Naquela tarde de sábado, o Desportivo de Chaves recebia o Vidago Futebol Clube. O irmão mais velho, Pedro, era o melhor jogador dos sub11 flavienses. Na baliza dos visitantes estava André, irmão mais novo quase dois anos.

André nem se lembra de quanto ficou o jogo. Só sabe que sofreu sete golos de Pedro, o protagonista desta história. «O que lhe fiz no final? Despejei-lhe uma garrafa de água em cima da cabeça e durante uma semana não falei com ele.»

Por esses dias, a família de Pedro Gonçalves – sim, o goleador-mor da Liga portuguesa e grande figura do Sporting – vivia numa casa anexa ao campo de futebol do Vidago FC. Maria, a mãe de Pedro e André, era a roupeira do clube e tratava dos equipamentos, das bolas, muitas vezes da marcação das linhas do pelado de jogo.

«Crescemos dentro das instalações do Vidago. A nossa mãe trabalhava lá e era futebol todo o dia. O Pedro era viciado, só vinha para dentro de casa quando o meu pai apagava as luzes do campo», conta André Pereira, atual guarda-redes do Sabroso Sport Clube, na AF Vila Real.

Pedro Gonçalves com três anos 

O pai biológico de Pedro Gonçalves, António, morreu quando o menino tinha um mês de vida. A mãe refez a vida ao lado de João, bombeiro voluntário e uma ajuda de todas as horas. Da ligação nasceu André, que se juntou a Pedro e aos dois irmãos mais velhos, Sónia e Tiago.

Antes, muito antes de ser famoso e de fazer sonhar o mundo do Sporting, Pedro Gonçalves adormecia na cama que partilhava com André e sonhava com o maior dos ídolos. «Messi, Messi, Messi. O Pedro só pensava em imitar o Messi. E eu só queria ser como o Pedro. Temos idades aproximadas e no campo não havia dúvidas: era o Pedro a rematar e eu a defender.»

Apesar dos recursos humildes, «nunca faltou nada» à família de Pedro Gonçalves. Muito menos comida. «A alcunha Potinho nasceu assim», confirma o irmão André. «O Pedro adorava comer, era mais gordinho. Mas a jogar à bola era o melhor de todos. O mais rápido, o mais ágil, e já tinha um remate violento quando era pequenito. Ah, e adorava ver comigo os Morangos com Açúcar e o Oliver e Benji, eram os nossos programas favoritos.»

«Sempre pensei que o Pedro fosse parar ao FC Porto»

Na tal temporada de 2008/09, quando os irmãos se defrontaram «pela única vez» em campo, Pedro estabeleceu um recorde ainda vigente na associação distrital de Vila Real: 72 golos na mesma época desportiva!

Os números confirmam que a tendência para marcar esteve sempre presente, mesmo em alguém que nunca foi um avançado puro. O irmão André acha, de resto, que Pedro pode ser o melhor marcador do campeonato português já este ano.

«Ainda ontem no treino do Sabroso um colega meu dizia que o Pedro estava incrível e que este ano ia fazer pelo menos 15 golos. Eu disse-lhe que vai fazer ainda mais», continua André Pereira, antes de voltar ao álbum de recordações e às explicações para a «fibra» que a vida injetou em Pedro.

«Os nossos dias eram simples e felizes, divididos entre a escola, o campo do Vidago e o quartel dos bombeiros. O meu pai levava-nos para lá e jogávamos à bola, claro, no meio dos carros de combate ao fogo e das ambulâncias. Essa ida aos bombeiros marcou-nos tanto que eu estou agora a tentar entrar para lá. Acho que esses dias de remates atrás de remates o ajudaram a ser o que é hoje.»

O senhor João continua a trabalhar nos bombeiros de Vidago, como voluntário, e é funcionário municipal, responsável pela recolha de lixo e resíduos urbanos. A dona Maria deixou, entretanto, a casinha no campo de futebol e deixou também há uns anos de trabalhar no clube. A crise financeira que assolou a região nortenha – e o país – deixou o Vidago FC no limite e obrigou Maria a procurar soluções: hoje em dia é jardineira numa empresa da zona.

Pedro está no chão e André ao colo da mãe, a dona Maria 

Em Vidago, «terra de portistas e benfiquistas», o Sporting ganhou uma projeção que nunca antes teve. É José Sousa, vice-presidente do Vidago e um dos homens que acolheu Pedro no clube aos oito anos, quem o garante.

«A maior parte dos habitantes de Vidago são de outras cores. O padrinho do Pedro, irmão da mãe, é benfiquista, por exemplo. Mas sempre pensei que o Pedro fosse parar ao FC Porto. Até porque ele tinha gosto por essa cor. A verdade é que está no Sporting, está muito bem, e fez com que as gentes de Vidago sigam o Sporting como nunca seguiram.»

André, o irmão guarda-redes, prefere não revelar as preferências de infância de Pedro, mas assume as suas. «Eu sou portista, sim. Posso dizer que tenho sempre três clubes: 1º, o clube onde estou a jogar; 2º, o clube onde está o Pedro a jogar; 3º, o FC Porto.»

«Custou-me muito vê-lo a sair para Braga aos 11 anos»

Criado num campo de futebol, Pedro nasceu com uma bola no berço. Curiosamente, antes de se tornar atleta federado, ainda experimentou o andebol.

«É verdade, o Pedro jogou andebol no desporto escolar, curiosamente com o atual presidente do Vidago, o Paulo Lopes. O Paulo fazia parte da Associação de Pais e acompanhou o Pedro nessa passagem pelo andebol. Tinham uma parceria com a Casa de Cultura de Vidago», conta José Sousa, dirigente do emblema que milita na presente campanha no Campeonato de Portugal.

O futebol, acrescenta, acabou por vencer e agarrar o Potinho. «Conheci-o ainda muito pequenino. Teve a sorte de ter a mãe como roupeira do nosso clube e aproveitou bem isso. Nunca lhe faltaram bolas para jogar. Hoje é o que é porque foi sempre apaixonado pelo futebol. Ele já era um menino diferente a jogar, mesmo sendo baixinho e rechonchudo. A entrega, a rapidez e, principalmente, o remate. No futebol de 7 destacava-se bastante. Tinha um pontapé fantástico para a idade que tinha.»

André (no triciclo) e Pedro na famosa casa no campo do Vidago

A experiência no futebol oficial foi tão boa que, no final do primeiro ano, Pedro Gonçalves foi contratado pelo Desportivo de Chaves. Ficou dois anos no emblema flaviense e rumou ao Sp. Braga com apenas 11 anos. Nessa mudança, marcante para uma criança tão pequena, foi fundamental o apoio e a influência de Jorge Pires.

«O representante do Pedro, o Jorge, foi fantástico em todo o percurso», considera José Sousa. «Nunca deixou o Pedro perder o foco. Chamou-o à razão quando teve de chamar. Está com ele até hoje. Sempre que falo com o Pedro digo-lhe a mesma coisa: ‘quando tiveres uma oportunidade não a agarres com uma mão, agarra-a com as duas’.»

O pai de Jorge Pires foi colega do pai de Pedro Gonçalves na direção do Vidago FC. As famílias moravam perto e foi Jorge quem pediu autorização para levar o Potinho a treinar no Sp. Braga. Sem surpresas, os Guerreiros do Minho quiseram logo ficar com o menino. Mas havia um problema: de Vidago a Braga são 100 quilómetros a conduzir, mais de uma hora de estrada.

André passou a ter a cama só para si. «Custou-me muito vê-lo a sair de casa. Perdi o meu companheiro de todas as brincadeiras e vi a minha mãe a chorar muitas vezes por ele. Mas foi bom para ele ter ido para Braga. Como aguentou? Ele sempre disse que ia dedicar a carreira ao falecido pai. Apesar de não o ter conhecido, acha que lhe deve essa homenagem.»

Vidago, Chaves, Braga, Valencia, Wolverhampton, Famalicão, Sporting

Em Braga, Pedro foi viver para a casa de uma senhora de idade, perto do Estádio 1º de Maio. O clube colocou nesse lar improvisado mais dois colegas de equipa dos infantis. Pedro tinha um teto, comida e as obrigações normais: escola e treinos de futebol.

Ficou cinco temporadas no Sp. Braga mas, em 2015, teve de lidar com a primeira desilusão. Agostinho Oliveira, o homem que mais apostou e acreditou no seu futebol nos guerreiros, saiu do clube e a direção de António Salvador optou por não lhe oferecer um contrato profissional. Pedro tinha 17 anos e recebeu mais um contrato de formação como melhor oferta.

Uma imagem rara: Pedro com a camisola do Sp. Braga

Em Valencia, Nuno Espírito Santo estava atento e propôs-lhe a entrada na equipa de sub23 e um vínculo profissional. Pedro impôs-se, tornou-se no capitão de equipa e dividiu o balneário com nomes como Toni Martinez (FC Porto) e Ferrán Torres (Manchester City).

Dois anos depois, já com NES no Wolverhampton, chegou a Pedro uma oferta financeira irrecusável e o menino de Vidago rumou a Inglaterra. Nos Wolves não teve as oportunidades que esperava na equipa principal – apenas um jogo – e em 2019 sentiu necessidade de voltar a ser importante.

As garantias de Miguel Ribeiro, CEO do Famalicão, apontaram nesse sentido e Pedro Gonçalves aceitou voltar a Portugal. Fez sete golos em 40 jogos e convenceu o Sporting a investir 6,5 milhões de euros por 50 por cento do passe.

Em Alvalade, os números são impressionantes: nove golos em oito jogos oficiais, titular indiscutível. A cabeça de Pedro Gonçalves comanda o futebol leonino e chega a ser difícil acreditar que este é o mesmo rapaz que um dia perdeu o telemóvel em Valencia ou que certa vez deixou a carteira na casa de banho de um aeroporto e ficou sem documentos.

Distraído? Pode ser, mas fiel às responsabilidades profissionais e às origens. Ainda este ano, Pedro e o empresário Jorge Pires doaram material médico ao Hospital de Chaves e aos Bombeiros Voluntários de Vidago. Os mesmos bombeiros onde tantas vezes jogou à bola com o irmão André.

«Agora só queremos que o Sporting ganhe e que o Pedro marque. Mas ele que não pense que eu me esqueço dos sete golos que me marcou em Chaves.»

NOTA: fotos gentilmente cedidas pela família de Pedro Gonçalves. Na foto de capa, Pedro está entre os irmãos Tiago (à esquerda) e André.