O Estádio de Kuip, em Roterdão, foi ontem palco de um momento histórico do futebol europeu. A vitória de Portugal (3-0), sobre a Alemanha, confirma tudo o que de positivo se escreveu sobre o futebol-champanhe da Selecção nacional após o jogo com a Inglaterra e, ao mesmo tempo, marca um estrondoso fim de ciclo.  

Aquele em que a Alemanha, por direito próprio, era candidato à vitória em qualquer competição onde entrasse. O 150º jogo de Lothar Matthäus pela sua selecção será também, com toda a probabilidade, o último. E a forma como a sua selecção foi «humilhada» (Ribbeck dixit) pelo carrossel de passes português mostra bem a dimensão da crise de um gigante que adormeceu durante demasiado tempo. 

Essa Alemanha, poderosa e ameaçadora, acompanhou Matthäus durante 20 anos e despediu-se (até quando?) juntamente com o seu antigo «capitão». 

Se fosse preciso escolher um lance para simbolizar a dimensão dessa queda, de entre o autêntico vendaval de técnica que, especialmente na segunda parte, pôs a nu a tremenda falta de ideias dos alemães, bastaria aquele túnel que Capucho fez a Matthäus, no início de um contra-ataque que por pouco não deu golo. 

Entre a facilidade quase arrogante do criativo português e o peso de 20 anos de história do futebol moderno nas pernas do velho 10, os deuses do futebol fizeram a sua escolha. E o público de Roterdão assistiu a tudo, num êxtase de «olas» e palmas a compasso. 
 

Portugal com três centrais 

Claro que as últimas impressões são aquelas que perduram, e isso faz com que as dificuldades iniciais sentidas pelos portugueses se percam na memória. 

Fiel ao anunciado na véspera, Humberto fez descansar a maior parte dos jogadores-chaves, mantendo apenas dois titulares (Jorge Costa e Fernando Couto) em relação aos primeiros dois jogos. 

Não contente com dar uma hipótese a todos os jogadores do grupo, Humberto foi mais longe, apresentando de entrada um esquema táctico inovador, com três centrais e dois laterais ofensivos (Sérgio Conceição e Rui Jorge). 

A ideia, para além de dar solidez defensiva a um conjunto com pouca rotina de jogo, seria encaixar nos dois pontas-de-lança alemães. Só que, surpresa por surpresa, Ribbeck deixou apenas um homem fixo na frente (Jancker), apostando num inesperado sistema de quatro defesas e no apoio ofensivo de Bode e Deisler, de características mais «flutuantes».  

No papel, os esquemas tácticos pareciam trocados. Talvez por isso, à passagem dos 25 minutos, Humberto fez com que tudo voltasse à primeira forma: Beto descaiu para lateral-direito e Sérgio Conceição incorporou-se no meio-campo, embalando para a maior noite de glória de uma carreira bastante bem preenchida a esse nível. 

Até aí a Alemanha mandara na bola, e Portugal surgia algo retraído, esperando para ver em que paravam as modas. Mas depois de Bode ter enviado uma bola ao poste (30 m), num dos raros lances em que a defesa portuguesa foi batida, Pauleta deu seguimento a alguns ameaços e arrancou dois lances muito perigosos. No primeiro, Sá Pinto chegou dois metros atrasado. No segundo, o seu remate prensado sobrevoou Kahn e aterrou na cabeça de Sérgio Conceição, emboscado no segundo poste. 

Sintoma inequívoco da crise alemã é a tremenda falta de confiança demonstrada pelos seus jogadores, capazes de se engasgarem com a mais simples troca de passes. Se, até aí, a bola fora sempre das camisolas brancas (65% de posse na primeira parte!) o golo de Sérgio foi um ponto de viragem na história do jogo. 

45 minutos de apoteose 

No início da segunda parte percebeu-se que Portugal tinha rompido o assédio alemão (que, mesmo na fase mais intensa, tinha tanto de físico como de pouco lúcido). 

A circulação de bola fazia-se com uma facilidade impressionante, e os jogadores ganhavam asas nos lances de um para um. Daí que Sérgio Conceição tenha arriscado um remate de pé esquerdo, depois de passar dois adversários, da direita para o meio, para ver o gélido Kahn deixar passar a bola debaixo do corpo. 

A desorientação alemã crescia na razão inversa do empolgamento português. Ribbeck tentava tudo, trocando jogador após jogador. O caso não mudava de figura: era Portugal quem tinha a bola, quem se entretinha com ela antes de partir em contra-ataque, explorando as avenidas que o assombro alemão ia provocando. 

Capucho, até então bastante discreto, chamava a si o comando das operações nos instantes finais. Sempre de cabeça alta, sempre dando a falsa impressão de estar parado, tirava um, dois, três adversários do caminho antes de dar seguimento ao lance com um passe para a frente (assim nasceu o terceiro golo), ou para o lado, caso fosse momento para reiniciar o carrossel. 

Os últimos dez minutos foram inesquecíveis. Portugal trocava a bola, quase tendo vergonha de procurar mais golos, por entre «olas» e «olés» de um público positivamente embriagado com tanto futebol. 

Os adeptos alemães, estóicos, aguentavam a pé firme, aplaudindo os portugueses e gritando «Mais técnica! Mais técnica!». 

Foi preciso o apito de Dick Jol para dar por findo aqueles minutos de loucura, em que a técnica, tantas vezes vergada à solidez, à força e ao espírito competitivo dos alemães, se desforrou magistralmente, indicando a porta de saída para uma equipa transformada em caricatura de si mesma e abrindo as portas da consagração a um grupo de jogadores famintos de glória. E, como todos sabemos, no futebol a glória é muito mais importante do que os resultados... 

FICHA DO JOGO  
 
Portugal, 3-Alemanha, 0  
 
Estádio De Kuip, em Roterdão (Holanda) 
Árbitro: Dick Jol (Holanda)  
 
Portugal: Pedro Espinha (Quim, 89 m); Beto, Fernando Couto e Jorge Costa; Sérgio Conceição, Costinha, Paulo Sousa (Vidigal, 71 m) e Rui Jorge; Sá Pinto e Capucho; Pauleta (Nuno Gomes, 66 m). 
Treinador: Humberto Coelho.  
 
Alemanha: Kahn; Rehmer, Nowotny, Matthaus e Linke; Ballack (Paulo Rink, ao intervalo) e Hamann; Deisler, Scholl (Hassler, 58 m) e Bode; Jancker (Kirsten, 68 m). 
Treinador: Erich Ribbeck.  
 
Ao intervalo: 1-0. 
Marcador: Sérgio Conceição (34, 53 e 70 m) 
Disciplina: cartão amarelo para Beto (25 m); Ballack (24 m), Deisler (86 m), Rink (90 m).