«Isto assim não pode ser! Trabalhamos a semana inteira e no dia do jogo, quando olho para trás, vejo a bancada de sócios do Sp. Braga a festejar os golos do Benfica…», dizia Manuel Cajuda.

O técnico, que orientou os arsenalistas entre 1994 e 2002 (com um interregno para treinar o Belenenses), recorda-se bem desse seu célebre desabafo e, desde os Emirados Árabes Unidos, onde estagia com o Sichuan Longfor do terceiro escalão do futebol chinês, completa a ideia: «Jogar em casa contra o Benfica era nunca perceber onde estava o nosso público. Ainda por cima, as cores eram iguais.»

Este domingo (20h15) o Sp. Braga recebe o Benfica no jogo grande da 22.ª jornada da Liga. O contexto atual, porém, é bem diferente do de há duas décadas. A Cidade dos Arcebispos é historicamente um bastião dos encarnados no Norte do País, mas, recentemente, por culpa do crescimento do Sp. Braga, a capital do Minho já não é tão benfiquista como outrora, garantem ao Maisfutebol.

A começar por Cajuda, que chegou à cidade em 1994 e tornou-se bracarense por adoção – «Reparei num cartaz junto à pastelaria São João, que ainda hoje lá está, que dizia: “É bom viver em Braga.” E eu: “Vamos ver…” A verdade é que vivo lá há 23 anos.»

Quando o Braga saía do hotel para dar lugar ao Benfica

Em conversa com o Maisfutebol, o treinador explica as diferenças. «Hoje, o Benfica já é recebido com alguma hostilidade, mas sou do tempo em que o Sp. Braga, que fazia os estágios antes dos jogos no Hotel Bom Jesus, tinha de sair para dar lugar ao Benfica, que era recebido com toda a pompa na cidade. No final dos jogos, como eu me dava bem com as pessoas do Benfica e nunca escondi essa simpatia, gente do Sp. Braga aproveitava para pedir-me para ir ao balneário: “Mister, vá lá pedir uma camisola para mim.” Hoje, isso não seria possível. É até uma ofensa para quem leva a rivalidade de uma forma mais séria.»

José Nuno Azevedo, capitão bracarense no tempo de Cajuda, acompanhou também a evolução clubística na cidade onde vive há 25 anos.

«Agora, o Sp. Braga joga em casa quando recebe o Benfica. Nos Anos 90, não. É uma diferença gritante. Hoje, é impossível festejar-se um golo do Benfica na bancada de sócios do Sp. Braga. O clube subiu de patamar, ganha mais vezes e na geração mais jovem grande parte dos miúdos é só do Sp. Braga. Vejo isso pelos meus dois filhos», explica o antigo lateral-direito, que chegou a Braga em 1992/93 e representou o clube até ao final da sua carreira, em 2002/03.

Como espetador privilegiado da mudança de paradigma, José Nuno Azevedo recorda um momento de viragem na preferência clubística dos bracarenses: «O jogo em que comecei a sentir essa mudança foi a meia-final da Taça (1997/98, 2-1, bis de Karoglan), em que dois terços do estádio festejou os nossos golos, a eliminação do Benfica e a passagem do Sp. Braga à final no Jamor.

«O clube ainda não conquistou a cidade»

Miguel Pedro, ilustre adepto «braguista», baterista das bandas Mão Morta e Mundo Cão, é também o jurista que elaborou os estatutos e que presidiu à Assembleia-Geral da SAD do Sp. Braga, desde a sua criação até há dois anos.

Ao Maisfutebol, explica a estratégia de crescimento, acentuada desde a chegada de António Salvador à presidência, em 2003:

Os resultados ajudam, mas há um grande trabalho de marketing, com a criação da marca “Guerreiros do Minho” ou visitas regulares dos jogadores às escolas, o que faz com que agora a canalha de 10 ou 12 anos seja do Sp. Braga. Isso vai ser ainda mais notório na base de apoio do clube daqui por uns anos. A maioria dos miúdos são “100 por cento Braga” e os pais, que durante a vida toda torceram por outro clube, ficam até com algum orgulho por verem nos filhos algo que eles gostariam de ter vivido. A diferença é enorme. No meu tempo de liceu, só eu e mais dois colegas éramos do Sp. Braga.»

Apesar das mudanças, Miguel Pedro reconhece que «o clube ainda não conquistou a cidade» e aponta para as médias de espetadores, «não muito superiores» na Pedreira em relação ao que acontecia no antigo Estádio 1.º de Maio.

Faz sentido hoje dizer que Braga ainda é benfiquista? «É uma ideia feita. Antigamente era muito mais», diz Miguel Pedro, acrescentando: «É indesmentível que o Benfica tem muitos adeptos na cidade, onde também há portistas e sportinguistas. Mas isso é um problema – e acho mesmo que é um problema – que atinge todo o futebol português e o que justifica em parte muitos estádios vazios pelo país fora.»

«Rivalidade doentia», diz o presidente da Casa do Benfica

Delfim Araújo, por sua vez, reconhece que «a juventude é mais do Sp. Braga agora», mas lamenta «uma rivalidade que nalguns casos se tornou doentia», que se exacerbou em 2009/10 quando o clube minhoto discutiu o título nacional quase até ao fim com o Benfica: «Já fomos assaltados três vezes desde essa altura.»

Este comerciante reformado é o presidente da Casa do Benfica em Braga, vizinha do Theatro Circo, na centralíssima Avenida da Liberdade, por enquanto – no próximo mês muda-se para instalações maiores, com espaço até para uma megastore, junto à Igreja de São Vicente. É benfiquista por culpa de Eusébio, mas também pela herança que passa de geração em geração: «No dia em que nasceu o meu neto, que tem agora 21 anos, nasceu, fui a Lisboa inscrevê-lo como sócio do Benfica…»

Este septuagenário chegou também a ser sócio do Sp. Braga, quando não havia um confronto tão direto entre os dois clubes.

«Ainda na época passada celebrámos a conquista do título aqui na cidade, mas agora somos mais discretos, muitos até preferem ir mais para Famalicão ou Vila Verde, onde não há o risco de provocações de alguns adeptos do Sp. Braga, sobretudo dos mais jovens», conta ao Maisfutebol o presidente da Casa do Benfica, acabado de fazer 700 quilómetros e chegar a casa de madrugada por querer assistir ao vivo ao jogo com o Borussia Dortmund na Luz, num comboio de dez carruagens exclusivo para adeptos do Norte e Centro do País.

«Esta semana o telefone não para de tocar», revela ao Maisfutebol o presidente da casa das águias, que atualmente tem cerca de 300 sócios. Apesar do preço de 15, 30 e 45 euros, os 1 500 bilhetes para adeptos visitantes para o Sp. Braga-Benfica de domingo já esgotaram.

No entanto, Delfim Araújo não vai ao jogo. Tem saudades do 1.º de Maio. «Sempre embirrei com o estádio novo: é frio, longe do centro… Quando era no 1.º de Maio íamos a pé pela Avenida abaixo, chegávamos lá e era tudo vermelhinho...»

Vermelhinho encarnado, à Benfica, entenda-se. A cor que agora preenche o estádio do Sp. Braga mantém-se, mas o tom, esse, é definitivamente diferente. Jorge Simão e os técnicos que o antecederam recentemente já não vivem no paradoxo de verem os adeptos do próprio clube festejarem os golos do adversário.

Cajuda, simpatizante do Benfica e bracarense adotivo, sabe como foi longo o caminho para aqui chegar: «Tinha a visão de que o Sp. Braga podia vir a ser um grande clube no futebol português, algo parecido com o que o Valência era em Espanha. Afinal, passados todos estes anos, eu não era assim tão lírico, pois não?»