Viveu a infância num país em guerra e aos 18 anos já jogava ao lado de Maldini, Pirlo, Kaká, Beckham, Ronaldinho Gaúcho… Agora, aos 26, Rodney Strasser tenta relançar a carreira no Gil Vicente da II Liga.

Ao MAISFUTEBOL, o médio da Serra Leoa recorda os tempos entre as grandes estrelas e fala dos desafios que tem pela frente na tentativa de, partindo de Portugal, voltar a percorrer todo o caminho na escalada de regresso até ao patamar mais alto do futebol europeu.

A entrevista é uma tranquila conversa a sós, junto ao relvado, no banco de suplentes, após um treino matinal no Municipal de Barcelos.

«Vim para o Gil Vicente para voltar a ser o que era» [parte 2 da entrevista de Rodney Strasser]

Antes de falarmos sobre o Gil Vicente e deste novo desafio na sua carreira, podemos começar pelas suas origens. Nasceu na Serra Leoa em 1990. Uma semana antes de completar 1 ano de idade, começou uma guerra civil no seu país, que durou mais de uma década. Isso marcou a sua infância?

A guerra era sobretudo fora de Freetown [capital], onde eu vivia. Via as notícias na televisão, mas mais tarde tive a guerra à porta de casa. Tinha uns 9 ou 10 anos, quando os rebeldes ocuparam parte da capital, os combates duraram uns dez dias até que os expulsaram da cidade. Eu era uma criança e, claro, sentia medo de ver aquilo a acontecer tão perto de mim. Felizmente, nenhum familiar meu foi atingido. Mas houve gente que eu conhecia da escola ou do meu bairro que foi afetada pela guerra.

A sua ligação ao futebol surgiu por via familiar?

Tenho quatro irmãos, todos rapazes, e nenhum se dedicou ao futebol, mas o meu pai jogava futebol e foi internacional A pela Serra Leoa. Não jogou em nenhum clube estrangeiro, até porque os tempos eram diferentes, mas representou o East End Lions, um dos grandes clubes do país, numa altura em que alguns dos bons jogadores do Gana, Nigéria e de outros países vizinhos vinham jogar para a Serra Leoa. Ele mostra-me fotografias desse tempo… Depois, com a guerra, tudo mudou. A economia ressentiu-se e o futebol perdeu força.

Qual era a ocupação dos seus pais?

Depois do futebol, o meu pai trabalhou como marinheiro. Fazia a faxina num navio, andava em alto-mar durante largos períodos. A minha mãe era cabeleireira.

Não é muito arriscado tentar adivinhar que, como qualquer miúdo em África, o Rodney começou a jogar na rua…

Jogava na rua e também pela minha escola. Na Serra Leoa dá-se uma grande importância à competição escolar. Até ganhámos o campeonato entre escolas.

Como começou a jogar mais a sério no Kallon FC, o clube fundado e presidido pelo Mohamed Kallon [antigo avançado do Inter de Milão]?

É um clube que funciona também como academia e tem parcerias com clubes italianos. Era um sonho ser como o Kallon e depois dali poder ter a oportunidade de ir para Itália ou Inglaterra… Ele é um ídolo na Serra Leoa. Foi o primeiro jogador a jogar num grande clube europeu, o Inter, e o segundo fui eu, no Milan. Mas houve outros jovens a saírem da academia no meu tempo que hoje são profissionais, como por exemplo o Mohamed Bangura, que esteve no Celtic e no AIK de Estocolmo e hoje joga na China. Há outros que jogam na Suécia, nos Estados Unidos…

Aos 17 anos foi então para Itália para representar a equipa jovem do Milan…

Sim, vencemos logo a Taça Primavera nesse ano de 2007. Já tinha colegas como o De Sciglio, que agora é lateral-direito da equipa principal.

O que fez com o primeiro salário no Milan?

Mandei dinheiro para a minha família, para amigos meus e para a minha igreja. Em África, é uma questão cultural. Sou anglicano, acredito em Jesus Cristo e em Deus, rezo muito. Ainda hoje, continuo a enviar dinheiro para casa. Construí uma igreja no meu bairro – Goderich, em Freetown – para a minha comunidade. A igreja tem um papel importante na sociedade, sobretudo na ajuda aos pobres e eu fico feliz por poder contribuir. Ajudar miúdos da rua, muitos deles órfãos, e quando vou lá distribuo roupa e comida. Foi assim que fui habituado.

Para um jovem que nunca saíra da Serra Leoa chegar a um clube como o Milan, passar a ter um salário elevado e viver em Itália foi um choque, não?

A cultura, a comida, o clima, tudo era diferente. E eu estava lado a lado com gente que tinha visto na televisão desde miúdo. Estreei-me com 18 anos e tinha a jogar comigo o Paolo Maldini, que estava a fazer a sua última época como futebolista. Ancelotti apostou em mim e pôs-me em campo e comecei ali a viver um sonho. Aliás, nem era preciso jogar, bastava estar sentado no mesmo balneário do que eles para o poder viver.

Strasser e o seu «pai» no Milan: Seedorf

Nessa equipa do Milan, em 2008/09, tinha a seu lado Maldini, Nesta, Pirlo, Seedorf, Beckham, Kaká, Ronaldinho Gaúcho, Inzaghi, Shevchenko…

Eram estrelas, mas tudo boa gente. Eu era um miúdo tímido, mas eles falavam comigo normalmente e tentavam ajudar-me, tanto dentro como fora de campo. Talvez por esse início, hoje, aos 26 anos sinto-me um jogador experiente.

Depois, já em 2010/11, quando começou a ser chamado à equipa com mais regularidade estavam na equipa Thiago Silva, Robinho, Ibrahimovic… O «Ibra» é mesmo irreverente no dia a dia?

Ele é boa pessoa e muito divertido, de facto. Quando jantávamos, sentava-se ao meu lado, como se eu fosse seu irmão mais novo, e pedia-me a comida. Eu tinha de comer sempre o mesmo que ele, mesmo que não quisesse. «Queres massa?», perguntava. Eu dizia que não. E ele: «Tragam massa também para o Strasser!» Zangava-se às vezes, mas era por querer vencer sempre. É por isso que as pessoas acham que ele tem mau feitio. Tem é uma personalidade forte.

E o Ronaldinho?

Ronaldinho? É o jogador mais tecnicista que já vi na vida. Fazia coisas inacreditáveis nos treinos. Nós ficávamos de boca aberta a vê-lo e ele reagia ao nosso espanto dizendo qualquer coisa do género: «Tenham lá calma. Isto é normal. Sou eu... O Ronaldinho!»

Cultivou uma relação especial também com o Seedorf, não foi?

Seedorf era como um pai para mim. Quando eu cheguei ao Milan, tão novo, só pensava «Isto é demais para mim». Cada treino era como uma aula. Aprendia com aquilo. Eles tinham tanta técnica que nem precisavam de correr. «A bola é que corre. Ela é mais rápida do que tu», dizia-me o Seedorf, que me dava muitos conselhos: como receber a bola, algo importantíssimo, o posicionamento, dizia-me como me comportar dentro e fora de campo. Enfim, tudo… É uma pessoa fantástica, que me ajudou muito. Mantenho boa relação com ele e também com o Thiago Silva, o Muntari, o Bojan Krkic, com quem era muito próximo. Agora, falamos sobretudo pelo WhatsApp.

A 6 de janeiro de 2011 marcou o golo decisivo (aos 85’) na vitória por 0-1 sobre o Cagliari… Foi importante para o título do Milan. Lembra-se bem desse momento, não?

Foi um dos golos mais importantes da temporada. Entrei e marquei a cinco minutos do final. Lembro-me bem, claro, e no Milan há sempre gente que faz questão de mo recordar ainda hoje.

Golo de Strasser ao Cagliari:

O que falhou em seguida para não se impor nesse Milan de Allegri?

Tive a oportunidade e tentei agarrá-la. Joguei, marquei, voltei a jogar… Mas o Milan tinha grandes jogadores no meio campo: Van Bommel, Gattuso, Pirlo, Ambrosini… Não era fácil para um jovem impor-se perante aquelas lendas. Sobretudo naquela altura, onde quem jogava eram os jogadores mais experientes. Penso que agora no futebol italiano estão a dar mais oportunidades aos jovens.

Depois foi emprestado ao Lecce…

Estava a jogar até que tive uma lesão grave no tornozelo após uma entrada dura do Arturo Vidal num jogo contra a Juventus. Na sequência disso, tive alguns problemas musculares. Mais tarde, fui para o Génova e desde então fui emprestado: Reggina, Parma, Livorno… Foram experiências diferentes do Milan, um clube maior, onde tudo era bem organizado. No Reggina, em 2013/14, estava a retomar a forma e foi aí que contraí uma lesão no ombro, tive uma intervenção cirúrgica e estive mais seis meses de fora…

Correu melhor a experiência no NK Zagreb onde jogou na época passada?

A Croácia foi uma boa experiência. Pela primeira vez, saí de Itália, gostei das pessoas e do país, o clube era muito profissional. Voltei a jogar 90 minutos e a recuperar a minha força e velocidade. O campeonato não era tão forte e o futebol era diferente, não tão tático, mas tecnicamente bastante bom. E agora aqui estou em Portugal e no Gil Vicente para jogar com regularidade  e ajudar a equipa a fazer ruma boa época.

Que objetivos ainda tem no futebol?

Espero regressar à seleção. Há mais de um ano que não jogo lá, devido à lesão que tive. Quero jogar em Inglaterra. Quando era miúdo via os jogos na televisão. Seria um sonho jogar lá um dia e ver toda a gente a acompanhar os meus jogos pela televisão no meu país, tal como eu fazia quando era criança.