* Enviado-especial do Maisfutebol aos Jogos Olímpicos
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O homem chama a clientela. «Venha aqui amigo, sou Jaburú, joguei no Porto, de Portugal». Está na porta principal do Maracanã. Todos os dias, pelo menos naqueles em que a ressaca tolera a luz do sol.

Graxa e escova, uma garrafa de vinho e a caixa, a inseparável caixa. «É, esse rapaz bonito aí nas fotos sou eu, de azul e branco nas Antas».

Jorge de Sousa Mattos, o inesquecível Jaburú, não mentia. Pelo menos aos clientes atendidos à porta do santuário do futebol brasileiro.

No verão de 1955, o FC Porto contrata este ponta de lança brasileiro, um gigante negro de quase 1,90 metros e com um currículo rico no Fluminense e América Mineiro. É um pedido expresso do treinador Yustrich, outra personagem de museu nos dragões.

Jaburú estreia-se contra o Belenenses a 25 de setembro de 1955, fica três temporadas no FC Porto, marca 54 golos em 70 jogos e integra a famosa equipa campeã nacional de 55/56 sem derrotas.

Depois, a tragédia. Yustrich sai, Jaburú perde o juízo, mergulha na boémia, álcool, drogas e prostituição. Rende uma boa maquia ao ser vendido ao Celta de Vigo, onde não joga uma única vez, regressa a Portugal e faz algumas temporadas no Leixões.

Ao Brasil e ao Rio de Janeiro retorna em 1963. Morre 20 anos depois, atropelado, no fim de mais um dia a engraxar sapatos e a beber até cair à porta do Maracanã.

O mundo é pequeno e Jacarepaguá ainda mais. A poucos metros do Parque Olímpico, coração dos Jogos, o Maisfutebol encontra o irmão e a sobrinha de Jaburú, Ari e Priscilla.

As respostas dos familiares completam o puzzle do vicioso ciclo de autodestruição iniciado em Portugal e tragicamente interrompido num acidente em Caxias.

O fim de Jaburú.

Jaburú (ao centro, fila de baixo) na imbatível equipa de 1955/56

«Preferiu ser sem abrigo a ter de voltar ao morro»

Priscilla Rocha, 34 anos, nasce em 1982, ano da morte de Jaburú. «Não o conheci, mas o meu pai contou-me tudo sobre ele. As coisas boas e as más».

Ari de Mattos, 66 anos, prefere não falar. Mostra, aliás, algum desinteresse. «Continua magoado com o irmão. Viu muita coisa que o deixou assim, desgostoso».

Jaburú teria 83 anos se fosse vivo. Não viveu mais de 49. «Ele ganhou muito dinheiro em Portugal, mas a mãe dele viveu numa favela em Madureita até aos 106 anos. Nunca a ajudou», lamenta Priscilla, sobrinha do saudoso Flecha Negra.

Jorge, o Jaburú, era um homem de «bom coração» e «sangue selvagem». «Quando estava sóbrio era simpático e brincalhão. Mas bastava beber dois copos para se tornar agressivo».

O homem que volta de Portugal, em 1963, não é o mesmo que deixa o Rio de Janeiro oito anos antes. Sem condições físicas para voltar ao futebol, sobrevive de «esquemas e favores de amigos» por alguns anos.

«Andava pela escola de samba e pela vizinhança, até que passou a dormir na delegacia. Mais tarde, no entanto, desapareceu».

Segundo contam os familiares, o orgulho de Jaburú não deixava que voltasse à favela e à casa dos pais. Os hábitos ganhos na Europa mantiveram-nos longe da sua comunidade. «Preferiu ser um sem abrigo a morar no morro. Até ao fim».

Jaburú no Leixões: é o segundo a contar da esquerda (em baixo)

Identificado por acaso pelo irmão na morgue

A vida de Jaburú dava, de facto, um filme forte. Zangado com os familiares - «o pai dele era paralítico e morreu de desgosto» - e sem os mínimos meios de subsistência, Jorge parte para a grande cidade.

É nesse período que sobrevive a engraxar sapatos à porta do Maracanã. «Dizem que ele tinha sempre uma caixinha com os utensílios do trabalho e as fotografias dos tempos em que jogava no FC Porto. Enquanto engraxava os sapatos, os clientes viam as fotos».

Priscilla, a sobrinha, é professora e fala ainda de mais dois irmãos de Jaburú. Henrique e Marinete. A senhora vive em Bangu, perto do Rio; o segundo já é falecido, mas acaba por ter um papel importante nesta reportagem.

Por volta de 1982/1983 - a família tem dúvidas na data -, Jaburú morre atropelado por um autocarro. O corpo não é reclamado e é dado como indigente. Até uma enorme coincidência colocar os Mattos a par do triste sucedido.

«O meu tio Henrique foi ao hospital a uma consulta e ouviu alguém a dizer que um antigo jogador do Porto tinha morrido. Fez perguntas e foi encaminhado para identificar o corpo. Só assim se soube o fim do Jaburú».

Jaburú e Stradivarius, dois génios para Yustrich

Naquele FC Porto de 1955, Jaburú é o goleador-mor (21 golos, terceiro melhor do campeonato), alto, possante e móvel. As crónicas da época descrevem um avançado «frio e com a ginga carioca no andar e no correr».

Hernâni, José Maria Pedroto, Miguel Arcanjo e Gastão são alguns dos colegas de equipa de Jaburú, protagonistas do final do jejum de 16 anos de títulos.

A alcunha Jaburú é explicada pela comparação feita entre Jorge e a ave desse nome, alta e senhora de olhos e bico negro. Yustrich, seu admirador e disciplinador, prefere compará-lo a Stradivarius.

«O Jaburú tem o futebol dentro dele como o Stradivarius tem a música e os violinos».

Para infelicidade da nação portista e da família Mattos, a vida de Jorge desafina em definitivo. Até à noite em que embriagado é atropelado por um autocarro em Caxias.

No local do acidente são encontradas a graxa, a escova e uma caixa cheia de fotos dos tempos de Jaburú no FC Porto.

«Olha aí, esse rapaz bonito sou eu, de azul e branco nas Antas».