O Maisfutebol juntou Pedro Alves (antigo scout do Sp. Braga e atual diretor desportivo do Estoril) e José Boto (que passou pelo Benfica antes de aceitar o convite do Shakhtar Donetsk para ser chief-scout) para falarem sobre scouting durante mais de duas horas. No entanto, o início da conversa teve como tema pratos favoritos e restaurantes na zona de Lisboa.

Por fim, entrámos no mundo do scouting: o que é preciso para ser scout, a falsa questão dos perfis de jogadores, a ligação entre a figura do diretor desportivo e o departamento de scouting, e algumas histórias incríveis. Episódios caricatos e relatos de contratações falhadas como foram as de Vinícius Júnior e Emre Mor para o Sp. Braga.

Sabe quando três pessoas se juntam para falar sobre o que gostam? Foi assim. O jornalista deixou a conversa fluir.

José Boto interrompe a conversa para refletir sobre as formações de scouting que existem.

José Boto: Há muita gente a falar de scouting e a dar formação que não faz puto de ideia do que é isto. No scouting não há teorização, porque os clubes não abrem esses departamentos para estudo. São departamentos demasiado sensíveis e confidenciais. O que existem são gajos que nunca levaram com um presidente a ligar às 4h da manhã e a dizer-te: 'Tem de ser este ou aquele'. Às vezes dá-me voltas ao estômago ouvi-los falar. Teorizam baseados em nada. Não se pode dizer que o scouting faz-se desta ou daquela maneira. Esquece, por isso não há cursos de scouting. Quando dou formações, apareço sem power point e apenas com vontade de falar. Podia dizer uma série de mentiras, os formandos ficavam todos contentes e tiravam notas. Podia dizer que observava um jogador quatro vezes ao vivo, por exemplo. Vives o dia a dia e a concorrência é tão grande que não tens tempo para andar com metodologias para observação de jogadores. Se andas com metodologias, quando chegas a uma conclusão, já o jogador mudou duas vezes de clube

Pedro Alves: Já fui convidado para falar sobre scouting... É uma observação que leva a uma decisão. Sempre me considerei corajoso. O que me levou a decidir isto ou aquilo? É intuitivo, tu sentes. Um scout de uma grande equipa inglesa em Portugal é semelhante a um dos distritais. Tem de escrever sobre os 22 jogadores. Como é possível ver o jogo e escrever sobre 22 jogadores? Ainda hoje vão com um caderninho. Só apontas coisas para não te esqueceres. 

José Boto: A questão de entender o jogo... Para o entenderes, não podes estar concentrado numa outra coisa. Há malta que escreve um romance enquanto vê jogos. Assim não consegues perceber o jogo nem ver o jogador. Uma coisa é fazer um rabisco para te lembrares de uma situação que queres perceber mais tarde. Há malta que gosta mais do acompanhamento do que do bife. Aqui é igual. A malta quer saber como se faz um relatório, quantas vezes observas um jogador, se dás notas e isso são coisas de menor importância. Às vezes, brinco com os meus amigos e digo-lhes que vou chegar à formação e dizer: 'Se observar um lateral-esquerdo, só vou ver com o olho esquerdo'. E eles vão escrever aquilo sem se questionarem. Desde que faças algo metódico, eles acham que têm de ser assim. 

Tocando num outro ponto. As nossas vivências e gostos pessoais influenciam a forma como vemos o jogo. Como nos alheamos disso?

Pedro Alves: Quando deixei de jogar futebol, havia um tipo de jogador que adorava: os Bernardos Silvas da vida. Mas, quando vais para um clube como o Sp. Braga, tens de olhar para quem treina a equipa. O que me adianta ter um seis que gosta de sair a jogar, que tenha jogo interior, que chegue a zonas de pressão se depois damos um ‘charuto’ na frente? Tudo está relacionado com o treinador e com o clube onde estás.

José Boto: Essa questão é fundamental. Nunca podes despir as tuas vivências e os teus gostos, mas tens de ter a noção que não trabalhas para ti. Dá-me uma felicidade incrível estar onde estou porque sou ouvido, trabalho com ideias que são as mesmas que as minhas e sou bem pago. Não é fácil sair para outro lugar. Passei 12 anos em que não foi assim e em que tive de despir os meus gostos pessoais. O Bernardo é o meu tipo de jogadores. Gosto de um Dantas [Benfica] e de um Bragança [Estoril/Sporting]. No entanto, se tenho um treinador que me diz que aquele jogador não joga com ele, estou a prestar um mau serviço ao clube. Tens de ver com os teus olhos, com a tua experiência e capacidade de decisão, mas perceberes uma coisa. 'Se fosse eu a mandar escolhia aquele. Mas se o indicar, vai ser um insucesso para mim e para o clube porque o treinador não o vai colocar a jogar'. Ao longo da minha carreira já tive situações em que fiz finca pé por jogadores que gostava, porque achavam que era top - e mais tarde verificou-se que sim. Porém, na altura, se calhar não prestei um bom serviço ao clube porque sabia que o treinador não ia gostar do jogador. Acabou por ser rentável mais tarde, mas não tanto em termos de utilização porque não tinha as características que o treinador gostava.

Como passamos a ver o jogo com os olhos do treinador?

José Boto: Tens de conhecer o jogo. Não vamos meter nomes problemáticos (risos). Gosto do que gosto, mas trabalho para o Simeone. Tenho de saber o modelo de jogo dele, o que ele valoriza no jogador. Para mim é fácil, mesmo não gostando, porque conheço o jogo e o futebol. Sabemos o que ele quer como jogador ou não. Isso para nós não é uma dificuldade. Basta conheceres o jogo para fazer isso. 

Pedro Alves: A questão do scouting, da decisão, do perfil... Existe uma palavra que uso muito: responsabilidade. Já deixo o meu orgulho de parte se um treinador preferir o Marega ao Bernardo Silva, por exemplo. Há a responsabilidade de prestar um bom serviço aos clubes e aos treinadores. Por isso, o perfil de jogador vale o que vale.