O que deve uma equipa fazer quando não tem uma máquina goleadora como referência no eixo de ataque? A questão é quase tão velha como o próprio futebol, mas recupera pretexto de atualidade de tempos a tempos. Lá por fora, por força das conquistas sem ponta de lança do Barcelona e da seleção espanhola na última década, ou do papel de 9 altruísta atribuído a Benzema no Real Madrid, entre outros exemplos. E particularmente no futebol português onde, desde a formação, se olha para pontas de lança clássicos como membros de uma espécie exótica, pontualmente avistados em planícies remotas por olheiros incrédulos.

Reduzida à expressão mais simples (« o que deve ser um 9?») a pergunta esteve na base de uma das mais importantes revoluções táticas da história do futebol, a transição do WM para o 4x2x4. Mas são poucas as revoluções que, como esta, podem ser condensadas num só jogo e, melhor ainda, ilustradas com um só lance. Rufam os tambores, abrem-se as cortinas e Nandor Hidegkuti é chamado ao palco. 

 

O desenho de uma revolução

No futebol dos anos 50 as coisas mudavam muito mais lentamente do que nos nossos dias: a informação demorava a circular, a TV dava os primeiros passos, vídeo e internet ainda eram do terreno da ficção científica. Por isso, a última grande revolução tática, a criação do WM, tinha-se mantido quase intocada durante mais de 20 anos. A arrumação das equipas fazia-se segundo esta fórmula praticamente universal:



O número 9, referência de ataque, encaixava diretamente no número 5 adversário. E como toda a gente jogava da mesma forma, a superioridade ganhava-se pela robustez e pela capacidade física. Na cruel definição do jornalista inglês Brian Glanville, o avançado-centro, preso à área e ao seu marcador, estava transformado num «touro cego e obstinado no seu curral».

Em 1953, Nandor Hidegkuti tinha 31 anos e estava a reinventar-se como jogador. A idade começava a notar-se na perda de velocidade e de disponibilidade para o choque, que o tornavam inadequado para os papéis habituais de avançado-centro ou extremo. O primeiro a pensar no problema foi o seu treinador no MTK, Marton Bukovi, que não queria ficar sem a inteligência e o toque refinado do seu número 9.

A solução encontrada fez com que Hidegkuti passasse a jogar mais atrás, bem fora da área, atraindo o seu marcador e abrindo espaço para a entrada dos dois interiores, os números 8 e 10 no WM. O sucesso da receita fez com que o selecionador da Hungria, Gustav Sebes, a transpusesse para a equipa nacional, resolvendo assim a falta de um avançado fisicamente poderoso, e disposto a passar os 90 minutos aos choques e cabeçadas com o seu marcador direto. A transformação tática desenhada por Bukovi e Sebes tirava o touro do curral e fazia dele um pensador.

Ganha a superioridade numérica no ataque, faltava garanti-la também na área defensiva. Isso era feito com o recuo de um dos médios, que na prática formava uma linha de quatro com os outros defesas. Em vantagem nas duas áreas, a Hungria podia em seguida dar-se ao luxo de entregar a condução do jogo aos seus dois médios, por duas razões. A primeira, uma condição física muito superior à da concorrência, com destaque para uma sessão de aquecimento revolucionária para a época, que lhe permitia esmagar o adversário nos minutos iniciais. A segunda, antecipando o carrossel de Ajax e Holanda na década de 70, a enorme inteligência e fluidez de movimentos dos seus jogadores ofensivos. Virtudes cultivadas em incontáveis sessões de treino, tornadas possíveis por um calendário «à medida», graças à ligação direta da «Magyarorszag» e dos maiores clubes, o MTK e, principalmente, o Honved, às autoridades políticas e ao exército.



Lição em Wembley

A 25 de novembro, a seleção inglesa, ainda invicta em casa perante seleções do continente, recebeu em Wembley a sensação do momento. A Hungria, campeã olímpica em título, não perdia um jogo desde 1950. E, em maio, a vitória por 3-0 sobre a Itália, em Roma, sublinhava uma superioridade sobre as outras seleções que só a Inglaterra parecia em condições de desafiar.

No magnífico livro «The Ball is Round», David Goldblatt recorda a piada dita por Billy Wright, capitão da Inglaterra, ao ver as botas leves, cortadas abaixo do tornozelo, que os húngaros usavam: «não deve haver problema, rapazes, eles nem equipamento em condições trouxeram». O choque entre tradição e modernidade poderia ser condensado nesta pequena história, mas o que aconteceu logo de seguida relegou-a para segundo plano: apenas 45 segundos depois do pontapé de saída, a passe de Boszik, Hidegkuti, o touro saído do curral, abriu o marcador com um remate colocadíssimo à entrada da área, enquanto o seu marcador hesitava entre sair e ficar.

O que aconteceu depois está nos livros. A Hungria passeou em campo uma superioridade absoluta, física, técnica, mas principalmente táctica, a aproveitar a lógica implacável da sua organização em campo. Um, dois, três, cinco, seis golos até a Hungria tirar o pé do acelerador e transformar a meia hora final num exercício de posse e circulação, ainda mais humilhante para os autointitulados donos do futebol. O festival é fácil de ver online – há mais do que uma versão integral do jogo no Youtube, e vale a pena dedicar-lhe alguns minutos. Quanto mais não seja pelo raro privilégio de podermos ver passado e futuro, frente a frente, em simultâneo, num relvado de futebol.



Mas a lição não ficaria completa sem o golo que lhe pôs o ponto de exclamação, o golo que nos trouxe aqui, o terceiro golo de Hidegkuti nessa tarde que o seu marcador, Harry Johnston, descreveu nas memórias como a «tragédia da total impotência para mudar o que quer que fosse».

Estavam decorridos 53 minutos, e a Hungria, a vencer por 2-5, divertia-se a sufocar a Inglaterra no meio-campo desta. Hidegkuti começa o carrossel, e toca para o lateral Buzanszky, que se tinha juntado ao ataque. Sobre a direita, Boszik faz a tabelinha e desloca-se para a lateral, levantando a cabeça para ver a frente de ataque da sua equipa tomar de assalto a área inglesa, pela enésima vez. Faz um cruzamento largo, na direção do extremo Budai que, respeitando o movimento do companheiro, tinha ido para a posição central. A cinco metros da meia lua, saltando sem oposição, Budai toca de cabeça, para trás, na direção da linha, onde Czibor lhe imita o movimento, com uma torção de pescoço que leva a bola na direção de Puskas, sempre sem tocar no chão.

O «major galopante» tinha um gostinho especial em humilhar adversários: na primeira parte, tinha marcado o 3-1 depois de deixar Ramsey sentado na linha de fundo, com uma finta audaciosa. Agora, Puskas decide transformar um ataque em obra prima: recebe na ponta do pé esquerdo, ajeita no peito e, aproveitando o tempo e espaço, deixa a bola bater na relva de Wembley, por uma vez. Depois, com a parte de fora do pé esquerdo, numa meia trivela, inventa um passe em chapéu para as costas de Dickinson.

É aí que aparece Nandor Hiedgkuti, o homem que está e não está, o homem que aparece quando não se espera, o avançado que foge da área para chegar à hora certa, no ponto de chegada do passe luminoso de Puskas. O homem que fuxila de primeira, sem deixar cair no chão, o touro que aprendeu a pensar e remata da maneira mais exuberante esta faena de 15 toques em 21 segundos.

Passaram 61 anos, e continua a haver muitas maneiras de responder à pergunta que lança este texto, «o que deve ser um 9?». Não duvidem disto, porém: a 25 de novembro de 1953, Nandor Hidegkuti já as conhecia a todas. A prova está aqui.