A nova era foi anunciada com alguma pompa e muita circunstância: os programas desportivos agradecem o contributo e dispensam, a partir de agosto, os adeptos de clubes que vestiram até agora o papel de comentadores na televisão.

A iniciativa partiu da SIC, mas será seguida brevemente por outros. A RTP, por ora, coloca-se de parte e desmente haver «toxicidade» e «clima de guerrilha» nos seus produtos de comentário futebolístico.

Perante a promessa de novos mundos e novos protagonistas, o Maisfutebol sentiu necessidade de refletir sobre a mudança de paradigma e adivinhar o que trarão os próximos ventos. Para isso socorreu-se do conhecimento de Felisbela Lopes, doutorada em Informação Televisiva e especialista em Media e Televisão, e do sociólogo João Teixeira Lopes.

«Parece-me uma boa proposta», considera Teixeira Lopes. «A certa altura o comentário desportivo ficou entrincheirado nas tribos e perdeu a possibilidade de chegar a outras pessoas. Grosso modo, quem ouvia esse tipo de comentário não pretendia adquirir informação ou refletir, mas apenas ter uma adesão emocional imediata ao seu clube.»

Felisbela Lopes não discorda das palavras, mas prefere começar por contextualizar a decisão da direção de informação da SIC. «Vivemos um dos momentos mais quentes da concorrência entre a SIC e a TVI, um momento delicado. O exemplo do regresso da Cristina Ferreira à TVI, de forma súbita, reflete isto mesmo», considera a professora da Universidade do Minho.

«Só se fossem loucas é que as televisões acabariam com o comentário futebolístico»

João Teixeira Lopes reflete, sobretudo, sobre o «impacto informativo», Felisbela Lopes debruça-se sobre «a estratégia de marketing» que a medida imposta pelo canal privado pode envolver.

«O futebol é uma das armas de uma grelha de programação. Quando a SIC diz que vai limpar esses programas de comentário, obtém uma reação positiva por parte do público. Olhamos para isto e congratulamo-nos. Isso é uma estratégia pensada pela SIC, essa é a minha interpretação», defende Felisbela Lopes, garantindo que os programas de «conversas sobre futebol» não vão acabar.

«Não, não vão acabar. Devem passar por uma remodelação? Sim. Estão numa fase de saturação e têm contribuído para a falta de tranquilidade que rodeia o mundo do futebol. Com esta decisão, temos aqui um marco disruptivo que num primeiro momento é bastante favorável a quem o adota. A SIC está a criar grande expetativa para o próprio formato e isso não deixa de ser uma estratégia de marketing.»

Por tudo isto, conclui Felisbela Lopes, «só se fossem loucas» é que as televisões privadas - «dependentes do mercado publicitário» - terminariam com os programas de comentário futebolístico.

O campo de observação de João Teixeira Lopes leva-o para outras latitudes. «Os inquéritos sociológicos demonstram que os adeptos incondicionais – não gosto do termo ‘fanáticos’ – são minoritários. Esse comentário irracional, feito por outros adeptos, impede a mensagem e o programa de chegar a outros públicos.»

«Já tinha perguntado a mim mesmo porque é que isto não tinha sido há mais tempo mudado», confessa o sociólogo. «Talvez por as audiências serem boas, embora eu ache que poderiam ser ainda melhores. Esse tipo de programa estava ligado à dramatização, não nos permitia aprender nada. O formato estava esgotado e não havia grande margem para renovar-se. Estava gasto», sentencia.

«Decisão permitirá a multiplicação de perspetivas e ângulos de análise»

Em tempos tristemente extraordinários, o futebol «pode e deve ser» uma metáfora inteligível. Uma metáfora sobre o «funcionamento da sociedade», atesta João Teixeira Lopes.

«Podemos falar de futebol sem defender só uma tribo e atacar as outras. O futebol é uma competição que se resolve simbolicamente no final, uma história contada por nós próprios a nós mesmos. ‘Somos capazes de resolver os diferendos provocados pelo jogo sem violência, com engenho e criatividade?’ Sim, e partimos sempre do zero», continua Teixeira Lopes, neste passeio pela ligação entre o mundo da bola e as vidas da vida real.

Para o antigo dirigente do Bloco de Esquerda e ex-presidente da Associação Portuguesa de Sociologia, a eliminação do ‘adepto-comentador’ permitirá a «multiplicação de perspetivas e ângulos de análise».

«Essa análise mais completa acaba por nos destapar outras realidades. Por isso, sim, esta tem de ser uma boa ideia e pode servir como uma espécie de catarse. Temos aqui uma boa possibilidade de ter outra luz, outro olhar.»

Mas será que esta decisão editorial, condenada a ter réplicas nos próximos dias, também foi influenciada pelos dias de pandemia e dúvida em que vivemos? João Teixeira Lopes diz que sim.

«Estamos a repensar e a desacelerar a sociedade. A pandemia obrigou-nos a não continuar sem pensar. As pessoas fechadas em casa ficaram mais conscientes daquilo de que já estavam fartas. A rotina e a saturação passaram a ser mais percetíveis e acredito que isso ajudou a procurar novos caminhos.»

Quem se lembra dos dirigentes dos três grandes juntos e a cores em 1992?

Numa tese chamada ‘A confraria do comentário do futebol na TV: evolução dos programas televisivos feitos com adeptos dos maiores clubes portugueses’, publicada em 2011 na revista OBS, Felisbela Lopes já monitorizava o comportamento dos atores de cachecol e bandeira ao pescoço.

«Poucos se lembrarão», adverte, «mas a 18 de outubro de 1992, a SIC criou o programa 'Os Donos da Bola' e os primeiros comentadores foram os presidentes de Sporting (Sousa Cintra) e FC Porto (Pinto da Costa) e um vice-presidente do Benfica (Gaspar Ramos).»

«A emissão foi bastante polémica, a tal ponto que aqueles que a protagonizaram se mostraram indisponíveis para repetir a experiência. Aquilo correu tão mal que na semana seguinte já nenhum quis aparecer e a SIC passou a ter um programa feito apenas com peças de reportagem», relata a professora Felisbela Lopes.

«Depois, em 1995, a RTP 2 colocou no ar um programa com comentário de adeptos. Nessa altura, o Emídio Rangel reformulou 'Os Donos da Bola' e também apostou no comentário feito por adeptos dos maiores clubes. Esse programa foi criando alguma polémica, principalmente com um episódio chamado ‘Caso Paula’. A polémica fazia parte e a polícia era invariavelmente chamada às instalações da SIC, principalmente no Porto, nas noites de sexta-feira.»

Felisbela Lopes recorda estes pontos de história para demonstrar que as televisões privadas - «a RTP, pela natureza pública, tem demonstrado algum equilíbrio» - «esticam a polémica» há pelo menos 28 anos. «Mas os programas desgastam-se e muitas vezes os comentadores foram além do admissível.»

Para Felisbela Lopes, o ano de 2001 e «o surgimento da SIC Notícias e do 'Big Brother' na TVI» foi outro separador especialmente relevante para chegarmos ao ponto onde nos encontramos.

«Os canais generalistas das televisões acabaram por ser esvaziados e os programas de informação migraram para o cabo. Isso potenciou a entrada dos reality shows nas grelhas dos generalistas e os programas de comentário desportivo no cabo passaram a ser âncoras de audiência. Isso permitiu-lhes aumentar o discurso inflamado, mas tudo acabou por cansar.»

Nenhum dos especialistas consultados se atreve a acenar com a pacificação do futebol nacional, mas ambos garantem ser «inevitável» o passo radical dado pelas televisões privadas. «A bem da saúde mental e da saúde da própria indústria do futebol.»