A manhã acordou vestida de um cinzento carregado. O dever, porém, chamava persistente, como o bater de uma chuva forte. E os homens sabem como é esta vida: faça chuva ou faça sol, há que sair para mais um dia de luta. Por isso, ninguém estranhou que tenha sido no momento em que rebentava uma generosa carga de água que a tripulação do Gafanha saiu dos balneários rumo a mais um treino.

Isto, numa semana em que as emoções das gentes da Gafanha da Nazaré, no município de Ílhavo, são águas agitadas. A visita do FC Porto mexe com a comunidade, mas existe confiança nos homens que vão tentar levar aquele barco a bom porto.

Nesse sentido, ninguém tem pena de homens que se querem bravos. «Têm mesmo de treinar assim. Se não, no sábado começa a chover e eles querem todos fugir», escutava-se no refeitório do clube, onde o Maisfutebol aguardava uma aberta para ir ter com os heróis lá fora.

Mas este era um cenário fácil de imaginar numa terra onde pouca gente não conhece algum pescador. Não desses de domingo, que saem de cana em punho. A Gafanha é terra de homens de faina maior. De gente que parte rumo aos mares do Norte e que por lá fica durante meses, na pesca do bacalhau.

«Temos bons escaladores que nos ensinaram o segredo»

A assistir a mais um treino da equipa, antes do jogo mais importante da história do clube gafanhão, está João Paulo Ramos, o presidente que pegou no clube há poucos meses, mas cuja ambição para a equipa que lidera a série D do Campeonato Portugal parece não ter limites.

Também ligado ao setor que predomina na cidade, o presidente garante que «foi fácil implementar, nos jogadores, o espírito de um pescador que parte em busca de algo melhor». «Eles já tinham a motivação, só tivemos de lhes dar a crença», resume.

E a fé num bom resultado diante do FC Porto, no sábado, existe. «Claro que acreditamos. Que eu saiba, ainda não alteraram as regras: são 11 homens para cada lado e uma bola.»

Tamanha confiança, justifica-se também por estarmos perante um homem que, conforme assume, vai «ganhar de qualquer maneira.» «Pessoalmente, qualquer resultado vai deixar-me satisfeito. Se o FC Porto ganhar, vou ter o consolo de 45 anos de vitórias como adepto; se for o Gafanha a vencer, terei a satisfação de uma época de encher as medidas.»

E mesmo perante um «tubarão» do futebol nacional, o líder do Gafanha acredita ter a técnica para o levar de vencida. «Temos aqui bons escaladores na faina do bacalhau que já nos ensinaram a o segredo para dar a volta a um peixe grande. Qual? «Se é segredo não lho posso contar», atira entre risos.

Seis vitórias consecutivas e vontade de disputar a eliminatória

Ao leme da equipa do Gafanha está Nuno Pedro, um jovem técnico de 34 anos, que assume que esta tem sido uma semana em que «a tarefa de motivar os jogadores é fácil». «Por outro lado, a maior dificuldade é a gestão das emoções», realça.

Ainda assim, o jogo diante dos dragões surge num momento em que a equipa atravessa uma boa maré de resultados, o que deixa o técnico confiante. «Vamos fazer um jogo competente, ao nível do que temos feito esta época. Vimos de seis vitórias consecutivas e chegamos moralmente muito fortes ao jogo.»

Nesse sentido, Nuno Pedro não embarca na onda de quem defende a impossibilidade de haver «Taça» neste jogo. «E porque não disputar aquilo que o jogo tem, que é a passagem na eliminatória?», questiona, ambicioso.

Essa mensagem de confiança também já embalou os jogadores. É isso que se percebe, por exemplo, nas palavras de Mika, avançado de 19 anos, o único elemento do plantel que nasceu na terra. «Os jogadores vão entrar no campo para lutar, a representar toda a comunidade», assegura.

Apesar de ser gafanhão, esta é a primeira época de Mika no clube, tendo sido logo brindado com o jogo maior que o clube já viveu. «Representar o clube de um local que me diz muito e jogar contra um grande é um prémio. Não só para mim, enquanto jogador, mas para toda a comunidade gafanhense», aponta, apelando à mobilização popular, que espera ver no estádio Municipal de Aveiro, onde se vai disputar a partida.

«Pirata» cego de um olho é exemplo de superação

No final do primeiro treino de um dia em que haverá uma segunda sessão, ao final da tarde, a animação é o sentimento dominante entre os jogadores do Gafanha. E no meio da boa-disposição, a de Mino [na foto] sobressai. O avançado de 31 anos confidencia que também ele tem razões para considerar o jogo com o FC Porto ainda mais especial, pela ligação que tem a uma terra que adoptou como sua.

«Este é um clube que me diz muito. Apesar de não ser de cá, é aqui que vivo há uns bons anos, a minha mulher é de cá e tenho a minha filha que é gafanhoa de gema», revela o jogador que está a viver uma das melhores semanas da sua vida.

Nesta quinta-feira, nasceu a sua filha, Bianca, no passado fim-de-semana fez o primeiro golo pelo Gafanha na visita ao Lusitano [ver vídeo, aos 2:20] e amanhã terá pela frente o mais ilustre adversário que defrontou na carreira.

Firmino Salgado no cartão de cidadão, nos corredores dos balneários tanto responde por Mino como por «Pirata», numa história que faz dele um exemplo de que não há impossíveis, desde que a vontade de se ultrapassar um obstáculo seja maior.

Cego do olho direito desde os cinco anos, essa limitação não o impede de ser um dos perigos apontados à baliza que deve ser defendida por José Sá, um guarda-redes sobre quem a alcunha de pirata também não destoaria.

«No campo, isto não me limita em nada», garante Mino, que não se deixa intimidar pelos nomes de Marcano, Felipe ou Boly. «Os que aparecerem, que se cuidem porque nós vamos para cima deles sem medo nenhum. Tal e qual como os pescadores que enfrentam o mar. É igualzinho.» Fica o aviso ao Dragão.

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