Alguns colecionadores de banda desenhada poderão lembrar-se de uma curta série de aventuras de futebol, criada no início da década de 70, pelo espanhol Jesus Blasco. Chamava-se «O Fantasma do Forest» e, como o título sugere, tinha como herói um fantasma. Mais precisamente, J.R. Phantom, melhor jogador da história do Rustford Forest: mesmo tendo morrido há muitas décadas, não resistia a voltar à ação e ajudar a sua antiga equipa, sempre que uma velha bola do século XIX era pontapeada, em jeito de chamamento.

J.R. Phantom era invisível, o que lhe permitia contornar as regras. Ora fazia defesas impossíveis, ora desviava para a baliza adversária remates que pareciam destinados à bandeirola de canto: uma espécie de doping imaterial, não previsto nos regulamentos, ou de antepassado do Sobrenatural de Almeida, de que falava Nelson Rodrigues.

O que os conhecedores de banda desenhada provavelmente não sabem é que, 25 anos depois de sair do aparo de Jesus Blasco, J.R. Phantom ganhou existência própria, deixando de ser uma personagem de ficção. Aconteceu entre 1996 e 1997: numa inédita transferência do além o fantasma passou a vestir a camisola do Barcelona e ganhou o nome terreno de Ronaldo Nazário de Lima.

«Parece-se um pouco com um marciano»

Foi há 20 anos e agora que Messi e Cristiano Ronaldo nos habituaram a recordes e proezas estratosféricas, semana a semana, em épocas consecutivas, torna-se difícil explicar, a quem não viu, até que ponto aquele Ronaldo, ainda magrinho, parecia vindo de outro planeta.

Transferido do PSV por 20 milhões de dólares, ainda antes de completar 20 anos, integrou-se rapidamente no Barcelona mais aportuguesado de sempre (Vítor Baía, Fernando Couto e Figo, Mourinho como adjunto de Robson). Bastou um jogo, um jogo apenas, para acabar com as dúvidas que pudesse haver: na estreia, a 25 de agosto com o At. Madrid, marcou dois numa goleada de 5-2 que valeu a Supertaça.

Jogar na Liga espanhola ou no campeonato mineiro, para ele, era a mesma coisa: Ronaldo passou por setembro em velocidade de Cruzeiro, com sete golos em seis jogos, incluindo dois à Real Sociedad, em dia de aniversário. Mas foi em outubro que os adjectivos começaram a esgotar-se. Primeiro, no dia 12, em Santiago de Compostela, terra de milagres e peregrinos, houve ISTO numa goleada por 5-1. 

As mãos na cabeça de Bobby Robson – o homem, não o esqueçamos, que já tinha estado no banco da equipa que sofreu o golo de Maradona em 1986 - foram o maior sinal de que algo de sobrenatural estava a acontecer em Barcelona. O golo na Galiza desencadeou uma chuva de elogios e comparações, tanto no Brasil como em Espanha.

O brasileiro Tostão, das poucas vozes autorizada para invocar os deuses, foi direto ao assunto: «Nunca vi um talento tão natural. Faz golos como Pelé mas dribla como Garrincha». Jorge Valdano, recém-saído do comando do Real Madrid, foi mais elaborado ao definir uma potência explosiva sem paralelo no futebol mundial: «É um trator com motor Ferrari e golo incorporado. Parece-se um pouco com um marciano», resumiu.

Cinco toques, seis segundos

Apenas duas semanas depois do jogo de Compostela, a 26 de outubro, o Barcelona recebia o Valencia. O público culé ainda estava dividido no apoio à equipa de Robson, por causa do processo que, um ano antes, levara à saída de Cruijff e à entrada do técnico inglês. Mas as diferentes tendências uniam-se quando o tema era Ronaldo: por essa altura já era claro que nunca, desde Maradona, um talento tão arrebatador tinha vestido de blaugrana. Nem mesmo heróis da era Cruijff como Romário, Stoichkov e Laudrup.

Nessa tarde-noite, dois passes de Figo proporcionaram as primeiras acelerações impossíveis do marciano de dentes saídos: 15 minutos, arrancada e golo de Ronaldo. 35 minutos, arrancada e golo de Ronaldo. Mas demasiada felicidade não dá bons épicos. E este, que (spoiler alert!) termina com uma aparição do fantasma, tem o necessário contratempo nos problemas defensivos do Barça, que na segunda parte consentiu dois golos de rajada a Ferreira (52 minutos) e Karpin (58).

Por alguns minutos, o Camp Nou esqueceu-se de Ronaldo e fixou-se na desconfiança para com Robson. Mas, por volta do minuto 73, talvez alguém tenha pontapeado a tal bola do século XIX que trazia J.R. Phantom de volta ao mundo dos vivos. Porque, 20 anos depois, continua a ser essa a explicação mais plausível para o que aconteceu depois de Popescu fazer um desarme a Poyatos no círculo central.

Por um brevíssimo instante a trajetória da bola fica a meio caminho entre os dois cabeças rapadas do Barça: de um lado Ronaldo, do outro Ivan de La Peña, o pequeno Buda. Às vezes, a maior sabedoria consiste em sair da frente e é precisamente o que faz De La Peña, no seu único – mas valioso - contributo para esta história.

Porque a partir daqui é apenas de Ronaldo que se trata. O primeiro toque, de pé direito, ainda não tem nada de sobrenatural: apenas serve para pôr a chave na ignição do trator-Ferrari: a aceleração instantânea chega para desequilibrar toda a estrutura do Valência. Depois, há quatro homens de camisola branca à volta do Fenómeno. Ferreira vem atrasado e, para bem do futebol, deixa passar o único momento em que poderia ter adiado o inevitável com uma falta violenta. E façamos uma pausa para agradecer mentalmente a decência de Ferreira (ou talvez a sua falta de pernas) antes de prosseguirmos.

Com Engonga a correr pelo lado de fora, como quem procura um atalho, Ronaldo dá mais dois toques de pé direito para embalar. Segue direito aos outros dois homens que o aguardam: Escurza de um lado, Otero do outro. Por esta altura, a aceleração do trator já assusta qualquer transeunte, e os defesas do Valencia tomam a opção mais lógica: juntam esforços e ombros, criando uma parede instantânea, onde o Ferrari parece condenado a esborrachar-se. E é então que J.R. Phantom decide o jogo para o Barcelona: vejam, frame a frame, o que acontece depois de Ronaldo dar o único toque de pé esquerdo nesta jogada. Vejam como, por uma fração de segundo, ele se torna invisível e passa através da parede, para reaparecer metro e meio mais à frente e bater Zubizarreta com o quinto e último toque na bola.

Passaram apenas seis segundos desde que Popescu fez o desarme, mas é tempo mais do que suficiente para se construir um golo imortal. O mais fantasmagórico dos 47 que Ronaldo marcou nos seus 49 jogos dessa temporada. Depois, no verão, uma birra de contratos levou-o a trocar o Barcelona pelo Inter, que bateu a cláusula de 32 milhões fixada pelos catalães. Ronaldo nunca mais foi magro e o fantasma de J.R. Phantom deixou o Camp Nou, voltando seis anos depois, nos pés mágicos de outro Ronaldinho com dentes saídos. Mas essa já é outra história.

Veja aqui os outros golos no hat-trick do fantasma.