No futebol há momentos que redefinem uma carreira, rasgando-lhe horizontes e dando-lhe um novo rumo. Mas nem sempre é fácil dar por eles, ou perceber a sua dimensão transformadora. Porque podem acontecer no mais anónimo dos palcos, no mais corriqueiro dos jogos.

Veja-se o caso de Luís Figo, por exemplo: a 29 março de 2000 já andava há quase uma década a esbanjar talento. Primeiro nos relvados portugueses, depois nos da Liga espanhola, finalmente, em semanas de Champions, um pouco por toda a Europa.

Quase a concluir a quinta temporada no Barcelona, o internacional português já era um nome grande. Um «player's player», ainda mais respeitado pelos seus pares do que pela generalidade dos adeptos. Na definição certeira de Jorge Valdano, conseguia «o prodígio de tornar habitual o excepcional». E, no entanto, mesmo uma carreira como a de Figo, por essa altura já recheada de conquistas e proezas, pode ser dividida em aS e dS - antes e depois de sentar Peter Schmeichel em Leiria.

Até esse momento, o velho estádio Magalhães Pessoa estava a ser palco de um jogo perfeitamente banal, entre duas seleções que afinavam agulhas para o Europeu, marcado para junho. A Dinamarca não perdia há um ano, o registo de Portugal era melhor ainda, com 12 jogos de invencibilidade em ano e meio. Os visitantes tinham marcado primeiro, num cabeceamento madrugador de Tomasson, após canto: sem hipóteses para Pedro Espinha, habitual suplente do lesionado Vítor Baía.

O onze inicial do Portugal-Dinamarca


Depois, no dia em que completava 28 anos, e 50 jogos ao serviço da seleção, Rui Costa empunhou a batuta e a história começou a mudar. Aos 41 minutos, Sá Pinto foi derrubado na área, por Hogh, e o 10 da Fiorentina cobrou o penálti, batendo Schmeichel e animando novamente os cerca de 9 mil espectadores, antes do intervalo.

Em modo de testes, Humberto Coelho aproveitou o intervalo para fazer duas substituições: para os lugares de Nuno Gomes e Sá Pinto entraram Pauleta e Dani. E é este último - a tentar convencer Humberto Coelho a integrá-lo na convocatória final - quem, cinco minutos depois de pisar o relvado, se transforma em testemunha privilegiada de um momento mágico.

Dani
«Mesmo num contexto em que o protagonismo era repartido, com jogadores como o Rui Costa e o João Pinto, o Luís já era visto como um líder. Ainda mais por mim, que me cruzava com ele diariamente desde os meus 10 anos. Ele era quatro anos mais velho do que eu, e a possibilidade de partilhar o balneário com ele, primeiro no Sporting, depois na Seleção, foi um enorme estímulo para o meu crescimento»

A magia começa num passe longo de Rui Costa, que tenta lançar Pauleta nas costas da linha defensiva dinamarquesa. Em desequilíbrio, Helveg salta para trás e consegue o corte de cabeça, mas deixa a bola numa zona de ninguém. Figo, que tinha acompanhado o movimento, da esquerda para o meio, recolhe a bola no peito e, num movimento em semicírculo, em três passadas fica virado na direção da baliza.

O passe de Rui Costa é de rutura, e isso explica que à direita de Figo ainda não haja ninguém: o outro extremo, Sérgio Conceição, arranca a toda a velocidade, mas ainda tem uns 20 metros de atraso. Mais a meio, mas demasiado atrás para dar uma boa linha de passe, vem Dani. Depois, há Pauleta, ator secundário, mas da maior importância para o desfecho desta história.

Dani
«O movimento do Pauleta é muito bom, do meio para a esquerda, enquanto o Figo faz a deslocação no sentido oposto. Isso arrasta um defesa, enquanto outro hesita. Depois, o Luís faz tudo bem, com uma confiança enorme.»

Helveg acompanha Pauleta, e o azarado Hogh, que já tinha cometido o penálti sobre Sá Pinto, demora a perceber o plano de Figo. A pausa é suficiente para permitir que o segundo toque de pé direito ponha o 7 de Portugal em velocidade de cruzeiro. A seguir, adivinhando o espaço, que a hesitação entre Hogh e Henriksen manteve aberto uma fração de segundo a mais, Figo prolonga a pausa com um movimento de pedalada que acaba de hipnotizar os dois dinamarqueses. Como um ilusionista, usa o terceiro toque na bola para passar por uma fenda, que um instante depois já não está lá.

Helveg percebe, tarde de mais, que Pauleta já não vai ter mais intervenção na jogada e ainda dá dois passos na direção de Figo antes de perceber a inutilidade do gesto. A sua renúncia, consumada com um atirar de ombros para a frente, deixa tudo nas mãos e pés de Peter Schmeichel, que sai da baliza a toda a velocidade.

O «grand danois», campeão europeu em título, tinha trocado nessa época a baliza do Manchester United pela do Sporting. Invulgarmente rápido para alguém com 1,94 metros e 96 quilos, faz uma mancha enorme, que taparia os caminhos a qualquer jogador banal. Mas Figo, que nunca foi um jogador banal, é nesse momento um homem possuído, e em estado de graça. Se a pedalada com que eliminou os centrais já tem um ar de desplante, a ligeireza com que obriga Schmeichel a sentar-se é daqueles momentos que duram eternidades. O movimento com a perna direita desenha um remate que é travado no último instante. Depois, já com o dinamarquês sentado, o quarto e último toque de pé direito, é feito em «souplesse», num ligeiro chapéu que ainda roça na perna esquerda estendida do último dinamarquês que lhe saiu ao caminho.



Voltamos ao princípio, para lembrar que há um antes e depois de Schmeichel na carreira de Figo. O seu 15º golo ao serviço da seleção é libertador, e anuncia as glórias futuras: um Euro-2000 em grande, uma transferência retumbante para Madrid e, no fim desse mesmo ano, a consagração da Bola de Ouro, atribuída pelo L'Equipe, um prémio que antes dele só Eusébio tinha trazido para Portugal. Depois de Leiria, depois desse minuto 51, o talento de Figo não tem barreiras, nem medida.

Dani
«Nessa fase da carreira, a genialidade do Figo tornou-se mais constante e equilibrada. Ele passou a ser um jogador único, porque os seus vários comportamentos eram sempre em benefício da equipa. Podíamos contar sempre com ele, a um nível muito alto. O génio dos desequilibradores às vezes não aparece, e quando o jogo não lhes corre bem a equipa aproveita pouco. Mas com ele, não: ele tinha tudo. Mesmo que não fizesse um golo daqueles, era certo que fazia dez centros importantíssimos, que tinha vindo atrás fechar e tinha ajudado a equilibrar a equipa taticamente. Tudo isto fazia dele uma das coisas mais raras do futebol: uma estrela necessária em permanência para as tarefas do dia a dia da equipa.»


Schmeichel, conhecido pelas fúrias arrasadoras para com os colegas de equipa, não deixou os créditos por mãos alheias. Quando se levantou, com orgulho ferido, chamou todos os nomes a Hogh e Henriksen. Mas depois rendeu-se à evidência: no fim, do jogo, conformado, deu mostras de fair-play: «Foi um golo espectacular, fiquei sem reação e sem palavras. Quando vi o que ele fez, não queria acreditar» resumiu, na homenagem de um gigante para outro gigante.

Neste 4 de novembro, Luís Figo completa 42 anos. É por lances como o de Leiria, ou como este, pelo Real Madrid, diante do Manchester United, três anos depois, que este texto só pode terminar com sinceros parabéns: a todos nós, que tivemos o privilégio de ver, pelos seus pés, o excepcional tornar-se habitual.