Este domingo, no Monumental de Buenos Aires, volta a acontecer um pedaço de história em direto. Pelas 22.15 de Portugal, River e Boca retomam uma rivalidade a que, pela primeira vez, se pode chamar centenária sem receio de contradições: se há dúvidas sobre a data do primeiro encontro particular entre as duas equipas, por volta de 1908, é unânime que o primeiro embate oficial entre os dois maiores clubes da Argentina aconteceu a 24 de agosto de 1913. Este é, por isso, o primeiro clássico a jogar-se depois de sopradas as cem velas sobre um dos mais intensos espetáculos desportivos do planeta.

Mesmo para quem acredita que o superclásico já viveu anos melhores, não faltam ganchos de atualidade a manter viva a chama da rivalidade. A começar pelos dois treinadores: de um lado Ramón Diaz, 54 anos, antigo ponta de lança internacional e técnico com mais títulos em toda a história do River Plate. Do outro, Carlos Bianchi, dez anos mais velho, antigo ponta de lança internacional e treinador com mais títulos em toda a história do Boca Juniors. Jogando em casa, conseguirá Ramón finalmente, voltar a bater Carlos, 14 anos depois da sua única vitória, conseguida em no Torneio Apertura de 1999?

O River surge como favorito nas casas de apostas, apesar de ter menos dois pontos na classificação e de não vencer o Boca desde 2010. Ainda assim, os bookmakers consideram um empate, 1-1, como resultado mais provável. Exatamente o desfecho registado em maio, no último encontro entre os dois históricos, durante o Torneio Final.

Há mil polícias destacados, mas esse número pode subir até 1500, caso a possibilidade de confrontos aumente nas próximas horas. Desde uma épica meia-final da Taça Libertadores, em 2004, com Lucho Gonzalez a marcar pelo River e Carlos Tévez pelo Boca, que a regra policial é impedir a presença de adeptos visitantes: nem «Bosteros» no Monumental, nem «Gallínas» na Bombonera. Por isso, nesta semana as autoridades anunciaram o encerramento de um setor do estádio, já que 1710 entradas tinham ido parar a adeptos do Boca. Assim, a lotação fica reduzida a 62 mil lugares, e o River vai ter de devolver 350 pesos (cerca de 45 euros) a cada adepto que comprou ingresso para o setor proibido. Parece caro, e é. Mas na internet havia revenda entradas de camarote a quem estivesse disposto a pagar 2800 pesos, cerca de 350 euros. Tudo é relativo, não é?

Origens comuns

Se quiséssemos ser apocalíticos, poderíamos adaptar a frase de Nelson Rodrigues a propósito da rivalidade Fla-Flu, e dizer que «o River-Boca nasceu quarenta minutos antes do nada». Pequeno problema, não seria verdade: os dois clubes surgiram já em pleno século XX (o River em 1901, o Boca em 1905) com o bairro de Boca, a zona portuária e a influência inglesa como traço comum, até nos nomes.

O River nasceu com camisola branca, que a partir de 1905 ganhou a caraterística diagonal vermelha. Nesse mesmo ano nascia o Boca Juniors, fundado por emigrantes genoveses, («xeneizes» no dialeto local, alcunha ainda hoje utilizada). A típica camisola azul com risca horizontal amarela, só foi utilizada a partir de 1913, embora as cores do clube tenham sido escolhidas em 1907. Face à incapacidade de os dirigentes chegarem a um consenso, o presidente Juan Brichetto optou por deixar o destino decidir: o Boca escolheria as cores da bandeira do primeiro navio a chegar ao porto, no dia seguinte. O navio era sueco, e o resto é lenda.

Boca e River nasceram no mesmo bairro, mas só um lá permaneceu. Nas primeiras décadas de vida o River deambulou por vários bairros de Buenos Aires, antes de se fixar em Belgrano, zona mais endinheirada onde se localiza o Monumental, inaugurado em 1938. Daí para a frente, numa daquelas generalizações abusivas, colou-se-lhe o rótulo de clube dos «milionários», enquanto o Boca permaneceu como símbolo das classes populares.

Os anos de ouro

Foi a partir do aparecimento do profissionalismo no futebol argentino, em 1931, que a rivalidade entre Boca e River se acentuou, com as duas equipas a dividirem doze dos primeiros quinze títulos de campeão. Datam dessa fase alguns dos duelos mais lendários, como o de novembro de 1933, que deu o primeiro título profissional ao River (vencedor por 3-1), e que terminou com a polícia a levar preso o goleador do Boca Juniors, Varallo, por agressão a um defesa contrário.



A década de 40 marca, provavelmente, o período mais rico na história do River, graças ao contributo de «La Maquina», a famosa linha avançada de Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Lousteau, que contribuiu para quatro títulos em sete anos. Por essa altura, o Boca Juniors já tinha inaugurado a Bombonera, onde ainda hoje permanece.

Com ciclos de domínio alternados, e com a concorrência forte dos outros três grandes da Argentina (Independiente, Racing e San Lorenzo), o «superclásico» resistiu a tudo. Até a tragédias como a ocorrida em junho de 1968, quando 71 adeptos morreram esmagados no Monumental, devido ao bloqueio de uma porta, depois de um River-Boca que tinha terminado com um empate a zero.



Pelo meio, o Boca teve a glória de contar com fenómeno Maradona, que deixou como legado cinco golos em sete jogos frente ao River. Um deles, inesquecível, humilhando o guarda-redes Fillol, campeão do Mundo em título. Longe, ainda assim, dos números de Labruna, máximo goleador na história do dérbi, com 16 golos diante do Boca.

A importância de um Superclásico é tal que quem o decide ganha estatuto de herói, mesmo que o resto da carreira seja banal. Que o diga o ex-benfiquista Rojas, que ficará para sempre conhecido como «Vaselina», depois do chapéu com que coroou a vitória do River na Bombonera, por 3-0, no clássico de 2002, último a terminar com uma diferença de mais de dois golos.



O último 0-0 aconteceu em outubro de 2005, no dia das Mães. Meteu expulsões, erros de arbitragem e muita polémica, e o diário Olé não teve dúvidas em avançar com a manchete: «Pior do que bater na mãe». Daí para cá, houve sempre golos em mais 13 jogos oficiais, com seis empates, quatro vitórias do Boca e três do River.

Mais um sintoma de um equilíbrio histórico, que nem a recente despromoção do River Plate, em 2011 veio ameaçar. Sim, o Boca, única equipa argentina que cumpriu todas as temporadas no escalão principal, tem um pouco mais de vitórias, (72-66) e o River, nos últimos dez anos, só por uma vez festejou o título. Mas isso pesa pouco, numa história que acaba de entrar no segundo centenário. O segundo de muitos, certamente: se acham que é exagero, tentem ir a Buenos Aires e comprovem com os vossos olhos que não é.