Que Juary Jorge dos Santos Filho me perdoe mas, dos dois golos que Madjer marcou ao Bayern na final de Viena, sempre preferi o segundo. Sim, eu sei que o texto ainda agora começou e, com esta frase, já ultrapassei largamente a margem razoável de distorção histórica. Mas aprendi com um mestre, Carlos Pinhão, que neste caso levava a liberdade criativa ainda mais longe: «O melhor golo dessa final foi o do Futre, em que ele passou por quatro alemães», teorizava. «Mas esse não foi golo», contrapunha o materialista de serviço. A resposta vinha definitiva, como um smash junto à rede: «Para mim, foi».

Quem se lembra da final da Taça dos Campeões de 1987 deve concordar. Nesse lance , Futre marcou um golo ao retardador: depois do remate a bola demorou quase 20 minutos a entrar na baliza. Mas vem daí a inspiração de Tarantino para o final de Kill Bill : a técnica dos five point palm exploding heart em chuteiras já tinha destroçado os alemães para o resto do jogo.

E é altura de voltarmos, novamente com o perdão de Juary e dos livros de registos, aos dois golos de Madjer nesses 13 minutos finais. Sobre o primeiro, o calcanhar mais famoso do futebol europeu, passamos rapidamente, porque há pouco de novo a dizer: já teve direito a milhares de textos, uma marca de perfume («Tallonade»), inúmeras reportagens e até uma
performance muda de um artista suíço.

Acima de tudo, como o penálti de Panenka, ou o moinho de Negrete, o calcanhar de Madjer ganhou a lugar na história com nome próprio, como sublinhava o autor da proeza em declarações ao Maisfutebol, por ocasião do aniversário da final: «Sempre que alguém marca um golo de calcanhar é o do Madjer que está ali presente. É um golo que faz parte da história mundial» . E é verdade: pela importância, pelo contexto, pelo inesperado, é um dos golos mais lembrados das últimas décadas, bem para lá de Portugal.

Mas é também, se virem bem, um golo imperfeito: porque o cruzamento de Juary, prensado contra o pé de Pfügler, dá à bola uma trajetória imprevista, obrigando Madjer a improvisar. E, principalmente, porque a finalização, a única possível naquelas circunstâncias, diz mais sobre a rapidez de raciocínio do que sobre a qualidade técnica e o talento do seu autor: um jogador mediano, desde que lúcido, teria sido capaz de marcar esse primeiro golo. Já o movimento que precede o segundo, dois minutos mais tarde, é puro génio.


Madjer com a palavra, nessa evocação da final, feita em tempos para o Maisfutebol : «A seguir ao 1-1, os colegas atiraram-se sobre mim e naquela fase do jogo o desgaste era imenso. Com a perna dobrada, fiquei com cãimbras e tive sair, para receber assistência na linha lateral» . Nesse intervalo de tempo, o FC Porto sente ter o ascendente o Bayern desorienta-se. O suficiente para se esquecer do argelino, ou pelo menos para lhe dar demasiado espaço na esquerda, quando reentra.

Na Alemanha, por essa altura, escreveu-se que Madjer tinha reentrado no relvado do Prater sem autorização do belga Alexis Ponnet, algo que o argelino sempre refutou: «O jogo não parou e, quando já estava totalmente recuperado, o árbitro fez-me um sinal com o braço para eu entrar. Foi nessa altura que o Celso passou a bola para a linha»

Esta é altura de fazer uma pausa na descrição, porque o que Madjer tem para dizer sobre isto não faz justiça aos segundos que se seguem. Já as palavras de Paulo Futre, ditas no programa que teve na
TVI 24 , são muito mais adequadas para explicar o que está para chegar: «Madjer foi o jogador mais completo com quem joguei. Era forte com o pé direito, com o pé esquerdo, com a cabeça. Nunca podias antecipar o que ele ia fazer».

É exatamente o que se passa nesse instante com o lateral direito do Bayern, Winklhofer: quando Madjer recebe o passe longo e embala, com uns imprudentes sete ou oito metros a separá-lo do seu marcador, o argelino conduz a bola com a parte exterior do pé direito. Tudo no seu corpo sugere que vai cortar para dentro e procurar ângulo de remate com o seu pé preferido, e é isso que Winklhofer antecipa, fixando posição para lhe fechar o espaço.

Mas os quatro primeiros toques de Madjer foram simples manobra de diversão: serviram para ganhar velocidade e pôr Winfklhofer do lado errado da história. Os quinto e sexto toques de pé direito, dados numa sucessão vertiginosa, são os que transformam esta jogada em lenda: costuram o espaço junto à linha da grande área, adiantam a bola o suficiente para evitar o carrinho desesperado de Nachtweih e para preparar o cruzamento de pé esquerdo – que, como lembrava Futre, era tão preciso como o direito.




O epílogo desta história é de Juary, claro: começou a acompanhar a corrida de Madjer, pelo corredor central, e sprinta a tempo de se encontrar com o destino, projetando-se no ar para intercetar o cruzamento com a parte de dentro do pé direito. O desvio tira a bola do caminho de Pfaff e levanta-a um pouco mais do que o previsto. Mas não o suficiente para o impedir de marcar o golo mais importante da sua carreira: o golo número um da vida de Juary, o golo número dois de Madjer em Viena.