Ainda que as palavras saiam engasgadas, as memórias rodam a cores e HD. Sem falhas. Tudo o que tem a ver com o Sporting está guardado como preciosa lembrança na cabeça de António Ferreira.

E se essa realidade que já tinha sido partilhada com a reportagem do Maisfutebol, desde cedo começou a ser projetada durante a visita ao Museu do Sporting.

Os quatro golos de Lourenço no Estádio da Luz, que nunca se perderam da memória do então menino de 10 anos. O cantinho do Morais que dera a Taça das Taças ao clube no ano anterior.

Mas também as chegadas vitoriosas de Joaquim Agostinho em plena pista do velhinho José de Alvalade. Ou aquela equipa «do Livramento, do Rendeiro e do Ramalhete» no hóquei.

Sim, porque o Sporting tem desde a fundação o desígnio do ecletismo. «Foi daqui que saíram muitos dos melhores desportistas que Portugal já teve: o Carlos Lopes, o [Fernando] Mamede, o Joaquim Agostinho».

Tudo o que esteja relacionado com o Sporting, o senhor António sabe. E mostra-o ao longo da visita com intervenções pertinentes

Mas se alguém tivesse dúvidas sobre aquilo que o homem de 63 anos foi partilhando com quem o acompanhou ao longo do primeiro de vários momentos de um dia muito especial, no final da visita ao Museu, todas aquelas histórias voltaram, projetadas no filme do auditório do espaço.

A diferença é que ali rodavam a preto e branco. Não eram coloridas como as do homem a quem um AVC levou parte da autonomia, ainda que tenha deixado intactas as lembranças que foi partilhando com os olhos a brilhar.

A doença não lhe levou o amor pelo Sporting, e na quarta-feira o clube devolveu-lhe anos de vida com uma experiência única que o nosso jornal acompanhou a par e passo.

A união faz… o sonho

A história deste outro dia que o senhor António nunca esquecerá, começou numa foto partilhada nas redes sociais. Esse espaço que tantas vezes se torna palco de discussões inúteis, embirrações estéreis ou as tão em voga fake news.

Porém, tudo aqui é real. O amor do utente do Centro Comunitário da Gafanha do Carmo (CCGC) pelo Sporting; o dia mágico que o clube proporcionou ao adepto especial; e o detalhe que foi a única mancha negativa nesta história - o resultado, que entristeceu o senhor António e que provocou o despedimento de José Peseiro.

Sim, porque o senhor António apenas sonhava voltar a Alvalade, onde fora tantas vezes enquanto a saúde lhe permitiu, e acabou por assistir ao fim de uma era. Mas já lá vamos, porque tristezas não pagam dívidas e o dia foi, sobretudo, de alegria.

Voltamos brevemente à foto que esteve na origem de tudo. A foto que, em menos de 12 horas, alcançou mais de 1.100 gostos e quase 500 partilhas, algumas das quais de jogadores profissionais do Sporting, como Bruno Fernandes da equipa de futebol, ou Pedro Cary e João Matos, do futsal.

Nada de novo, na instituição da Gafanha do Carmo, que também já promoveu a realização do sonho de um utente que queria ver o Benfica jogar ao vivo, bem como o de um casal que viu um quadro gigante com o símbolo do FC Porto bordado ser assinado por Pinto da Costa.

«Esta iniciativa insere-se num projeto que colocámos em prática há cerca de três anos, quando perguntámos quais eram os sonhos das pessoas que moram connosco. Realizar o sonho do senhor António era uma ideia que já tínhamos há algum tempo, e agora que ele está bem de saúde, achámos que era a altura ideal», explica Ângelo Valente, animador do Centro Comunitário da Gafanha do Carmo.

Partilhado o sonho, a magia aconteceu. «Apresentámos uma ideia e a sociedade respondeu de forma natural. É isso que esperamos destas iniciativas e é isso que a sociedade nos habituou a dar», orgulha-se ainda.

Para que o sonho se tornasse realidade, porém, foi fundamental a entrada em cena da Fundação Sporting. E menos de dois dias depois, já António Ferreira deixava a vila do concelho de Ílhavo para cumprir o sonho. Com ele, viajaram mais três utentes da instituição e cinco funcionários, a convite daquela entidade.

«Quando tivemos conhecimento desta causa, não podíamos ficar sem fazer nada. Ficámos sensibilizados, fomos solicitados e notificados por centenas de pessoas e contactámos o Centro Comunitário para saber quando podíamos trazer o senhor António ao estádio. Unimo-nos todos em prol deste sonho», explica Celine Cepa, diretora da Fundação Sporting, que acompanhou o senhor António durante toda a experiência.

«A Fundação Sporting, no seu dia a dia, já proporciona este tipo de experiência, ainda que não com a intensidade desta do senhor António, que teve uma visita exclusiva ao nosso Museu, que estava fechado, e também esteve a receber os jogadores junto à mítica porta 10 A», contextualiza ainda a mesma responsável.

Estrela na 10A e aplaudido de pé no relvado

20h10. Pouco mais de duas horas depois de ter chegado ao Estádio de Alvalade – o mesmo que onde estivera tantas vezes, incluindo o dia da inauguração – o senhor António estava na Porta 10A, a aguardar pelos jogadores que tanto admira.

À frente de todos, Bruno Fernandes, o «jogador preferido» de António, conforme o mesmo confidenciara ao Maisfutebol à chegada. O diálogo é breve, ao contrário dos cumprimentos que recebe de cada um dos jogadores. «Está contente, senhor António? Isso é que interessa. E o importante agora é ganhar», diz-lhe o médio, antes de seguir em direção aos balneários.

Pouco mais de duas horas, e novo sonho cumprido. «Está contente, senhor António? Já podemos ir embora, não é?», provoca uma das funcionárias do CCGC. «Ir embora? Primeiro quero ver o jogo!», devolve-lhe o adepto que traz vestida a camisola de Mário Jardel e já não tem pescoço para mais cachecóis do clube.

É também assim, vestido a rigor, que António Ferreira desce ao relvado para ser aplaudido de pé por muitos dos que, provavelmente, haviam partilhado a sua história. Ali, num momento que tornou só dele, António tirou o pé direito do apoio da cadeira de rodas e pisou o palco dos sonhos que vê na televisão. E respirou fundo. Absorvendo o momento.

O momento é interrompido pelo speaker que anuncia ao público «a presença de um adepto muito especial em Alvalade». Entre um abraço do Jubas e umas palavras atiradas para todo o estádio - «o Sporting é grande, é muito grande» - é à flor da relva que o senhor António assiste ao apito inicial do Sporting-Estoril.

Que role a bola, pois então.

Ao chegar ao camarote onde viu o resto da partida, um dos momentos do dia. Bas Dost recupera uma bola à entrada da área que o senhor António tem ali mesmo à sua frente e Wendel marca o golo festejado de forma efusiva por todos aqueles que vieram com ele. António vive o momento e celebra apenas de punho cerrado enquanto é envolvido num abraço.

Apesar da vantagem dos leões, estamos perante um adepto exigente que não parece animado com aquilo que vai vendo. Está cansado, senhor António? «Uma pessoa em Alvalade nunca se cansa, o jogo é que está um bocado fraco», lamenta, arrancando sorrisos em todos aqueles que o rodeiam.

«Peseiro? Se o apanhasse aqui dizia-lhe umas coisas»

António é mesmo assim. Sportinguista com todas as forças. Garante quem lida com ele diariamente.

«Este era realmente o sonho dele. O senhor António respira Sporting. Todo o dia dele é pensado em torno do Sporting e das notícias sobre o clube. Às vezes, deixamo-lo no computador a fazer exercícios de estimulação cognitiva, voltamos costas e vamos dar com ele em sites desportivos a ler sobre o que se passa no Sporting», confidencia Sofia Nunes, gerontóloga do CCGC.

O jogo aproxima-se do fim e o cenário não é bom. O Sporting perde por 2-1, no momento em que é passado o sinal para nova descida do senhor António ao relvado.

«Oh senhor António, que se o Peseiro vier falar consigo não lhe pode falar mal», provoca o animador do CCGC ao ver o utente desanimado. «Olha, se o apanhasse aqui, dizia-lhe umas coisas», atira de pronto, para nova gargalhada geral.

À flor da relva, sente-se ainda mais a insatisfação dos adeptos em ebulição, que vão extravasando com lenços brancos e assobios enquanto a equipa se dirige aos balneários.

O senhor António, esse, não tira os olhos do relvado. Assiste a tudo cabisbaixo. De repente, parece que nada do que viveu antes importa mais. Contudo, o próprio trata de desfazer a ideia.

«Triste? Eu não estou triste, eles é que podiam jogar um bocadinho mais. Mas o dia foi espetacular, foi tudo bom. Só o resultado é que foi mau, mas nem tudo é possível», enaltece, já com a camisola de jogo de Bruno Fernandes nas mãos, para juntar à que recebera do presidente, Frederico Varandas, ao intervalo do jogo, assinada por todos os jogadores do plantel do Sporting e com o nome de António nas costas.

E essas memórias, sabemos, ninguém lhas vai tirar. O senhor António viveu um verdadeiro dia de filme. É certo que teve um erro de casting pelo meio, mas esse é mais um momento que vai poder adicionar à sua história de ligação ao Sporting.

António esteve em Alvalade no dia em que chegou ao fim uma era. Não só pelo despedimento de José Peseiro do cargo de treinador – que aconteceu no dia seguinte à visita –, mas o passo dado por um clube que quer atirar para o passado os momentos negros do último verão.  

O futuro segue dentro de momentos. E até podem voltar a incluir o senhor António no filme.

Era este o sonho que tinha?, questionamos nas despedidas. «Sim. Para já, sim. Agora falta voltar cá, mas a andar. Também ainda vou cumprir esse», remata, convicto.

(artigo publicado às 23h54 de 01/11/2018)