Para João Flor o futebol sempre foi o refúgio.

Era a correr atrás da bola que ele respirava fundo e se abstraía de uma vida que adora, mas que lhe pesa no corpo.

Afinal, já são 15 anos de mar. Quase uma vida, desde que um acidente impediu o pai de continuar a trabalhar e o roubou da escola, ainda adolescente, para mergulhar na principal forma de subsistência local e ajudar a colocar comida na mesa em casa.

Mais longa do que essa ligação, só mesmo aquela que mantém com o clube no qual entrou aos oito anos: o CD Rabo de Peixe.

Há 24 anos que João veste a camisola do clube da vila onde nasceu e se fez homem. E pescador.

Pouco mais de um mês depois de um dos dias mais felizes da história recente da população de Rabo de Peixe, o Maisfutebol visita a vila, mas já não encontra vestígios de euforia.

Isto, porque uma semana depois de o clube se ter sagrado campeão açoriano, assegurando pela primeira vez na história a subida aos nacionais, a pandemia da Covid-19 interrompeu a competição.

E mais do que ter ficado sem a possibilidade de receber as faixas de campeão em frente aos seus adeptos, o que dói às gentes do CD Rabo de Peixe é a incerteza. Isso, e o receio de ver o sonho tornar-se pesadelo, caso o cancelamento das competições impeça o clube de disputar uma competição nacional.

«Aiiiiii!»

É num longo suspiro que João Flor resume o que lhe vai na alma.

«Não consigo deixar de pensar nisso. É dia e noite a pensar que a Covid-19 nos pode impedir de subir. Tinha mesmo de ser este ano a acontecer uma coisa destas!?», questiona sem esperar uma resposta da nossa parte.

E é esta a razão pela qual, de repente, foi a pesca que se tornou refúgio para o capitão do CD Rabo de Peixe. É no alto-mar que ele se abstrai das agruras provocadas pela incerteza de tudo o que gira à volta do seu futebol.

«Não me passa mesmo pela cabeça não ser campeão depois do que fizemos. Nós conseguimos isso dentro do campo, festejámos e agora se nos tirarem isso não haverá verdade desportiva», lamenta.

«Podemos roubar o sonho a gente que se sacrifica tanto?»

Se todos os clubes que lideravam a corrida à subida ao Campeonato de Portugal vivem uma fase conturbada por não saberem como será próxima época, a situação do CD Rabo de Peixe é especial.

Isto, porque era a única equipa das 20 primeiras divisões distritais que já tinha alcançado o título. Consegui-o quando faltavam seis jornadas para o final do Campeonato de Futebol dos Açores e festejou o feito com as suas gentes.

Só que agora é uma equipa como as outras. E teme pelo futuro.

«Conseguimos ser campeões com muito esforço de todos, não faz sentido tirarem-nos a subida», defende Jaime Vieira, presidente do clube açoriano.

«Para infortúnio de toda a gente, e nosso também, aconteceu esta situação. Os campeonatos foram suspensos, mas continuamos a acreditar que vamos subir. Temos esperança que isso aconteça e sabemos que estão a decorrer negociações entre a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e as associações para se chegar a uma solução que seja justa para todos», continua o dirigente.

Também para o homem que já foi tudo no clube – de jogador a treinador, antes de chegar há presidência – o maior receio é que sejam os clubes mais pequenos a pagar a fatura de uma situação inédita na história do futebol nacional.

«O que tem sido dito é que ninguém vai ser prejudicado com isto. Só espero que não sejamos nós, equipas das distritais, a ser prejudicadas depois de termos investido e sido competentes a fazer o nosso trabalho», atira.

Filho da terra, Jaime Vieira vê na possibilidade de jogar o Campeonato de Portugal a oportunidade para se falar e dar a conhecer «uma terra que tantas vezes foi lembrada por razões menos boas». E por outro lado, teme a estigmatização que a não promoção do clube poderia trazer.

«Nós somos o clube com mais atletas inscritos na AF Ponta Delgada. São cerca de três centenas de jogadores. Falamos de miúdos para quem o desporto é um veículo para conhecer outras realidades. Somos mais do que um projeto desportivo, somos um projeto social. E não podemos dizer à nossa gente que não vai ser feita justiça ao esforço que a equipa fez durante 85 por cento da época», aponta.

De resto, Jaime Vieira sabe que o clube a que preside não é o único que se sente injustiçado com esta situação. As Associações estão a trabalhar juntas para que se encontre uma solução que premeie o mérito das equipas que lideravam as distritais.

Porém, além de ter sido a única equipa a ter alcançado os pontos que lhe dão o título, o presidente do CD Rabo de Peixe sublinha o esforço diário dos seus jogadores.

«Eu sei que todas as equipas deste nível têm jogadores que trabalham para além do futebol. Mas eu tenho sete ou oito homens que são pescadores. Que saem dos treinos perto das 23 horas, porque não temos campo próprio e temos de nos sujeitar aos horários. Homens que depois do treino comem qualquer coisa e se deitam para se levantar às duas da manhã para andar 11 ou 12 horas no mar. O que se faz ao esforço destes homens? Podemos mesmo roubar-lhes este sonho pelo qual lutaram tanto ao longo da época?», questiona.

«Não terei força para continuar se nos impedirem de subir»

João Flor é um dos homens de que fala o presidente. Com a responsabilidade extra de ser mestre de embarcação, o que lhe rouba tempo também quando já está em terra.

«Para conseguir ir aos treinos, só descanso duas a três horas por noite antes de ir para o mar, por volta das duas da madrugada. Depois voltamos, entre as 13 e as 14h, e eu, como sou mestre da embarcação, tenho de preparar o barco para o dia seguinte», explica.

Como fica, então, a vida familiar no meio da pesca e do futebol?

«Sou eu que vou buscar os meus filhos à escola, porque a essa hora a minha mulher ainda está a trabalhar. Com ela passo cerca de uma hora por dia. Mas ela dá-me força e apoio para eu continuar porque sabe o amor que sinto pelo clube e pelo futebol», assegura.

Aquilo que o médio de 32 anos já não consegue assegurar é que tenha força para continuar, caso o clube se mantenha nas distritais.

«Honestamente, não sei como vou ficar em termos psicológicos se não subirmos. Como vou ter força para jogar se sentir que não há verdade desportiva? Já me passou pela cabeça desistir, caso nos impeçam de subir. Nós fomos campeões. Trabalhámos tanto para isso que não sei se terei força para continuar», remata.

Uma decisão até ao fim do mês?

Contactada pelo Maisfutebol, fonte da FPF assume que a criação de mais uma série do Campeonato de Portugal é uma das possibilidades colocada em cima da mesa pelas Associações. Isso permitiria a subida das equipas que lideravam os respetivos campeonatos.

Isso faria com que na próxima época, em vez das 72 equipas que agora disputam aquela que é a terceira divisão, passariam a ser 92.

Ainda que não haja, para já, prazo definido para a decisão final, a mesma fonte federativa acredita que a incerteza não se poderá prolongar muito para lá do final do mês de abril, ainda que tudo esteja dependente da evolução da pandemia em Portugal.

Essa é, de resto, uma data que Jaime Vieira entende ser limite para definir a situação do CD Rabo de Peixe, sob pena de não haver tempo para preparar a próxima época.

«Não podemos estar sem saber para lá do final deste mês. Precisamos de saber se vamos competir no Campeonato Portugal ou novamente na distrital, porque há toda uma época para preparar e não o podemos fazer sem saber onde vamos competir. Ainda para mais para um clube que se vai estrear no nacional. Sim, porque o nosso lugar é no Campeonato de Portugal», conclui.

AD Taboeira: o campeão reconhecido como tal

Em Aveiro mora uma outra equipa que também chegou ao título: o AD Taboeira.

Mas o caso é em quase tudo distinto daquele que vive o CD Rabo de Peixe.

Desde logo, por se tratar de escalão que apenas existe na AF Aveiro: os sub-22. O campeonato teve esta época a primeira edição e permite aos jovens que terminam a formação competirem, caso não encontrem colocação em equipas seniores.

A outra diferença prende-se com o facto de a competição ter chegado ao fim. Com apenas seis equipas em prova, a mesma foi concluída no dia 22 de fevereiro, com uma verdadeira final entre os dois primeiros classificados, que chegaram a essa ronda separados por apenas dois pontos.

O título acabou por cair para o AD Taboeira, em detrimento do Fiães. A taça foi entregue no próprio dia e no comunicado em que declarava suspensas as provas, a AF Aveiro comunicou que o cancelamento não tinha influência nos campeões já apurados.

Ou seja, o AD Taboeira foi campeão e reconhecido como tal, ainda que o clube já considerasse a aposta como positiva mesmo antes do desfecho.

«Para nós tudo foi positivo. Não tendo equipa sénior, o objetivo de criar esta equipa de sub-22 passou pela possibilidade de dar a alguns dos nossos atletas o seguimento ao final da formação», introduz Sérgio Silva, diretor desportivo do clube.

«Têm-se perdido alguns miúdos com qualidade devido à dificuldade em incluí-los nas equipas seniores após o último ano de juniores, e esta competição dá-lhes um bom contexto competitivo», defende.

Mas neste caso também pesou a intenção de dar um passo em frente no reconhecimento como entidade de formação. Ou não se tratasse de um clube do qual saíram nomes como o de Ferro, central do Benfica ou Nanu (Marítimo), além de ano após ano terem os chamados ‘grandes’ a pescar na formação do clube aveirense.

«Somos um clube certificado com três estrelas e um dos critérios para chegar às quatro estrelas é a existência de uma equipa sénior, algo que conseguimos com esta equipa», continua o mesmo responsável.

Tudo foi ganho, reforça-se. O reconhecimento como entidade formadora, o título… e o futuro futebolístico prolongado para muitos dos jovens formados no clube.

«Desta equipa que foi campeã, e que já tinha conquistado alguns títulos noutros escalões, muitos teriam desistido se não existisse esta oportunidade. Assim, competiram, 90 por cento dos jogadores com passado no AD Taboeira, e alguns já têm convites para a próxima época», orgulha-se Sérgio Silva.

São, portanto, realidades bem distintas aquelas que vivem o CD Rabo de Peixe e o Taboeira.

O que mostra que em tempos de pandemia, nem a felicidade de ser campeão chega a todos da mesma forma. 

*foto de capa, da autoria de Rui Vieira, cedida pelo CD Rabo de Peixe