Há momentos que nos fazem crescer. Momentos em que, indo contra os hábitos de uma vida, tomamos uma decisão oposta à que sempre tomámos até aí – e por virarmos à esquerda, em vez de escolhermos a direita, tudo à nossa volta ganha um rumo diferente. O golo desta semana é um momento desses, contado na primeira pessoa. Aconteceu há dez anos, a 20 de junho de 2004, mas deve começar a ser contado muito antes. Quatro anos antes, para sermos rigorosos.

Portugal está a fechar o Euro-2000, com a acidentada derrota na meia-final de Bruxelas, diante da França. Então com 23 anos, Nuno Gomes tinha confirmado o estado de graça nesse Europeu, marcando o golo português com um belo movimento de rotação e um tiro inesperado de pé esquerdo. Mas a história acabou mal, já o sabemos, com o penálti cometido por Abel Xavier. De cabeça quente, e incitados pelos protestos veementes do lateral, que não admitia ter tocado a bola com o braço, os jogadores portugueses rodeiam o austríaco Gunter Benko e o auxiliar eslovaco Igor Sramka. O que se segue não é bonito de ver. Como consequência, quatro dias mais tarde, três jogadores (Paulo Bento, Abel Xavier e Nuno Gomes) são suspensos das competições internacionais entre seis e nove meses.

Nuno Gomes
«Nesse Europeu tudo me saía bem, mas perdi um pouco o comboio da seleção com essa suspensão. No Mundial 2002 quase não joguei, depois em 2003 fui operado ao tornozelo, estava a voltar e não podia exigir muito. O Pauleta fixou-se como titular e eu já estava à espera de ser suplente no Euro-2004. Ainda assim, fui utilizado nos dois primeiros jogos e sentia-me uma peça válida no grupo. Uma das forças de Scolari era dar a mesma importância a todos, titulares ou não. E eu senti-o na preparação para esse jogo»

A 20 de junho de 2004, Portugal está entre a espada e a parede: perdeu na estreia com a Grécia, venceu a Rússia com uma equipa remodelada, na qual Scolari enxertou o meio-campo do FC Porto, recém-sagrado campeão europeu: Costinha, Maniche e Deco, com Rui Costa a ser sacrificado. Do primeiro para o terceiro jogo, também Paulo Ferreira, Fernando Couto, Rui Jorge e Simão perdem o lugar no onze.



É uma equipa recém-criada a que viaja de Alcochete a Alvalade com a obrigação de vencer a Espanha, sob pena de a festa acabar ali mesmo, antes de ter começado. E é na cabina, poucos minutos antes de o jogo começar, que Nuno Gomes, suplente de Pauleta, começa a desempenhar um papel importante.

Nuno Gomes
«Scolari tinha uma tradição. Depois de dar o onze e a palestra, geralmente no hotel ou no local de estágio, dava umas últimas instruções no estádio, durante uns cinco minutos. Depois juntávamo-nos, num abraço coletivo, e por vezes rezávamos. E então ele pedia a um jogador para deixar as últimas palavras antes de entrarmos no campo. Nesse dia escolheu-me a mim. Fui apanhado de surpresa, mas a verdade é ninguém conhecia o critério que o levava a escolher um ou outro. Havia jogadores mais carismáticos do que eu, mas como me pediram para falar, avancei. Lembrei que todos sabíamos o óbvio, que tínhamos de ganhar, mas que o mais importante era que cada um de nós saísse do estádio com a certeza de ter dado tudo o que tinha. Fosse qual fosse o resultado, tínhamos de acabar o jogo com a consciência de que não havia mais nada para dar. Depois gritámos e saímos»


O empate chegava aos espanhóis que, depois de uns minutos iniciais a sofrer a pressão portuguesa, muito por culpa de um Cristiano Ronaldo endiabrado, chegam ao intervalo com a situação aparentemente controlada, sem grandes sustos. Um pequeno incidente, logo aos 7 minutos, vai acelerar a entrada em cena de Nuno Gomes: Pauleta vê o cartão amarelo, o segundo na competição. Não só está fora dos quartos de final, caso Portugal venha a conseguir o apuramento, como fica condicionado para os duelos corpo a corpo com Juanito, Helguera e Puyol no resto do tempo.



Não só por isso, mas também, Scolari, que nos outros jogos tinha vindo a lançar Nuno Gomes cada vez mais cedo, opta por mudar os planos com a aproximação do intervalo. Depois de dez minutos finais do primeiro tempo em que a Espanha começou a rondar a baliza de Ricardo e Portugal ficou mais longe da de Casillas, o selecionador dá ordens ao preparador físico Darlan Schneider para ficar a aquecer com Nuno Gomes. Scolari é pé quente nas substituições: dois dos três golos anteriores tinham sido marcados por suplentes. E, embora ainda ninguém o saiba, está escrito nas estrelas que os três seguintes também vão ser.

Nuno Gomes
«Ficámos a aquecer no anexo junto ao balneário, um salão com piso sintético, onde os jogadores fazem um futevólei para descontrair, antes da entrada em campo. Aquecemos durante 5 minutos, à espera de uma confirmação, e ela chegou pelo Flávio Murtosa: «aquece bem que vais entrar já», disse. Vesti a camisola de jogo e subi logo, para acabar de aquecer no campo. Havia alguns suplentes a brincar com a bola, mas pela intensidade com que estava a aquecer dava para ver que eu ia entrar. Por isso, algumas pessoas que estavam em redor do campo começaram a dar-me força. Não sei o que levou Scolari a antecipar a substituição. O risco do amarelo ao Pauleta pode ter pesado, mas por outro lado o jogo estava muito fechado. Se calhar Scolari pensou nas minhas características, de sair muitas vezes da posição nove para fazer tabelas e combinar com os extremos»

O plano até podia fazer sentido, mas nos primeiros dez minutos após o recomeço a situação não mudou muito. A Espanha fechava-se bem e controlava os espaços, Portugal tinha pouca bola e não conseguia levar jogo ao ponta-de-lança, nem fora nem, muito menos, dentro da área.



É então, à entrada do 57º minuto de um jogo fechado e tenso, que um conjunto de circunstâncias vai combinar-se de forma perfeita, para pôr Nuno Gomes perante aquilo a que os argumentistas chamam «plot point», um dos tais momentos que mudam o rumo a uma história, de acordo com a opção tomada. Para já, tudo vai obedecendo ao que era previsível. Cristiano Ronaldo deixou a esquerda sem inquilino e está na lateral direita, permitindo a Figo um dos habituais movimentos interiores, de aproximação à área. Nuno Gomes, fiel aos hábitos de «nove» itinerante, veio quase ao meio-campo entregar a bola a Deco, que acelera o ritmo com um passe lateral para Maniche.

No círculo central, o 18 da seleção faz aquilo que sempre fez bem: dá profundidade ao jogo com um futebol a dois toques, em linha reta, sem dribles nem desvios. Recebe e toca para Figo, enquanto Nuno Gomes completa o movimento circular, sprintando para a meia lua. É aí, após um toque subtil de Figo, a iniciar o pedido de tabelinha, com a parte de fora do pé direito, que as coisas se tornam muito menos evidentes do que pareciam.

Nuno Gomes
«Eu respeitava demasiadas vezes os movimentos dos companheiros. Alguns críticos apontavam-me o facto de não ser egoísta como um defeito para um ponta de lança, e em parte concordo com eles. Por isso, quando o Figo inicia o lance, a lógica diz-me para fazer o «1-2» com ele. Acontece que já naquela altura se analisavam os adversários em pormenor, e acredito que os defesas espanhóis sabiam perfeitamente as diferenças entre a minha forma de jogar e a do Pauleta. Quando o Figo corre para o meio vê-se que dois deles (N.R. Juanito e Albelda) acompanham o movimento para fechar. É nesse momento que hesito,
passo ou não passo , e me lembro de fugir, por uma vez, aos meus princípios como jogador»

É a altura certa para encaixarmos as outras peças do puzzle. As camisolas brancas da seleção espanhola, orientada por Iñaki Saez, estavam assim distribuídas: Puyol era o lateral direito, Raúl Bravo o esquerdo, Helguera e Juanito os centrais. Albelda e Xabi Alonso eram os médios de contenção, ali perdidos a meio caminho entre Figo e Maniche.

Com os laterais fora do filme, Albelda recua para travar o movimento de Figo junto a Juanito, que inicia um movimento de pressão junto ao capitão português mas depois, ultrapassado pelo toque de primeira, recua a toda velocidade para junto de Nuno Gomes, na meia lua. Helguera, esse, é quem está mais seguro de que o ponta-de-lança português vai devolver a tabelinha. Por isso espera, em cima do risco da área, a uns quatro metros do 21 de Portugal. E esse é o elemento que vai fazer com que Nuno Gomes decida, por esta vez, virar à esquerda - onde sempre, até, aí, tinha virado à direita.

Nuno Gomes
«Muitas vezes quando recebemos de costas para a baliza nem temos tempo para dominar, sentimos logo o central nos calcanhares. Mas nesse caso percebi que ele (Helguera) não tinha acompanhado e estava à espera da entrada do Figo. Por isso, uma vez tomada a decisão, tenho tempo para dominar, rodar e preparar o remate»



A partir daqui a história torna-se mais rápida. Após quatro toques ligeiros, que lhe permitem completar a rotação, a bola sai do pé direito de Nuno Gomes, um metro antes da meia lua, direitinha às redes laterais de Casillas. E há uma outra circunstância feliz a tornar inviável a estirada do guarda-redes da Espanha: todas as movimentações neste lance contribuíram para lhe tapar a visão até ser tarde de mais. A intervenção decisiva é de Juanito, o primeiro espanhol a perceber que Nuno Gomes, por esta vez, decidiu mesmo virar para onde não era suposto e vai fazer o que não estava no guião. Por isso levanta a perna, tentando tapar o caminho da baliza. O que deu uma ajuda, explica a experiência de quem ganhou a vida a visar redes.

Nuno Gomes
«Muitas vezes o defesa que sai ao remate levanta uma perna, para aumentar o volume do corpo. Os avançados sabem que se a bola passar aí o guarda-redes não a vê logo. Acho que foi isso que aconteceu: quando rematei a bola passou muito perto das pernas do Juanito, primeiro, e do Helguera, depois, e o Casillas não a viu partir. Quando viu, já não podia chegar a tempo»



As imagens seguintes são de delírio. Nuno Gomes volta a virar à esquerda, desta vez para sprintar rumo à bandeirola de canto. Antes de lá chegar, é placado por Maniche e Deco, os mesmos que, lá atrás, tinham começado a escrever esta história com um passe lateral aparentemente inofensivo. Depois chegariam todos os outros, para um abraço coletivo que fez o avançado perceber que estava a viver um dos momentos mais intensos da carreira, apesar dos quatro golos marcados em 2000.



Para o fim desta história faltavam ainda longos minutos de sofrimento, com a Espanha a carregar em busca do empate e Portugal a não conseguir matar o jogo num dos vários contra-ataques de que dispôs. Da noite em que salvou a festa, virando à esquerda quando todos o esperavam do outro lado, Nuno Gomes guarda duas pequenas anedotas. 

Uma, a intuição, comentada nessa noite em Alcochete, entre sorrisos maliciosos de companheiros de equipa, de que, durante uma fração de segundo - entre perceber que o ponta de lança não ia devolver-lhe o passe e ver a bola no fundo da baliza - Luís Figo terá sentido a mais efémera das fúrias, antes de levantar os braços num gesto de triunfo e perdão. A outra vem de fora de campo, e mistura aritmética com a angústia daqueles minutos finais em que o relógio não andava para os portugueses mas corria para os espanhóis. É Nuno Gomes que fecha a história, como se impõe:

«Os últimos dez minutos foram dramáticos, e começou a haver contra-informação. E como a Espanha, mesmo perdendo, seria apurada se o outro jogo (N.R.: Rússia-Grécia, 2-1) acabasse 3-1 para a Rússia, começou a correr a informação, vinda de fora, de que estava tudo bem e íamos passar os dois. Eu não sabia se era verdade ou não, mas dava-me jeito que fosse, por isso também comecei a espalhá-la. Nessa altura os espanhóis já só queriam pôr a bola lá em cima, de qualquer maneira, com os centrais a ponta-de-lança. E nós dizíamos aos defesas para terem calma, que não era preciso correr. Às tantas, na marcação de um livre, faço sinal ao Puyol para se deixar ficar, porque já não tinham de marcar. Ele hesitou, olhou para o banco a perguntar, e depois, quando lhe disseram que era mesmo preciso marcar, ficou a olhar para mim com aquele ar de quem queria matar-me.»