somos os últimos a sair do estádio, depois de limpar e arrumar tudo. Para mim é assim que o desporto faz sentido. É a beleza do associativismo», diz Ângelo Valente.

No Beira Mar há de novo esse espírito, diz. «Há uma ambivalência no futebol. A dimensão, o poder económico que é inerente a um clube grande estraga esse espírito, embora sem ela o futebol não exista. Mas quando os clubes descem, essa ligação torna-se mais genuína.»

O trabalho de Ângelo Valente é garantir que essa ligação ao clube vá ganhando cada vez mais gente. Tem feito muito, campanhas que puseram o clube nas bocas do mundo, como aquela em que ofereceu emprego a Usain Bolt. Ou o envolvimento da comunidade na criação de uma claque «especial». Ou, ainda agora, uma campanha a aproveitar a «crise» do combustível a oferecer entrada à borla na Gafanha para quem for de bicicleta ao jogo desta sexta-feira com o Fiães, para a Taça de Aveiro.

«Há dois anos que tento mudar um bocado o cinzentismo do futebol», sorri Ângelo Valente: «As pessoas às vezes levam o futebol demasiado a sério.» Mas não é só brincadeira. «Esta campanha da bicicleta pretende que as pessoas venham ao futebol e queiram voltar. Se houver dois que no próximo jogo venham ao estádio ver o Beira Mar, para mim já é uma vitória. Cada adepto é um passo para o crescimento.»

«Hoje é o dia em que não me arrependo»

O Municipal de Aveiro, onde vão também ser construídos campos de treinos para a equipa principal e para a formação, é mesmo o futuro do clube, reforça o presidente. «Quem é do Beira Mar é do Beira Mar, seja lá onde for. Às vezes dizem-me «Ah, mas eu ia com o meu pai e o meu avô ao Mário Duarte». Mas eu tenho dois sobrinhos no Minho e as lembranças deles são de ver o Beira Mar com o tio no Municipal de Aveiro. A história tem que ser escrita. Aos poucos e poucos temos vindo a trazer mais gente. A história existirá sempre, mas o futuro temos nós que o fazer hoje», insiste Hugo Coelho: «O Estádio de Aveiro deu-nos muitas alegrias e vai voltar a dar.»

O presente, para já, é garantir a subida e gozar o momento. «Apesar de faltar uma vitória, estamos muito perto. É uma sensação de dever cumprido, por atingir mais um objetivo e poder ajudar o clube no seu renascer», diz Pedro Moreira: «Hoje é o dia em que não me arrependo de ter decidido ficar, voltar aos Nacionais e a toda uma nova realidade, para a qual o clube já se está a preparar.»

O capitão ainda não sabe se vai acompanhar a equipa na próxima época. Aos 35 anos, a acumular um emprego com treinos ao início da noite, dia após dia, Pedro Moreira sabe que não vai jogar por muito mais tempo. «Só no fim da época é que vou decidir. Se ficar, será só mais uma temporada. Mas depois estou sempre disponível para ajudar o Beira Mar.»

Quanto ao clube, prepara-se para o que aí vem. A olhar para cima, mas sem repetir erros do passado, diz Hugo Coelho. «Hoje o objetivo ainda é a subida de divisão. Temos de dar passos sustentados. Temos de estudar muito bem a lição, os meios, os adversários num campeonato com 72 equipas. Mas acima de tudo nunca desequilibrar o clube. Estivemos três anos para subir, sabemos que não é fácil. Sabemos o sonho que temos.» Se um dia chegar a oportunidade de voltar aos campeonatos profissionais, o Beira Mar vai ponderar o que fazer. Com cautela redobrada, porque tem o mau exemplo de um passado bem recente. E envolvendo os adeptos, diz o presidente: «Vamos ter de analisar muito bem. Não podemos cometer os mesmos erros. Os sócios é que irão decidir.»