Depois do talento (Euro-2000), da solidariedade (Roterdão) e da fantasia, a fortuna. Decididamente, já nada falta à Selecção para ser grande entre os gigantes. O empate desta quarta-feira, frente à Holanda, reveste-se de contornos inéditos: nunca uma equipa portuguesa, sendo tão dominada, tendo dado tantos sinais de desinpiração e descrença ao longo de 70 minutos (35 na primeira parte, 35 na segunda), conseguiu um resultado tão bom com uma reacção deste estilo. Aquele tipo de reacções que sempre invejámos aos espanhóis e aos alemães, e que nunca pareciam estar no nosso horizonte de possibilidades. 

Injusto? Tanto quanto se pode falar de justiça em futebol, admitamos que sim, Portugal deveria, em condições normais, ter perdido este jogo. Mas ser capaz de conseguir bons resultados mesmo jogando muito abaixo do que é costume, é a marca dos grandes, dos que já não precisam que tudo se conjugue a seu favor para as coisas correrem bem. Contando com o período de compensação, Portugal teve apenas dez minutos de grandeza tardia. Sinal dos tempos: foi o suficiente para conseguir um bom resultado (excelente, atendendo a tudo o que se passou). E para inverter um filme que nos habituáramos a ver no papel de vítimas do destino. 

Papéis trocados no «filme» de Roterdão 

Um filme invertido foi, também aquilo a que se assistiu durante a maior parte do encontro, quando o sobrenatural não tinha descido para dar uma mãozinha à equipa nacional, novamente apoiada por um público cada vez mais militante. 

O filme do jogo de Roterdão pairava sobre este tudo ou nada para os holandeses. E, estranhamente, assistiu-se em grande parte do tempo a uma reedição do sucedido nesse encontro, mas com os protagonistas trocados: fazendo jus à sua condição de grande equipa (e diga-se desde já, pelo que se viu neste jogo, que será uma pena se os holandeses ficarem atrás da Irlanda neste grupo de apuramento), os homens de Van Gaal mostraram ter aprendido com os erros então cometidos. 

Com dois teóricos pontas-de-lança, mas Kluivert surpreendentemente recuado, nas costas do possante Jimmy, a Holanda decalcou o modelo de jogo habitual dos portugueses, com um 4x2x3x1 em tudo semelhante ao esquema tradicional que António Oliveira voltou a aplicar. 

Este espelhismo táctico não demorou a ser desfeito, com tudo o que os holandeses introduziram de novo em relação ao jogo de Roterdão: a boa forma de algumas figuras-chave (Overmars e Kluivert, acima de todos), o regresso de alguns elementos importantes ausentes no primeiro jogo (Stam e Zenden, principalmente) e, acima de tudo, a excelência das movimentações ofensivas, com os extremos a desequilibrar e a dupla Jimmy-Kluivert a entender-se por telepatia. 

Para a inversão de papéis ser completa, só faltava a defesa portuguesa cometer os erros que o adversário cometeu no primeiro jogo. Dito e feito: Secretário sentiu tremendas dificuldades diante de um Overmars ao seu melhor nível, e as falhas de comunicação entre Fernando Couto e Litos fizeram o resto. 

Aos 15 minutos, já era claro que a Holanda mandava no jogo. Aos 18, colhia os frutos (merecidos) desse domínio, graças a um penalty com tanto de evitável como de anunciado. A selecção portuguesa não conseguia pôr em prática a sua melhor arma ¿ a circulação de bola ¿ e tentava, sem sucesso recorrer aos passes longos para pôr em xeque o jogo posicional da irrepreensível defesa laranja.  

Um campo tão comprido... 

Nunca como desta vez o campo parecia tão comprido para a Selecção. Figo e Rui Costa, claramente os mais inspirados, eram obrigados a esbanjar técnica e talento em terrenos demasiado recuados. Quando chegavam à zona de decisão já vinham desgastados, pressionados e, mais grave, com escassas opções de passe. Os espaços entre as linhas portuguesas eram enormes, condenando Pauleta a passar fome no duelo com o poderoso Stam. 

Após meia hora em que o KO esteve eminente ¿ valeu Quim, autor de exibição seguríssima ¿ Oliveira decidiu-se a mudar alguma coisa, retirando Paulo Bento (sem culpas naquele estado de coisas) e fazendo entrar Capucho, na tentativa de ganhar mais controlo e tempo de posse de bola. A aposta deu resultado, mas só em parte: Portugal conseguiu estancar a hemorragia nos dez minutos que anteceram o intervalo. Faltava o mais difícil: virar o sentido de jogo e começar a criar perigo na área de Van der Sar. Apesar de tudo, com os novos dados, isso parecia possível. 

Kluivert mata o jogo 

O recomeço do jogo pareceu fatal. Quando se esperava um novo fôlego para a tímida reacção, a enésima inciaitiva de Overmars na esquerda permitiu a Kluivert uma conclusão de classe, que parecia pôr um ponto final na história do jogo. Trocando as camisolas, a repetição do cenário de Roterdão era evidente. Jimmy, Kluivert e Overmars ameaçavam mais estragos de cada vez que recebiam a bola. E o facto de Fernando Couto ter desperdiçado ocasião flagrante três minutos depois do 0-2 pareceu lançar o definitivo balde de cal nas esperanças lusas. 

Podemos passar de largo pela meia hora seguinte. Uma meia hora em que Portugal perdeu ainda mais clarividência, acentuando o desânimo a cada passe mal feito (e foram muitos!) ou a cada recuperação do insaciável Davids (enorme jogador!). 

Mesmo a entrada de Nuno Gomes soava mais a descargo de consciência do que a outra coisa: com Figo, Capucho e Rui Costa a terem de percorrer quilómetros antes de se aproximarem da área, não se percebia como seria possível aos avançados dispor de lances de perigo na área. 

...E Pauleta ressuscita-o 

Em condições normais, tudo teria acabado aqui. Van Gaal deu-se ao luxo de tirar Jimmy e Zenden, e a sua equipa pareceu satisfeita com o resultado conseguido, abdicando de procurar o terceiro golo, que a colocasse em vantagem no confronto directo com Portugal. 

Erro fatal: de súbito, Pauleta teve uma abertura luminosa que encontrou Capucho na direita. O cruzamento do extremo portista foi perfeito, e encontrou o açoriano em posição ideal, com Nuno Gomes a arrastar também os centrais holandeses. 

Com apenas seis minutos para jogar, a Selecção percebia que, contra toda a lógica, o milagre era possível. Um golo de diferença após tanto tempo de domínio adversário era um excelente negócio, tanto mais que o ascendente psicológico tinha mudado de campo. E só então, com Figo a detonar o entusiasmo com duas ou três arrancadas como só ele as consegue fazer, se percebeu que a laranja não era invencível. Que o empate, mesmo falso, era uma possibilidade concreta, ali mesmo ao alcance de mais um empurrão do destino. 

Com o tempo de compensação a esgotar-se, um novo lance na direita encontrou Nuno Gomes e Pauleta no coração da área. Os centrais holandeses, em desespero de causa, travaram o açoriano em falta. E o milagre chegou às Antas sob a forma de um penalty, convertido por Figo com a frieza dos gigantes.  

António Oliveira não se cansa de dizer que a ambição desta equipa não tem limites. Bem pode repeti-lo: quem consegue não perder um jogo destes, arrisca-se mesmo a chegar ao céu...