Feito um balanço desta última época, desafiámos Manuel Fernandes a percorrer, passo a passo, os principais pontos da sua carreira, desde os primeiros pontapés na bola, até à Rússia. Uma viagem que começa bem cedo, com um teclado, mas ainda sem bola «A primeira memória que me vem à cabeça era um jogo de computador, do Commodore Amiga, que era o Kick Off. Comecei a jogar à bola por causa disso, é a primeira memória que tenho do futebol», refere a rir.

Há a ideia generalizada que Manuel Fernandes começa no Benfica, mas a verdade é que os primeiros pontapés, aos 7 anos, são dados com a camisola do Sporting, mas apenas por alguns meses. O futuro seria definitivamente desenhado em tons de…vermelho. «Ainda andava na escola primária, eu e um amigo jogávamos futsal nos Jogos de Lisboa e o nosso treinador era adepto do Sporting. Levou-me lá [Alvalade] para treinar e fiquei. Passado uns meses, na altura ainda tinha passaporte estrangeiro, o tal BI azul, e como o Sporting já tinha dois estrangeiros, não podia inscrever outro. Fui-me embora e fui treinar ao Benfica», recorda.

O Benfica seria a sua vida ao longo de onze anos, até atingir a maioridade. Faz toda a formação no clube da Luz, dos 8 aos 19 anos, com vários títulos, e quando chega a sénior explode na equipa principal. «É o clube que me marca mais, sem dúvida nenhuma». Aos dezoito anos é lançado na equipa principal por José Antonio Camacho e rapidamente ganha a alcunha de «Manuelélé», em alusão a Makeléle que, na altura, dava cartas no Chelsea, depois de já ter deixado rasto no Real Madrid. Acaba a época em alta, com a conquista da sua primeira taça, com uma vitória, na final [não foi utilizado], frente ao FC Porto de José Mourinho que já estava a pensar na final da Liga dos Campeões que haveria de ganhar ao Monaco.

«A longevidade de Luisão é de louvar»

Na segunda temporada, com Giovanni Trapattoni, Manuel Fernandes ganha o estatuto de titular e somar 43 jogos em todas as competições, numa temporada especial, em que o Benfica coloca um ponto final num jejum de onze anos. Uma realidade bem distinta da atualidade. «Foi especial. Senti-me importante. O Benfica não ganhava há muito tempo, na altura era o FC Porto que dominava, foi agradável fazer parte de tudo isso», recorda Manuel Fernandes, frisando que po contexto em 2005 era bem distinto do atual. «É uma transformação que já vem de há muitos anos, acho que se deve à estrutura do Benfica que faz com que a equipa consiga ter esta sequência de vitórias, de títulos. Isto tudo vem de muito trabalho com as camadas jovens, do centro de estágios, tudo isso ajuda para que neste momento o Benfica seja a melhor equipa em Portugal», acrescenta.

Voltando a 2005, doze anos volvidos, sobra ainda Luisão, o eterno capitão que voltou a estar em destaque no título de 2017. Facto que arrancou uma gargalhada a Manuel Fernandes. «É de louvar, ele ainda hoje conseguir jogar a este nível. Na altura ele já era um jogador importante, mas foi crescendo com o passar dos anos e é de louvar, nesta altura, ele ainda conseguir competir a este nível e, apesar da idade, ter toda a disponibilidade que ele tem para dar tudo pelo Benfica»

«Koeman era uma pessoa rancorosa»

Uma taça, um campeonato, mas na época seguinte, a ligação de Manuel Fernandes ao Benfica é quebrada de forma abrupta. Tudo começa com um desentendimento com o departamento médico, tudo se complica com uma relação difícil com o novo treinador, Ronald Koeman. A questão é resolvida com um empréstimo, primeiro para o Portsmouth de Pedro Mendes, depois para o Everton de Nuno Valente. Manuel Fernandes queria jogar, o Benfica queria valorizar a sua «pérola».

Manuelelé estava a caminho da Premier League. «No Portsmouth foi um bocado complicado, havia umas cláusulas no contrato que diziam que se jogasse X jogos eram obrigados a contratar-me e isso não me permitiu que jogasse com regularidade, mas no Everton correu bastante bem. Assim que cheguei tive oportunidade para jogar, eles queriam que eu ficasse, mas não houve acordo com o Benfica».

Manuel Fernandes até estava determinado em prosseguir a carreira em Inglaterra, mas o Benfica acabou por chegar a acordo com o Valencia por 18 milhões de euros. O internacional português, com apenas 21 anos, chega ao Mestalla sob o peso do valor da transferência, mas não fica por muito tempo. O novo treinador do Valencia era…Ronald Koeman. «Não diria que haja aí muita coincidência. Fui-me embora do Benfica com o Koeman e depois quando cheguei ao Valencia, vou dizer mesmo, tive o azar de encontrar o Koeman outra vez. Infelizmente encontrei uma pessoa pouco resolvida com ele mesmo, rancorosa e tive de sair mesmo. Foi nessa altura que voltei a ser emprestado ao Everton».

«Valencia tinha o melhor plantel de que já fiz parte»

Manuel Fernandes volta a Goodison Park, mas a relação com o Valencia estava comprometida. O médio português ainda voltou, chegou a encantar em alguns jogos, mas as saídas à noite e os casos fora de campo – chegou a ser detido no aniversário de Miguel - falaram sempre mais alto do que as suas exibições. «Se as coisas não correram tão bem como deviam, a culpa é minha por não ter produzido o futebol que podia fazer, mas o Valencia também era um clube complicado. Mas se tiver de atribuir a culpa a alguém, atribuo a mim mesmo», reconhece.

Manuel Fernandes era muito jovem e estava inserido num plantel de estrelas. «Foi o melhor plante de que já fiz parte. Podíamos fazer duas equipas para jogar na Liga dos Campeões. Quando lá cheguei, se não me engano, tínhamos nove internacionais espanhóis que iam à seleção com regularidade. Além do Miguel, Marco Caneira e Hugo Viana, tínhamos o David Villa, David Silva, o Juan Mata, Joaquín, Vicente, Abelda…», tentámos interromper, mas Manuel Fernandes prosseguiu…«o Helguera, o Albiol, o Baraja, o Carlos Marchena, o Morientes».

O espaço ficou reduzido para novas aventuras no clube «Che» e em janeiro de 2010, o Besiktas abre-lhe uma porta de saída. Saiu por empréstimo, mas acabou por ficar em Istambul a título definitivo, por quatro temporadas. Manuel Fernandes voltou a sorrir na Turquia. «O ambiente à volta do futebol, a forma como eles vêem o futebol, ele vivem futebol durante 24 horas. Foi muito bom porque comecei a jogar com regularidade, jogava quase sempre, as coisas correram-me bem. A nível desportivo foi a melhor fase da minha carreira», conta.

«No Besiktas tinha uma vida fora do campo muito mais ativa»

Manuel Fernandes deixava para trás uma parte difícil da sua carreira que lhe tinha deixado a imagem de um jogador conflituoso que tinha mais para dar do que tinha demonstrado até então. Nesta altura, já em 2014, numa entrevista ao Maisfutebol, Manuel Fernandes dizia que as pessoas tinham uma «imagem errada» dele. Hoje em dia está bem melhor consigo próprio. «Dou poucas entrevistas, não sou muito dado a conhecer, portanto, se isso acontece também terei culpa no cartório, por não me dar tanto a conhecer, mas agora estou completamente cómodo com isso», conta. Agora fala-se mais do que o Manuel faz em campo do que fora dele. «Não é um Manuel diferente. Na minha maneira de ver, independentemente do que se passa fora do campo, se as coisas forem bem-feitas dentro do campo, ninguém vai falar. Eu no Besiktas tinha uma vida fora do campo muito mais ativa, mas pelo facto das coisas estarem a correr bem, eram pouco faladas as coisas que eu fazia fora do campo. Obviamente quando as coisas começam a correr pior, vão buscar a razão A ou a razão B para explicar. No Valencia se calhar falou-se mais porque não tive a produção que as pessoas estavam à espera».

Ao longo dos anos, Manuel Fernandes foi falando na possibilidade de voltar a Portugal, dando sempre prioridade ao Benfica, mas essa vontade foi-se diluindo, até porque Manuel Fernandes só admite regressar enquanto estiver no auge das suas capacidades. «Agora sinto-me bastante bem, foi uma época muito produtiva a nível individual, conseguimos dois objetivos na temporada [Taça e qualificação europeia] e, além disso, estou nomeado para o prémio de melhor jogador da liga. Enquanto estiver bem e sentir que posso contribuir com alguma coisa, admito essa possibilidade, mas também já disse, muitas vezes, que só jogava num clube em Portugal. Não diria que é uma ambição. Tenho mais dois anos de contrato com o Lokomotiv e o objetivo do momento é cumprir esse contrato», destaca.

Nos últimos anos, entre o Besiktas e o Lokomotiv, Manuel Fernandes jogou sempre com o número 4 nas costas, depois de já ter usado o 37 no Benfica e no Everton, além do 18 no Valencia. «O número 4 tornou-se especial por causa do Besiktas. Quando lá cheguei, os números que eles tinham disponíveis eram muito altos. Na altura queria o 37 [primeiro número no Benfica], mas o 37 era de um jogador da equipa B, acabei por ficar com o 4 porque era o único disponível. A partir daí tornou-se especial, por causa do Bekistas». Antes disso, o número especial era o 37, mas até nisso Koeman interferiu. «Usei o 37 na minha primeira passagem no Everton e nos dois primeiros anos no Benfica. Depois chegou o Koeman que não gostava de números muito altos e na altura eu, que era o 37, e o João Pereira, que era o 47, tivemos de mudar para números mais baixos», conta ainda Manuel que deixou o Benfica a jogar com o 14.

Outra questão que acompanhou a carreira de Manuel Fernandes foi a sua difícil relação com os selecionadores que não permitiram que o médio, mesmo no melhor momento da sua carreira, tenha somado apenas nove internacionalizações até hoje. Um sonho que também já vai perdendo força. «Tenho noção que ir à seleção, nesta altura, é cada vez mais difícil. A seleção acabou de ser campeã da Europa, tem já um núcleo duro. Mesmo que alguns jogadores não estejam a jogar com regularidade, as coisas estão a correr da melhor forma possível. Esse núcleo duro é muito difícil de destronar», comentou.

Leia também:

«Ter ficado fora do Euro 2012 deixou-me um sabor amargo»

Um novo Manuel Fernandes na Rússia: «Sou um falso extremo»