A selecção nacional deu esta noite um passo muito grande rumo ao Mundial-2002, rectificando o tropeção de há quatro dias, no estádio da Luz, frente à Irlanda. Mais do que a vitória por 2-0 sobre uma Holanda muito distante dos seus tempos de glória, foi a autoridade e a solidez da exibição portuguesa que impressionou tudo e todos. E Louis Van Gaal, que na véspera assumira ter dúvidas sobre se Portugal seria uma equipa ou uma soma de individualidades, deve ter ficado definitivamente esclarecido. A sua laranja foi derrotada por uma verdadeira equipa. Uma grande equipa, por sinal. 

O primeiro e decisivo mérito da selecção portuguesa, que não vem de agora, mas é resultado de um processo contínuo de crescimento, que teve o ponto alto no último Europeu, foi novamente a afirmação de uma forte personalidade. Mesmo descontando a inicial dose de fortuna que se traduziu num golo marcado no primeiro lance de verdadeiro perigo (entre Sérgio Conceição e o De Kuip há, decididamente, uma história de amor), é justo reconhecer que a selecção soube, ao longo da primeira parte, sustentar o avanço com uma exibição contida, não propriamente deslumbrante, mas sempre, sempre, nos limites do rigor, da inteligência e da auto-confiança. 

Quando o colectivo substitui a magia 

Em condições ingratas - a decepção do empate com a Irlanda e a falta de jogadores importantes no meio-campo, frente a uma Holanda desfalcada, é certo, mas motivada pela expressiva vitória conseguida em Chipre e pelo impressionante ambiente criado por cerca de 50 mil adeptos - a Selecção fez uma primeira parte de grande maturidade.  

Quase nem se deu pelo facto de os seus maiores desequilibradores, Figo e Rui Costa, sentirem muitas dificuldades para se libertar da vigilância severa que lhes moviam, respectivamente, Reiziger e Davids. Ou melhor, notou-se pela moderação nas saídas para o contra-ataque, quase sempre asseguradas por Sérgio Conceição e Pauleta. Mas nada de grave: a gestão do resultado era uma tentação legítima que o acerto defensivo generalizado ia assegurando. 

Tendo os artistas sob liberdade vigiada, foi pelo colectivo que Portugal foi gerindo a situação. Como era obrigatório a Holanda adiantou-se, pressionou, mandou na bola enquanto tal lhe foi consentido, mas nunca conseguiu desfazer o excelente mecanismo de compensações existente entre o meio-campo - notável atenção e sentido posicional de Vidigal e, principalmente, Bino - e a defesa - com a notícia tranquilizadora de que os laterais, muito em jogo, secavam a principal arma ofensiva da equipa de Van Gaal, os extremos. 

À falta de dribles deslumbrantes, chegou a ser empolgante ver até que ponto o rigoroso trabalho defensivo se desdobrava no relvado do De Kuip com a precisão de um relógio suíço. Essas sucessivas garantias lá atrás tornavam mera ilusão de óptica o domínio dos holandeses, que foram tendo a bola mas nunca a chave do jogo, à imagem de um Seedorf, teoricamente o criativo de serviço, que nunca conseguiu escapar do colete de forças em que Bino e Vidigal o tinham colocado. 

Pauleta em estado de graça 

Com o passar do tempo, a Holanda impacientou-se, abriu espaços, diluiu o rigor táctico tão apregoado pelo seu seleccionador e, mais importante ainda, começou a cometer erros primários na circulação de bola, falhando passes e consentindo desarmes em zona proibida.  

A dois minutos do final da primeira parte, foi uma dessas perdas de bola que acabou de gelar o De Kuip. Pauleta, que fundamentara no passe para o primeiro golo uma irresistível autoconfiança, aproveitou a oferta, eliminou Frank de Boer do seu caminho e concluiu o trabalho com o maior dos desplantes, dando-se mesmo ao luxo de ignorar olimpicamente Luís Figo, que a seu lado esperava o passe. 

Com estes antecedentes, havia fundado optimismo para a segunda parte. Frente a uma Holanda desarticulada, onde o contraste entre os melhores jogadores (Davids, Kluivert, Frank de Boer) e os outros chegava a ser arrepiante, Portugal só precisava de manter a consistência colectiva para chegar ao fim com um sorriso nos lábios. 

A Holanda rendida 

Foi isso mesmo que aconteceu: ninguém perdeu a cabeça, todos deram o corpo ao manifesto - foi impressionante o trabalho defensivo a que se submeteram os jogadores da frente, com Pauleta a lutar palmo a palmo com Vidigal e Jorge Costa para o prémio de melhor ladrão de bolas em campo, e com Figo, numa demostração de humildade, a recuar sempre que necessário para auxiliar Dimas a fechar o flanco esquerdo. 

Até aos 60 minutos ainda houve alguma expectativa em saber se a Holanda encontraria, por milagre uma brecha na muralha. Mas, depois de Rui Costa ter passado perto do 3-0, com um remate que saiu a rasar o poste direito de Van der Sar, uma grande ocasião desperdiçada por Cocu marcou a rendição definitiva de uma Holanda com o moral de rastos. O comportamento dos seus ruidosos adeptos, silenciados por 2 mil portugueses em êxtase, era a prova mais evidente disso mesmo. 

A saída de Kluivert, por lesão, numa altura em que já tinha perdido a luta com Jorge Costa (soberbo!) e Fernando Couto, em nada ajudou a equipa de Van Gaal. Até final, mesmo com a Holanda a recorrer ao chuveirinho, nada de mal podia acontecer a uma selecção portuguesa que terá assinado, em Roterdão, uma das mais completas demonstrações de solidez de que há memória em anos recentes. 

Com um cheirinho a saudade no ar - quantos não teriam sonhado com este mesmo jogo como final do Euro-2000? - Portugal reviveu um passado recente da forma mais personalizada e autoritária que seria possível desejar. E Oliveira, que acertou em cheio em todas as opções, até conseguiu o milagre de mandar no tempo. Tal como o seleccionador havia prometido na véspera, nem uma gota de água caiu no relvado durante os 90 minutos.