Nas margens do Manzanares, um vulcão. Em dias de jogo, quase sempre foi assim o Vicente Calderón.

Domingo o Atlético de Madrid vai despedir-se daquela que foi a sua casa ao longo de meio século, na receção ao Athletic Bilbao na 38.ª e última jornada da Liga Espanhola.

Na hora da despedida, uma espécie de regresso às origens – foi um grupo de estudantes bascos em Madrid, aficionados do clube bilbaíno, que fundou em 1903 o Atlético, que foi filial até 1921 e apesar das suas mutações (como Atlético Aviación, no início do franquismo) manteve não só a designação como semelhanças no emblema e no equipamento dos primeiros tempos.

Agora, por vicissitude do calendário, o Athletic apadrinha o adeus do Atlético no Calderón (que ainda vai receber a final da Taça do Rei, entre Barcelona e Alavés, a 27 de maio).

Receção ao Real Madrid, na meia-final da Liga dos Campeões, a 10 de maio

É o fim de um estádio mítico, junto ao rio e uma bancada sobre a M-30, circular de Madrid, sob o qual passam milhares de automóveis diariamente, que foi inaugurado em 1966 e cinco anos mais tarde rebatizado com o nome de Don Vicente histórico presidente do clube entre 1964 e 1980.

Aplausos com Futre, ovos e bolas de golfe com Hugo Leal

Na memória ficarão momentos eternos, como recorda ao Maisfutebol Paulo Futre, ídolo colchonero que representou o clube entre 1987 e 1992 (regressando em 1998, antes de ocupar o lugar de diretor desportivo até 2003):

«A despedida vai ser um momento difícil para mim. O Calderón vai deixar saudades. Vivi ali alguns dos melhores momentos da minha vida. Em 1997, recebi diante do meu público a insígnia de ouro e brilhantes, o mais alto galardão do clube, antes de um dérbi frente ao Real Madrid», começa por afirmar Futre, antes de solicitado para eleger um dos seus jogos preferidos no templo rojiblanco:

Escolher um? Não é fácil. Foram tantos… Contra Real Madrid, Barcelona… Já sei! Lembro-me bem de um jogo contra o Manchester United, para a Taça das Taças, fiz dois golos, um deles espetacular ao Peter Schmeichel.»

Aconteceu a 23 de outubro de 1991. Logo na primeira mão o Atleti de Luis Aragonés encaminhou a segunda eliminatória da Taça das Taças ao vencer por 3-0 o Manchester United de Alex Ferguson (seguiu-se um empate a uma bola em Old Trafford), com Futre a deixar o estádio rendido, uma vez mais curvado diante do seu génio.

Hugo Leal (médio que representou o Atlético entre 1999 a 2001) recorda, por sua vez, um momento atribulado: a penúltima jornada da Liga de 1999/2000, no primeiro jogo em casa após confirmada a despromoção da equipa à II divisão, diante do também despromovido Sevilha:

Os adeptos estavam revoltados. Em protesto, as claques entraram no estádio meia-hora depois do apito inicial e atiraram-nos com tudo: ovos, dizem que foram mais de 400, bolas de futebol e de golfe… Marquei um golo, ainda antes de eles entrarem, e já no final do jogo fui expulso. Foi um jogo cheio de incidências numa época atípica também, em que desceram de divisão Atlético, Sevilha e Bétis, tudo clubes que levavam 50 mil adeptos ao estádio nos seus jogos.»

Depois do período negro da descida de divisão, o Atlético voltou à ribalta – foi duas vezes finalista da Liga dos Campeões, em 2013/14 e 2015/16, e venceu a sua décima liga espanhola, em 2013/14, algo que já não acontecia desde 1995/96.

Nova casa a vinte quilómetros de distância

A reestruturação financeira do clube implicou também a mudança de estádio. Num protocolo assinado em 2007 com a autarquia de Madrid, o Atlético iniciou o processo de deslocação para o antigo estádio olímpico (proposto como sede das candidaturas fracassadas da capital espanhola aos Jogos de 2012, 2016 e 2020).

Designado popularmente por La Peineta (pela bancada fazer lembrar um pente), o recinto que servia sobretudo o atletismo, embora tenha acolhido um jogo da Supertaça de Espanha em 1996, de boa memória para o Atlético (que venceu o Barcelona por 3-1).

Foi adquirido por 30 milhões de euros pelo clube e transformou-se num novíssima arena para 70 mil espectadores (mais 14 mil) com a designação de Wanda Metropolitano, numa conjugação de nomes entre o patrocinador chinês Wanda Group, que investe no naming durante dez anos, e uma homenagem ao Metropolitano, predecessor do Calderón e que foi o primeiro grande estádio do Atlético (entre 1923 e 1966).

Outra das homenagens à história do clube é o batismo da avenida de acesso ao novo estádio com o nome do malogrado Luis Aragonés, antiga glória do clube, como jogador e como técnico.

Mais de 50 mil lugares anuais já estão vendidos para a próxima época no novo estádio. A mudança, porém, não convence uma franja substancial de adeptos colchoneros, alguns organizaram-se em plataformas de protesto como a Asociación Señales de Humo – Sinais de Fumo.

O Atlético vai, de facto, afastar-se do distrito de Arganzuela, onde está o grosso da sua base social. O novo estádio fica longe do centro da cidade, a cerca de 20 quilómetros do Calderón, que será demolido para dar lugar a um parque junto ao rio Manzanares.

Vinte quilómetros separam o Vicente Calderón (A) do novo Wanda Metropolitano (B)

«O Calderón tem um ambiente completamente diferente de estádios como o Santiago Bernabéu, do Real Madrid, por exemplo. É mais quente, vive-se o jogo mais paixão… Logo no primeiro jogo ali, um jogador sente o ambiente a ferver», salienta Futre, acreditando ainda assim que o Atlético não perderá com a mudança:

Não conheço o novo estádio, mas, pelo que vi, parece-me incrível. Cinco estrelas. Um pouco distante. Para muitos adeptos, especialmente para os mais velhos, reconheço que vai ser uma mudança difícil, em particular nestes primeiros meses. Mas acredito que o espírito e o ambiente do vão manter-se.»

Objetivo: «doação de órgãos» para tornar eterno o Calderón

Para trás ficarão recordações, como as transpostas para filme no documentário «Memorias del Calderón», de Miriam e Sergio Vargas, produzido pela Football Citizens (que pode ver aqui):

Outras iniciativas procuram também manter o espírito de um dos palcos mais carismáticos do futebol espanhol.

Mesmo após demolido, o Calderón permanecerá vivo nas memórias dos adeptos colchoneros. Os sócios com lugar anual vão poder gratuitamente guardar as suas cadeiras no estádio após o seu encerramento definitivo.

Mas, e se fosse possível ir além disso e materialmente preservar ainda mais do antigo estádio?

É esse o desígnio promovido pela revista Líbero, que acaba de lançar uma campanha de «doação de órgãos» do estádio com a designação #eternoCalderon. O objetivo é a reciclagem de tudo o que forem materiais que possam ser reutilizados, de modo a melhorar as infraestruturas modestos clubes de bairro de Madrid.

Holofotes, relvado, balizas, bancos de suplentes, balneários… Se Don Vicente «doar os seus órgãos», o Calderón será eterno. Viverá nos humildes campos de futebol da capital espanhola.