Pouco passa das duas da tarde, a hora marcada para o encontro, e já Bruno Paz, João Silva e Dani esperam o Maisfutebol. Os dois primeiros vão fazer uma visita guiada ao último à Academia de Alcochete e nós vamos ser testemunhas da conversa que se desenrola entre os três.

A ideia é mostrar o centro de treinos do Sporting, um espaço que Dani nunca pôde conhecer. Ele, sim, que foi um dos maiores expoentes da formação de talentos do clube leonino.

«No meu tempo não havia nada disto. Treinávamos em pelado e, uma vez por outra, num relvado», atirou o comentador da TVI, pouco depois de entrar no Estádio Aurélio Pereira.

«Estou aqui há seis anos e agradeço por cada ano. A Academia tem muita qualidade e dá-nos todas as condições para nos tornarmos campeões como pessoas e como jogadores», responde Bruno Paz.

«Se calhar, se houvesse antigamente estas condições faziam-se muito melhores jogadores. Por isso é aproveitar todos os momentos que passamos aqui», adianta João Silva. «Ainda apanhei pelados e doía. Ainda para cima sou central, tenho que fazer dobras e ia muitas vezes ao chão. Doía muito.»

«Pessoas como o sr. Vítor e o sr. Zé são verdadeiros ícones do que é ser Sporting»

A visita, lá está, começa pelo Estádio Aurélio Pereira. É lá que a equipa sub-23 joga. Entra-se pelo túnel, com imagens de glórias recentes da formação, até se sair pelo relvado.

«É aqui que nos começamos a concentrar para o jogo, é aqui que temos de unir forças e de nos preparar mentalmente, para entrarmos lá para dentro e rebentar com eles», revela João Silva.

«É curioso. Nós normalmente vemos os vídeos, fazemos a análise normal do adversário, e eu dou comigo por vezes em casa a imaginar como é que irei tapar o meu adversário direto, como vou passar por ele, enfim. Acontece-me pensar nisso sem querer. É muito engraçado», diz Bruno Paz.

É um início de tarde de primavera que parece verão. O sol está alto e brilha intensamente, sobre as planícies de terrenos agrícolas de Alcochete. Aquele ar quente e puro não faz parte das memórias de Dani, mas nem por isso o antigo jogador deixa de se sentir em casa na Academia leonina.

Pouco depois de chegar, por exemplo, está a trocar calorosos abraços com dois roupeiros: o sr. Vítor e o sr. Zé, que são funcionários do clube desde o tempo dele. Mas há mais gente a cumprimenta-lo: funcionários, diretores, antigos jogadores que agora trabalham na formação.

«Estas pessoas, como o sr. Vítor e o sr. Zé, são muito importantes. Eles sim, espelham o que é o Sporting. Estão aqui há muito tempo, conheceram milhares de miúdos, alguns deram jogadores, outros não, por isso são verdadeiros ícones do que é ser Sporting», refere Bruno Paz.

«Não é fácil gerir a ansiedade por chegar ao campo daquele lado»

A visita sai do Estádio Aurélio Pereira pelo mesmo túnel de acesso aos balneários, passa pela rouparia, atravessa a ala da formação e chega ao campo de treinos do plantel sub-23.

Um campo de treinos que fica paredes meias com o relvado do plantel principal: há apenas uma bancada e uma torre de observação a separar os dois campos, embora pelo desnível não se veja de um lado para o outro. A privacidade do trabalho é um recurso privilegiado em Alcochete.

Bruno Paz e João Silva já tiveram oportunidade de estar do outro lado. Bruno Paz até se estreou em jogos oficiais da equipa principal, frente ao Vorskla Poltava. João Silva ainda não teve essa oportunidade, mas esta semana, por exemplo, esteve duas vezes a treinar com a equipa principal.

«Quanto àquele lado... não é bem tremer as pernas, acho que é mais o sentido de responsabilidade e a ansiedade. Não é fácil gerir a ansiedade por chegar àquele relvado, mas um jogador profissional tem de saber geri-la. Nós, como formação, queremos é estar daquele lado e fazemos tudo diariamente neste campo para passar para aquele campo», confessa Bruno Paz.

«Quando comecei a jogar era num pelado com pedrinhas que esfolavam os joelhos»

No relvado do campo de treinos a conversa vai-se desenrolando sem freios.

«O futebol sempre foi uma paixão. O meu brinquedo preferido foi sempre a bola, os meus pais podem confirmá-lo. Eu andava num colégio, havia a equipinha do colégio e eu comecei a jogar lá. Jogava muito por diversão. Mas havia lá um treinador que também treinava no Sp. Braga e levou-me a fazer uns treinos. Fiquei. Foi a partir daí que percebi que o futebol podia dar alguma coisa na minha vida e que tinha de lutar por isso», conta João Silva.

«Quando comecei a jogar nem um relvado parecido tinha. Era um pelado, daqueles com pedrinhas pelo meio, que era para quando caíamos esfolar o joelho. Andava sempre com os joelhos esfolados. Tinha aquelas marquinhas de lado na perna e no cotovelo. Sempre, sempre», adianta Bruno Paz.

«Acho que ser jogador de futebol era um destino desde sempre. Gostava muito de jogar à bola na rua, jogava desde os meus cinco ou seis anos, e o meu tio achou que era bom ir ali para o clube da terra, do Vale da Amoreira, no Barreiro. No início não podia jogar por não ter idade, mas ia treinar. Isto tudo no Vinhense, que é o clube praticamente atrás da minha casa. Tinha de andar uns 50 metros e já estava a treinar. Mais tarde, a partir dos sete anos, fui também jogando, fui andando, fui andando, levaram-me para o Barreirense, fiz lá um ou dois anos, na Academia nova, depois fui para o Belenenses e há seis anos vim para o Sporting. Onde estou até hoje.»

A conversa segue para o interior da ala da formação. São corredores com escritórios, casas de banho, um refeitório, um ginásio, salas de estudo, uma biblioteca, uma sala de convívio.

Logo à entrada, porém, há uma parede que chama a atenção. Nessa parede estão inscritos os nomes de todos os jogadores da formação de Alcochete que se estrearam oficialmente na equipa principal.

O penúltimo nome da lista é de Bruno Paz.

«É um orgulho ter o meu nome nesta parede. Significa que o trabalho não foi em vão. Trabalhei muito para ter o nome nesta parede e finalmente consegui. É um grande orgulho», revela.

João Silva ainda não tem o nome naquela parede, mas diz que ver lá Bruno Paz, Pedro Marques ou Thierry Correia já um grande motivo de orgulho.

«É motivador também para os outros. É sinal que também podemos conseguir e que temos de trabalhar para isso, para alcançar o objetivo de termos aqui o nosso nome. Significa que é algo que é possível acontecer e é bonito ver jogadores que treinam connosco diariamente chegarem lá. É motivador para nós e é importante ver que quem está lá cima olha para a Academia», sublinha.

«O rigor e a disciplina que existem na Academia foram fundamentais para mim»

A visita de Dani pela Academia segue pelo refeitório, onde os jovens fazem todas as refeições: refeitório esse que está decorado com fotografias e frases de jogadores míticos da formação.

À volta de uma mesa, a conversa segue imparável em torno da importância da escola.

«Vivi três anos na Academia e terminei o 12º ano, que é uma coisa que sempre quis fazer. É complicado conciliar os estudos com o futebol, mas se gerirmos bem o tempo conseguimos. Foi importante para mim essa parte do estudo, se bem que ficou um pouco abalado porque a prioridade é o futebol. Claro que ficava com muito, muito pouco tempo livre. Mas só assim», diz João Silva.

«Foi fundamental levar alguns puxões de orelhas, como foi fundamental o rigor e a disciplina que existe aqui na Academia. Haver horários para almoçar, para jantar, para lanchar, para estudar. Faz parte do processo aqui da Academia. Há horas para tudo, para vir à sala de estudo, para ir ao ginásio, enfim. E isso foi muito importante.»

«Acordávamos todos os dias com os berros do vigilante que temos por aí»

Na biblioteca, que fica no andar de cima, ao lado dos quartos onde dormem os miúdos, João Silva confessa que perdeu a conta às horas que ali passou.

«Claro que na altura era chato para nós, éramos miúdos, mas para os jovens que vivem aqui é importante virem aqui. Quantas vezes adormeci aqui? Não posso dizer, se não a minha mãe...»

Nas portas, de resto, estão os horários de tudo.

Quem e a que horas tem de ir à sala de estudo, quem e a que horas tem de estar na biblioteca, mais os horários que este grupo e aquele grupo vão fazer no ginásio, as horas a que o autocarro vai buscar fulano e sicrano à escola, enfim, tudo detalhado para cada miúdo que viva na Academia.

«A vida aqui era feita de muito rigor. Acordávamos às 7 horas, normalmente com o vigilante que temos aí aos berros, a acordar a malta toda. Levantávamo-nos, íamos tomar o pequeno almoço e depois saíamos para a escola», recorda Bruno Silva.

«A manhã era de aulas. Voltávamos, almoçávamos aqui na Academia, depois de tarde tínhamos o tal período da sala de estudo, na qual éramos obrigados a estar, íamos um bocadinho ao ginásio e a seguir havia treino. Quando acabava o treino eram 20 horas, era altura de ir jantar, depois ficávamos por aí um pouco e íamos dormir. Portanto tempo para parar e pensar, era muito pouco.»

O jovem de 20 anos, natural de Braga, que viveu três épocas na Academia, diz que até é bom que os horários sejam cheios e deixem pouco tempo livre. É a melhor forma de combater as saudades.

«O início foi muito complicado. Sentes falta dos pais, da família, é muito complicado. Depois, com o tempo, com a habituação à rotina, vais colmatando isso e vais-te tornando mais forte.»

«Quando era miúdo era mais complicado, hoje já dá para acordar por volta das 8.30»

Bruno Paz, por outro lado, não passou por nada disto. O jovem, também de 20 anos - e que tal como João Silva terminou o 12º ano, embora tenha deixado os exames nacionais em suspenso -, é natural do Barreiro, pelo que viveu sempre com os pais. Ainda hoje vive, aliás.

«Até aos juvenis apanhava o autocarro perto de casa, vinha para a Academia e por volta das 21 horas regressava. Passava 45 minutos no autocarro para cá e 45 minutos para lá. Ainda era bastante tempo, dava para fazer algumas coisas. Quando cheguei aos juniores, tornou-se mais complicado, porque já tinha treinos de manhã e tinha de apanhar o autocarro logo de manhã», refere.

«Portanto, já foi mais complicado em termos de horários e transportes do que é agora. Quando era miúdo era bem mais complicado. Hoje em dia dá para acordar por volta das 8 ou 8.30, para estarmos aqui entre as 9 e as 9.30, de maneira a tomarmos o pequeno-almoço todos juntos, que é obrigatório. Depois do pequeno almoço temos meia horita para vestir, depois vamos quase sempre para o ginásio trabalhar core, pernas ou braços, só no dia antes do jogo é que não vamos. A seguir treinamos. Depois do treino, se for um bi-diário, almoçamos e treinamos novamente à tarde, se não tivermos treino à tarde, vamos para casa, almoçamos, descansamos, a maior parte das pessoas faz sesta e depois fica por casa.»

Naquele dia foi diferente: para estarem com Dani, os dois jovens acabaram por almoçar na Academia. Entretanto já passava das 15 horas e ainda não tinham feito a tal sesta.

Por isso, e após mais de uma hora de conversa, despediram-se com um abraço e seguiram para a casa dos pais, no caso de Bruno Paz, e para a casa que partilha com dois colegas, no caso de João Silva. O descanso chamava por eles.

Dani, esse, deixou Alcochete com a noção de que a Academia marca quem por lá passa.

[artigo publicado originalmente às 23h54 do dia 21 de março]