O prémio de melhor jogador da Liga Italiana já tirará as dúvidas sobre o que foi o ano de Rafael Leão. Mesmo assim, e para os mais céticos, os números traduzem em factos o que o internacional português conseguiu: catorze golos, doze assistências e mais de três mil minutos jogados.

Basicamente duplicou a eficácia que tinha apresentado nos dois últimos anos. Além disso, esteve em 21 dos 69 golos que o Milan marcou na Liga Italiana. O que é praticamente um certo.

Ora tudo isto serve para sublinhar que Rafael Leão deixou de ser uma promessa. Esta temporada celebrou-o como uma certeza firme do futebol e um dos melhores jogadores do mundo. Absolutamente decisivo no campeão italiano.

Mas o que se passou para esta explosão do português?

Para responder a esta pergunta convém falar com Francisco Martins. O personal trainer é uma referência da área e trabalha com muitos dos grandes jogadores portugueses. Ruben Dias, José Fonte, Renato Sanches, André Silva, William Carvalho, João Mário, Ricardo Pereira, Gonçalo Paciência, Éder, Gelson Martins, Thierry Correia, enfim, a lista é longa.

No caso de Rafael Leão, refira-se, já trabalha desde 2018. Foi ele que, em harmonia com a equipa técnica e o departamento médico do Milan, traçou o plano para provocar a explosão física.

«Este foi o ano mais consistente do Rafael Leão em termos de trabalho e acredito que com esse maior foco conseguiu ter resultados que ele próprio talvez não esperasse. Foi uma época incrível. Trabalhámos basicamente a época toda, desde a off season [férias], depois ele foi sempre fazendo o trabalho programado e falávamos muitas vezes para acertar detalhes», revela.

«Uma das características que tentámos potenciar ao máximo durante o último ano e meio foi a capacidade física. Já durante a pré-época percebíamos que ele teve uma evolução brutal em termos de componente muscular, de força máxima e de força explosiva. O nosso trabalho é exatamente esse: preparar atletas para níveis de intensidade muito altos, para aumentarem as qualidades físicas.»

Francisco Martins diz que foi feita uma comparação das características físicas de Rafael Leão com as de Kylian Mbappé, porque são jogadores com características anatomicamente semelhantes, exatamente para promover uma erupção do futebol do atleta português em campo.

«Ele é extremamente explosivo e com uma fisionomia muito semelhante a atletas de elite como Usain Bolt ou Kylian Mbappé. Aliás, até lhe dizia que ele tinha as características de Mbappé, mas que lhe faltava um trabalho de consistência em força e alongamento. Foi isso que tentámos introduzir: um trabalho para ele conseguir manter-se num nível diferenciado», explicou.

«A força foi um dos fatores que diferenciaram mais o jogo dele, sendo bem visível na capacidade de aceleração, na capacidade de um contra um, na capacidade de elevar os extensores da coxa ou na capacidade de aplicar força ao nível do chão. São todas características muito parecidas às de Mbappé. Hoje são talvez os atletas com maior capacidade de aceleração nos primeiros metros.»

Refira-se, de resto, que tudo isto foi feito através de um trabalho concertado com o Milan. Francisco Martins teve a oportunidade de ir a Milão, de estar lá com Rafael Leão e de conhecer o clube milanês por dentro.  Após alguns dias regressou a Portugal entusiasmado com a abertura do Milan para receber preparadores físicos que trabalhem com os jogadores de forma individual.

«Foi exatamente essa capacidade de desequilibrar nos primeiros metros que tentámos desenvolver, e foi talvez isso que mais diferenciou o jogo dele. Foi um trabalho muito bem realizado, inclusivamente com os preparadores físicos do Milan, que souberam introduzir os momentos certos de recuperação, para ele jogo a jogo ir sendo cada vez mais decisivo e fazendo a diferença. Hoje em dia a capacidade de mudar de velocidade é talvez a característica mais importante do futebol, porque essa característica é que permite projetar o jogo de uma forma muito rápida para contra-ataques e ataques rápidos.»

Francisco Martins alerta, no entanto, que o mérito do crescimento é de Rafael Leão.

O avançado surgiu este ano muito mais concentrado no trabalho, mais focado nos pequenos detalhes, mais dedicado a ultrapassar as pequenas falhas que ainda existiam no seu futebol.

O que é mudou para provocar esta alteração em Rafael Leão? Mudou sobretudo o contexto. O treinador Stefano Pioli, o diretor técnico Maldini e a entrada na máquina global da Gestifute ajudaram o jogador a ficar alerta e a sentir-me mais motivado para ir além dos próprios limites.

«Houve uma capacidade do clube de analisar individualmente os jogadores e perceber os mecanismos que cada um podia potenciar, o que é incrível. O próprio Ibrahimovic é muito exigente ao nível do treino e do jogo. Falávamos muito sobre a necessidade de ele criar objetivos jogo a jogo e ir introduzindo variáveis para melhorar em diferentes aspetos. Também fui muito crítico com ele, admito, sobre os aspetos que tinha de melhorar, mesmo após o jogo, no que podia ou não fazer. É fundamental criar dentro dos atletas a capacidade de eles serem autocríticos.»

Os objetivos que foram colocados a Rafael Leão jogo a joga eram pequenas coisas, que todas juntas permitiam mudar o próprio futebol do português. Coisas como, por exemplo, o número de golos, o número de remates, a capacidade de se tornar mais equilibrado.

«Percebemos que ele por norma tinha sempre três ou quatro oportunidades por jogo e com o tempo tornámo-nos mais exigentes com a concentração que ele tem de ter para fazer a diferença. Ele mudava muito de jogo para jogo ao nível da concentração e de estar focado nos pequenos lances. Se ele fosse mais rigoroso nesses pequenos momentos, o jogo dele seria muito mais eficaz. E a verdade é que nos últimos sete jogos o Rafael Leão foi decisivo em todos com golos ou assistências.»

No entanto, e por detrás disto tudo, esteve um trabalho intensivo, longo, que percorreu toda a época desde as férias do ano anterior. Um trabalho quase invisível, por vezes feito à distância, e que se realizava nas folgas, nos momentos de menos carga competitiva, na pausa de inverno.

«O trabalho que fazemos com ele divide-se em dois momentos. Durante o off season podemos claramente aumentar os níveis de intensidade em termos de sistemas enérgicos, trabalho ao nível de força e trabalho ao nível da potência. Durante a época fizemos um trabalho diferente, quase um trabalho base, para conseguir mantê-lo muito estável e sem desequilíbrios ao nível dos músculos.»

A mudança em Rafael Leão foi notada até pelos amigos de infância.

André Tati, por exemplo, conhece o internacional português desde os nove anos, quando cresceram juntos no Bairro da Jamaica. Também em conversa com o Maisfutebol, explica que o trabalho feito fora do clube e a capacidade de se concentrar nas pequenas coisas foi determinante.

«Ele sempre teve o foco muito direcionado para o futebol e nós os amigos mais próximos também o ajudámos nisso. Porque víamos que ele podia chegar longe, podia ter a uma vida melhor, diferente, e realizar o sonho dele. Nós íamos a festas, ele queria ir e nós não o deixávamos. Ele não viveu o mesmo que nós, a adolescência dele não foi como a nossa», começa por dizer.

«Apesar de ter sido sempre um rapaz muito focado, este ano apareceu mais adulto, mais confiante. Acho que se sentiu melhor no Milan e no futebol italiano. Ele treinou muitas vezes fora, com um personal trainer, e isso foi muito importante para a explosão que ele teve.»

De resto, o amigo lembra os dias inteiros passados num campo de terra batida no Bairro da Jamaica a jogar à bola. Nessa altura já se percebia que Rafael Leão tinha um talento especial, mas na altura não era o único. Havia mais miúdos como ele.

Rafael Leão teve, porém, a sorte de entrar muito cedo nas escolas de formação do Sporting, logo com nove anos, o que fez a diferença em relação a outras crianças que também tinham talento, mas não tiveram a mesma oportunidade: ou porque não estavam legais em Portugal, ou por isto, ou por aquilo.

«Ele cresceu muito, tornou-se um jovem muito maduro. Por exemplo, já tem uma marca de roupa que vende sobretudo em Itália. Inicialmente chamava-se Son of Guetto, agora alterou o nome da marca para Son is Son. É uma homenagem ao Bairro da Jamaica. Nesse aspeto continua igual: continua a ir ao bairro, visita as pessoas, cumprimenta toda a gente. Os tios e os avós ainda moram lá, os amigos ainda estão lá, por isso ele sempre que pode dá lá um salto», revela André Tati.

«Acho que o facto de ser do Jamaica e a vontade de estar bem na vida lhe dão muita força para trabalhar. Alguns de nós passamos muitas dificuldades, inclusivamente ele, e isso tornou-o mais forte. Houve uma época em que passou mal, quando rescindiu com o Sporting, foi uma fase muito complicada, mas soube geri-la bem e a forma de o fazer foi mantendo-se muito focado no sonho dele. Se não fosse uma pessoa forte como é, não tinha ultrapassado aquela fase.»

A verdade é que ultrapassou e hoje volta a sorrir. É o melhor jogador da Liga Italiana, e isso não é para todos. O futuro está só a começar.