A carreira de Roberto Baggio no futebol sénior italiano começou em 1983, com 16 anos, no Vicenza, e terminou em 2004, no Brescia. A de Andrea Pirlo, iniciada em 1995, no Brescia, terminou no verão de 2015, ao trocar a Juventus pelos dólares da MLS. De um extremo ao outro há 32 anos, com duas mãos bem cheias de títulos e troféus, que escrevem boa parte da história do futebol italiano – e europeu – desse período. Pelo meio, houve um curto parêntesis em que essa história foi escrita em conjunto. O golo desta semana – o primeiro desta rubrica a ter dupla assinatura – é a demonstração perfeita da magia que pode nascer da colaboração entre dois artistas.

O primeiro encontro

A primeira vez que os trajetos de Roberto Baggio e Andrea Pirlo se juntaram no mesmo lado da barricada foi a 12 agosto de 1998. Jogava-se um anónimo Inter-Skonto Riga, pré-eliminatória da Liga dos Campeões. A vitória do Inter, por 4-0, não teria razão de ser referida aqui, a não ser pelo facto de o quarto golo nerazzurro ter sido o primeiro de Baggio com a camisola do Inter. Era o seu quinto clube na série A, depois de Fiorentina, Juventus, Milan e Bolonha. O golo aconteceu aos 59 minutos e mereceu ovação de pé dos 20 mil espectadores.

Cinco minutos depois, Baggio, que tinha feito as assistências para os outros três golos, saiu para recolher outra ronda de aplausos. No seu lugar, também em estreia com a camisola do Inter entrou um miúdo de 19 anos, chamado Andrea Pirlo que o Inter tinha acabado de contratar ao Brescia.

Mais velho 12 anos, o «divino codino» era o professor ideal para fazer evoluir Pirlo, já então considerado o mais talentoso jogador da sua geração. Acresce que a par de Lothar Matthäus, Baggio era um dos ídolos de infância de Pirlo, como assumiu na sua autobiografia Penso, logo jogo.

Ainda bem que o meu quarto era grande. Assim cabiam os posters dos dois e eu não tinha de escolher qual dos meus deuses tirar do Olimpo

Pirlo, sobre a admiração na infância por Baggio e Matthäus

 

A substituição de Baggio por Pirlo tornou-se um hábito nessa temporada de má memória, ao longo da qual o Inter triturou quatro treinadores para terminar num embaraçoso 8º lugar. E, num clube com tantas convulsões, a vida de um jovem candidato a fantasista tornou-se ainda mais complicada do que o normal na série A. Assim, quando Marcelo Lippi chegou ao Inter, no verão de 1999, não demorou a avisar Pirlo: «Acredito muito em ti, mas para o teu bem precisas de rodar e ganhar experiência noutro lado». Pirlo fez as malas, foi para a Reggina e a parceria com o ídolo de infância ficou adiada por mais ano e meio.

A solução de Mazzone

No ano seguinte, após mais uma temporada de insucesso do Inter, Baggio rumou ao Brescia, última etapa numa carreira em declínio. Quanto a Pirlo, voltou a Appiano Gentile para reencontrar um filme conhecido. Já sem Lippi para acreditar nele, ao fim de seis meses e apenas cinco presenças como suplente, implorou ao seu agente, Tullio Tinti: «Tira-me deste manicómio! Para mim, o Inter acabou de vez. Arranja-me outro clube, qualquer um». Em janeiro de 2001 voltou às origens: no Brescia, podia juntar-se novamente a Baggio e, de passagem, cruzar-se com o homem que viria a mudar-lhe a carreira: Carletto Mazzone.

Recordista de jogos na Série A (795 em 38 anos de carreira) Mazzone era um homem pragmático. Não receava apostar em jovens, muito menos num filho da casa, como Pirlo. Mas tinha um problema: fora ele a convencer Baggio a ir para Bresciacom a promessa de total liberdade para jogar naquele registo habitual de «nove e meio», entre o ponta-de-lança e o meio-campo. O espaço para conciliar dois fantasistas era reduzido, ainda mais numa equipa do meio da tabela, que na maior parte do tempo tinha de jogar em contra-ataque.

Quando, em fevereiro desse ano, Baggio voltou de uma lesão, do alto do seu 1,90 m, Mazzone apresentou a Pirlo a solução para encaixar os dois talentos no onze: recuar 20 metros no terreno, deixando a fantasia a cargo de Baggio e empunhando a batuta a meio-campo. A visão de Pirlo e, principalmente, a sua precisão no passe longo, transformavam a posição 6 na principal referência de construção do Brescia. O ensaio geral, a 25 de fevereiro, traduziu-se num belo empate (2-2) em Florença, com Baggio a bisar e Nuno Gomes a marcar pelos viola. As novas funções de Pirlo iriam tornar-se numa das realidades mais importantes do futebol italiano na viragem do século.

O golo

Somando as duas passagens, por Inter e Brescia, os talentos de Baggio e Pirlo não coincidiram no relvado em mais do que uma quinzena de jogos. E foi no penúltimo, a 1 de abril de 2001, que a magia aconteceu. Cenário: o estádio delle Alpi, onde Baggio viveu os anos mais gloriosos da carreira. Jogava-se a 24ª jornada e a Juventus, que perseguia a líder Roma na tabela, ia vencendo por 1-0. Faltavam apenas quatro minutos para o fim quando uma bola dividida por Zambrotta e Kozminski sobrou para à entrada do círculo central. Treinada por Ancelotti (outro Carletto fundamental na carreira de Pirlo), a Juventus não resistiu aos velhos hábitos: recuou muito, demasiado, para defender a vantagem magra. Isso explica que ninguém tivesse saido a pressionar Pirlo, que teve todo o tempo do mundo para dar dois toques de pé direito, ajeitando a bola, e, de cabeça bem levantada, perceber a movimentação de Baggio, lá na frente. O terceiro toque foi um passe longo, feito logo após a linha do meio-campo, um lançamento teleguiado com aterragem marcada para a linha da área – o pé direito de Pirlo estava num corpo de 21 anos, mas já transportava décadas de sabedoria. O passe percorreu precisamente 36 metros, demorando menos de quatro segundos a unir 32 anos de talento e inteligência no mesmo movimento.

A parte final do trajeto foi assegurada pelo velho Baggio, e os seus 34 anos de pura classe. Tudo começou na telepatia que lhe permitiu antecipar o local de aterragem – e encontrar o ponto de fuga na desmarcação, aproveitando o espaço entre Tudor e Ferrara. Depois veio o momento do contacto, e podia escrever-se um poema épico só a pretexto da receção orientada, com a ponta do pé direito, que lhe permitiu, num único toque, amortecer a bola, encaminhá-la para a sua esquerda e deixar fora do lance os 197 centímetros de Edwin van der Sar. Bastaria um desvio de centímetros, uma hesitação no controlo, para transformar este lance numa impossibilidade. Mas é tudo perfeito, tudo subtil, tudo na medida exata. Incluindo o toque final de pé esquerdo a fazer o empate que, viria a saber-se mais tarde, acabou por custar à Juventus o título de campeão, perdido por dois pontos para a Roma.

Epílogo

Pirlo e Baggio voltariam a jogar juntos, uma última vez, a 28 de abril de 2004. Foi a única ocasião em que alinharam em conjunto pela seleção italiana: Baggio tinha anunciado o adeus aos relvados no final dessa época e Giovanni Trapattoni decidiu chamá-lo para a consagração, dando-lhe uma despedida à altura, cinco anos depois da última presença na azzurra.

O último jogo de Baggio na «squadra azzurra»

O empate com a Espanha (1-1) na preparação para o Euro-2004 foi o último elo a ligar dois mágicos separados por doze anos. Ou tavez não o último. Porque doze foram também os anos a separar o penálti falhado por Baggio, na final perdida do Mundial 1994, e o penálti convertido por Pirlo, na final ganha do Mundial 2006. Mas certo, certo, é que nenhuma outra passagem de testemunho ficou perpetuada por um golo tão bonito como o que Pirlo marcou com o pé de Baggio e Baggio marcou com a cabeça de Pirlo.