Na última das seis vezes que o Famalicão pisou a relva de Alvalade para o campeonato, o clube recebeu uma sentença pesada: 25 anos fora do primeiro escalão. O Sporting venceu 3-0 nesse 22 de maio de 1994 e os minhotos acabaram o jogo em lágrimas pela descida de divisão.

Os dois golos de Paulo Torres, de penálti, e o golo de Luís Figo guilhotinaram um projeto que nos anos anteriores dera ao futebol português nomes com o misticismo de um Ben-Hur, de um Lula, de um Menad e até de um Mihtarski, de um Cacioli, de um Dane ou de um Celestino.

Nesse mesmo domingo, mais a Norte, um jovem avançado de 23 anos assistia do banco de suplentes à vitória do seu Desportivo de Chaves sobre o Académico de Viseu na II Liga: 2-0.

Esse atacante chamava-se João Pedro e iniciava em Chaves uma carreira nascida nas escolas de formação do Sp. Braga. Uma carreira que chegou a ter 49 jogos na I Divisão Nacional, mas apenas três golos.

Esse antigo avançado, «possante e com boa técnica», é o atual treinador do Futebol Clube de Famalicão e líder da liga portuguesa. É aqui que todas as peças do puzzle se juntam:

. O Famalicão desce em 94, quando João Pedro jogava no Chaves; um quarto de século depois, o clube visita Alvalade no topo do campeonato e João Pedro Sousa é o homem do leme.

Aos 48 anos, e após sete temporadas no papel de braço direito de Marco Silva, é a hora de João Pedro. Quem é o treinador do Famalicão? «É o meu melhor amigo».

A resposta é de Artur Jorge, treinador do Sub19 do Sp. Braga e um dos grandes responsáveis pela entrada de João Pedro no mundo do treino.

João Pedro Sousa entre Marco Silva e Hugo Oliveira no Hull City

«O João conheceu o Marco Silva no Trofense e ficaram muito amigos»

A vida de João Pedro começa em Angola, onde nasce a 4 de agosto de 1971. No final da década, envolvido no processo de descolonização, sai de África e estabelece-se com a família na região de Braga.

«Somos amigos de infância e fomos para o Sp. Braga na mesma altura. Fizemos toda a formação lado a lado e estivemos juntos na Seleção Nacional de Sub21. O João Pedro até chegou um ano antes aos seniores do Braga porque eu parti uma perna no Arsenal de Braga, o clube satélite», conta Artur Jorge, um amigo de todas as alturas e, «provavelmente», a pessoa que melhor conhece João Pedro Sousa.

«É um amigo do coração e quando iniciei o meu percurso como treinador, curiosamente no Famalicão em 2009, convidei o João Pedro para meu adjunto. Pela amizade, pelas nossas ideias em comum e pelo objetivo que tínhamos em treinar.»

A dupla mantém-se junta até João Pedro receber um convite «irrecusável». A expressão é do próprio Artur Jorge. «O João tinha conhecido o Marco Silva no Trofense, já na parte final da carreira de futebolista. Ficaram muito amigos e o Marco, quando teve a oportunidade de assumir o comando do Estoril-Praia na Liga, chamou o João Pedro. ‘Vai, tens de aproveitar!’».

João Pedro aproveitou. «Vi o meu melhor amigo a chegar ao Sporting, a estar em Inglaterra e agora vejo-o a fazer o que está a fazer no Famalicão. Só posso estar orgulhoso. Sempre nos demos bem, os nossos perfis encaixavam.»

João Pedro Sousa ao lado de Marco Silva nos dias do Sporting

«É um homem sereno e tem ideias serenas sobre o jogo»

Perceba-se a dimensão do feito de João Pedro Sousa e companhia famalicense: é preciso recuar à temporada 2001/02 para encontrar à 5ª jornada um líder da Liga que não faz parte do lote de quatro clubes mais fortes – os três grandes e o Sp. Braga.

O Famalicão desse ano vestia de xadrez e assinava Boavista Futebol Clube. Há, porém, uma grande diferença entre os dois líderes em causa. O Boavista acabara de ser campeão nacional e continuava a ter uma equipa fortíssima; o Famalicão subiu da II Liga e tem um plantel completamente novo.

O Maisfutebol visitou Vila Nova da Famalicão em maio e contou-lhe tudo sobre o projeto minhoto, dos investidores da Quantum Pacific e do dedo miraculoso de Jorge Mendes na reconversão e rejuvenescimento desde histórico emblema.

Miguel Ribeiro, o diretor executivo da SAD, é outro dos rostos incontornáveis e foi ele a apostar no rookie João Pedro Sousa. Que características cativaram o dirigente? Artur Jorge ajuda a responder.

«O João Pedro é uma pessoa serena e discreta, pouco expressiva. Isto em público. Em privado, é um homem afável e de bom trato. Conversámos muito antes dele dar este primeiro passo e dei-lhe total apoio. Tem ideias serenas sobre o jogo também, é um treinador com princípios bem definidos e que sabe aproveitar o que tem.»

É hora de entrar em campo José Barroso. Porquê? Foi ele que a 18 de agosto de 1991 acabou substituído pelo treinador Carlos Garcia por João Pedro. O Sp. Braga venceu o Gil Vicente por 2-1.

«O João é um amigo da formação, um rapaz que não esquece as raízes humildes. Conheço a mãe, o irmão, sei que nunca lhe faltou educação. Gosto muito do João Pedro.»

João Pedro no banco do Famalicão

Barroso esteve sete anos com o treinador do Famalicão em Braga e sente que o antigo avançado - «tratava bem a bola, sabia o que fazia, mas teve muitas lesões» - pode manter o Famalicão na frente mais umas semanas.

«No início torci um pouco o nariz porque o Famalicão mudou completamente o plantel. O meu pai é de Famalicão, gosto do clube e tenho seguido de perto a equipa. Tiveram alguma sorte em determinados momentos, mas o João Pedro estabilizou a qualidade da equipa. Acredito que o Sporting vai sofrer muito contra eles.»

E como está a viver João Pedro Sousa este momento histórico do Famalicão e dele próprio?

«Com moderação», confidencia Artur Jorge. «Ele é muito ‘low profile’ e não vai mudar de um momento para o outro. Sabe que no futebol as coisas são instáveis.»

«Com cabeça», responde José Barroso. «Estivemos há poucos dias juntos no jantar dos antigos atletas do Arsenal de Braga. Encontrei o rapaz de sempre, bem disposto mas muito reservado.»

O Sporting-Famalicão realiza-se na segunda-feira, às 21 horas, em Alvalade. Se os minhotos não perderem, voltam a fazer história. Seria a primeira vez que isso aconteceria em casa dos leões.

PERCURSO DE JOÃO PEDRO SOUSA:

Futebolista:
. Sp. Braga (1984 a 1993, com dois anos no 'satélite' Arsenal de Braga)
. Desp. Chaves (1993 a 1996)
. Rio Ave (1995 a 1997)
. Vila Real (1997/98)
. Trofense (1998 a 2001)
. Caçadores das Taipas (2001 a 2003)

Treinador: 
. Adjunto do Famalicão (2009/10)
. Adjunto dos Sub19 do Sp. Braga (2010 a 2012)
. Adjunto do Estoril-Praia (2012 a 2014)
. Adjunto do Sporting (2014/15)
. Adjunto do Olympiakos (2015/16)
. Adjunto do Hull City (2016/17)
. Adjunto do Watford (2017/18)
. Adjunto do Everton (2018/19)
. Treinador principal do Famalicão (2019/20)