«Quando eu nasci, Deus apontou em minha direção e disse: esse é o cara»
Romário de Souza Faria, em 2002

A 10 de março de 1999, nas comemorações do seu centenário, o Barcelona organizou um jogo de homenagem ao Dream Team de Johan Cruijff, que anos antes dera aos culés o seu maior ciclo de conquistas no século XX. Foi o pretexto para uma tentativa – falhada – de enterrar o machado de guerra entre o técnico holandês e o presidente catalão, Josep Luiz Nuñez, que em 1996 forçara a sua saída, e substituição por Bobby Robson.

Antes do jogo, entre o Dream Team, dirigido por Cruijff, e o Barcelona dessa temporada 1998/99, dirigido por Van Gaal (com Mourinho como adjunto) os jogadores do «velho» Barça foram chamados um a um ao centro do relvado, começando pelo velho capitão Alexanco, passando pelo «renegado» Michael Laudrup, até ao incontornável Stoichkov.

Depois chegou Cruijff, que dirigiu umas breves palavras ao público e outras ao seu grupo de jogadores. Havia uma ausência incontornável no círculo central e Cruijff assumiu-a de imediato, enquanto o écran gigante passava imagens dos melhores golos dos anos 90/94: «Falta Romário. O melhor de todos».

O elogio ganha proporções enormes ao ser dito por alguém com o ego do holandês – a personalidade mais influente do futebol mundial na segunda metade do século XX. E essa não foi a única vez: apesar dos inúmeros atritos que mantiveram durante a breve passagem de Romário pelo Barcelona – como é possível meter tanta história em apenas ano e meio? – Cruijff voltaria a dar mostras de uma invulgar humildade a propósito do avançado brasileiro: «É o único jogador acerca do qual admito ter-me enganado. Sempre lhe disse que com o estilo de vida que tinha não poderia durar muito no futebol. E no entanto jogou até aos 40, e foi sempre capaz de render nos jogos importantes», afirmou numa entrevista ao semanário belga Humo, em 2011.



O desabafo vem a propósito da decisão de ter deixado Romário sair do Barcelona em janeiro de 1995, apenas seis meses depois de ter levado o Brasil ao título mundial e um mês depois de ser consagrado, em Lisboa, com o prémio anual da FIFA para melhor jogador do planeta. As noitadas sucessivas, a incapacidade para aceitar reprimendas e os conflitos com alguns colegas de equipa – entre os quais o intratável Stoichkov, que por mais de uma vez acusou Romário de «nunca ter voltado do Mundial» - fizeram com que o Barcelona abrisse mão, voluntariamente, daquele que foi, a par de Ronaldo, o melhor avançado da década de 90. Ninguém o suspeitava ainda, mas esse seria também o canto de cisne do primeiro  dream team.

Génio com todas as letras

Esta introdução, maior do que o habitual, serve para dar o contexto a quem não teve o privilégio de acompanhar Romário em ação, em tempo real. Basta dizer que depois de Maradona, e antes de vermos Messis, Neymares e Ronaldos fazerem o impossível, semana sim semana sim, Romário foi o mais parecido com um génio que se viu à solta num campo de futebol.



Se é preciso procurar um golo ou uma data para o ilustrar, sejamos tão específicos quanto possível: vamos diretos ao Nou Camp, a 8 de janeiro de 1994, seis meses antes de Romário conhecer a glória suprema, no Mundial dos Estados Unidos. O contexto não era o melhor: em dezembro, o Barcelona tinha perdido a Supertaça para o Real Madrid (3-1 e 1-1), com Romário a passar ao lado dos seus primeiros clássicos e os merengues, liderados por Michel, a fazerem uma volta de honra humilhante em pleno Camp Nou.

Apenas uma semana antes, no primeiro jogo de 1994, a equipa de Cruijff tinha perdido em Gijón (2-0), sofrendo a quinta derrota na Liga, um registo que deixava o título assustadoramente longe. A quebra de forma de Romário – cinco jogos seguidos sem marcar - coincidia com as festas de natal. E, apesar dos 16 golos que já somava em 17 jornadas, o brasileiro – cujo roteiro noturno em Barcelona era bem conhecido de todos os adeptos culés - começava a ouvir críticas pela falta de empenho e profissionalismo.

Estavam, enfim, reunidas as condições para uma tempestade perfeita, que neste caso se desencadeou ao 24º minuto. Como habitualmente, nas equipas de Cruijff, o jogo estava a ser construído com paciência, da direita para o meio. Ferrer tocou para Amor, que viu Guardiola avançar, com espaço pelo centro. O médio fez o que fazia sempre, aquilo que lhe permitia ser o tradutor principal em campo das ideias do guru holandês: pensou mais rapidamente que colegas e adversários, levantou a cabeça e viu Romário com espaço, numa zona de ninguém entre o central, Alkorta, e o lateral direito, Paco Llorente.



Esta câmara regista o lance nas costas da defesa merengue. E mostra, num único frame, o movimento de braços que Romário faz, apontando para o chão, a explicar onde quer a bola. Isto deixa a sugestão, vagamente inquietante por tudo o que implica quanto a rapidez de raciocínio, que Romário já tinha o lance desenhado na cabeça, antes mesmo de o discreto Guardiola lhe fazer o discreto passe estritamente necessário para pôr a máquina em funcionamento.

O que Romário fez a seguir tornou-se um momento de eternidade. Beneficiando do facto de a marcação de Alkorta lhe dar espaço para rodar para a esquerda, o brasileiro aplicou uma das suas especialidades: no Brasil chamam-lhe o drible rabo de vaca, pela forma como a perna enrola o movimento, fazendo lembrar a forma como as vacas usam a cauda para sacudir moscas.



Assim que o passe de Guardiola lhe chegou, Romário envolveu a bola no pé direito, como num stick de hóquei e rodou 180 graus enquanto Alkorta, tentava processar demasiada informação em simultâneo para decidir o que fazer. Foi um daqueles nós cegos que marcam, para sempre, a carreira de um jogador. E isto porque Romário, ganhando o espaço necessário para ver a baliza de Buyo, foi ainda mais rápido a escolher o tipo de finalização, antecipando a saída do guarda-redes: um característico toque com o bico do pé direito, que com toda a desfaçatez do mundo fez a bola aninhar-se lentamente no canto esquerdo da baliza merengue.

Depois, Romário saiu pela linha de fundo, para comemorar, com a arrogância anunciada pela epígrafe deste texto. Assim que nasceu, o golo foi esfregado, não tanto na cara dos adeptos merengues, mas mais dos seus próprios adeptos, pelos menos todos aqueles que o criticavam – porque os génios se alimentam de quem duvida da sua existência.

A história podia acabar aqui, mas não acabou: inspirado pelo rabo de vaca de Romário, o Barcelona embalou para uma segunda parte de sonho, com um livre de Koeman, mais dois golos do brasileiro e um anexo do suplente Ivan Iglesias a construirem a maior goleada sobre o rival em 20 anos de clássicos. 5-0 e ponto de viragem na temporada, rumo ao tetracampeonato, com Romário como estrela e pichichi (30 golos na época de estreia).



Acreditam em coincidências? A  manita anterior ao Real datava de fevereiro de 1974, em pleno Santiago Bernabéu, e tivera outro glorioso protagonista. Um avançado insaciável chamado Johan Cruijff, então com 27 anos, e também ele a caminho de um Mundial inesquecível. Vinte anos depois, no banco dos treinadores, Cruijff via a sua equipa, alimentada a golpes de Romário seguir-lhe as pisadas. Com um enfeite de rabo de vaca, após um passe de Guardiola, um médio, que antes de ser treinador já o era.



16 anos passados, seria o mesmo Guardiola a comandar, no banco de treinadores dos catalães, outra manita célebre ao Real Madrid. A equipa era um segundo  dream team, cujo destino histórico seria destronar o primeiro nas memórias dos adeptos de todo o mundo. No banco, tinha Guardiola a fazer de Cruijff treinador. No campo, Xavi fazia de Guardiola jogador, e Messi fazia de Romário, que por sua vez, em 1994, tinha feito de Cruiff-jogador. Quando vos disserem que isto anda tudo ligado, não duvidem: lembrem-se de Alkorta, de Romário e do drible rabo de vaca.